Estética e política no último Mário de Andrade.
Por Maria Sílvia Betti
Em Estética e política no último Mário de
Andrade: um estudo sobre a ópera Café, Philippe Curimbaba Freitas,
pesquisador da área de música por formação, dirige atenção central para a
análise dos processos compositivos da ópera, e realiza uma discussão detalhada
do aspecto do engajamento, de suas configurações e implicações formais.
O engajamento é um eixo de preocupações recorrentes
no trabalho de Mário de Andrade, mas mapeá-lo e examiná-lo é uma tarefa
laboriosa, pois nele estão conflagrados elementos nem sempre harmoniosos entre
si. Em seu trabalho Philippe Curimbaba Freitas procura investigar as origens do
conceito de engajamento na obra de Mário de Andrade, apontando-as em Há
uma gota de sangue em cada poema, de 1917, e rastreando suas ocorrências
posteriores em dois trabalhos da fase final do autor: a introdução para a
edição brasileira de Shostacovich, de Victor Seroff, e o
inacabado O banquete.
Philippe Curimbaba Freitas destaca o fato de Mário
de Andrade ter valorizado um tipo de relação obra de arte – público baseada não
só em conteúdos, mas também em estímulos apresentados pela obra no terreno dos
comportamentos morais. Mário de Andrade teria encontrado esses elementos tanto
na música de Shostacovich como nas músicas políticas que tomava por base em seus
ensaios sobre o assunto. Isso teria se tornado um princípio compositivo
aplicado por ele no libreto da ópera Café, de 1942.
Nos anos 1940, num contexto marcado pelo Estado
Novo e pela Segunda Guerra Mundial, Mário de Andrade teria passado a olhar com
crítica as obras caracterizadas por um sentido absenteísta de arte, passando a
sentir uma urgência de criar trabalhos engajados.
Como observa Philippe Curimbaba Freitas, Café,
escrito para ser musicado por Francisco Mignone, é, desde sua concepção, um
trabalho que exalta a revolução socialista ao recorrer ao repertório popular de
danças dramáticas brasileiras.
Tal como em O banquete, existe um
compromisso indiscutivelmente político nos conflitos sociais apresentados na
ópera, associados por Philippe Curimbaba Freitas ao repúdio de Mário diante do
conservadorismo da era Vargas e da assimilação perpetrada pelo Estado Novo do
nacionalismo modernista. Mário teria vislumbrado na ópera a possibilidade de
trazer à consciência de seu público noções como as da existência da exploração
do trabalho, da luta de classes e da possibilidade de uma articulação
revolucionária.
Estaria configurada em seu texto, assim, uma função
moralizadora que era uma das preocupações centrais de Mário de Andrade na busca
de um novo papel para a arte dentro desse contexto de crise civilizacional, já
antes abordada em Macunaíma. Mário de Andrade só teria dado por
cumprido o dever de artista que acreditava ter perante seu tempo ao criar a
ópera e ao norteá-la por essas características compositivas ligadas ao
engajamento desejado.
A ópera Café é, como evidencia o
trabalho de Philippe Curimbaba Freitas, um dos principais elos de reflexão de
Mário de Andrade com o sentido do engajamento na arte. Embora o conceito de
sacrifício que lhe é associado também esteja necessariamente presente, o
engajamento constitui-se numa espécie de centro de gravidade do trabalho, e
responde ao eixo principal do impulso artístico e político presente nele.
O assunto “café” tinha papel fundamental não só
como base econômica da sociedade, mas também como esteio de uma forma coletiva
de vida na época. Ao colocar em foco o uso de conceitos como drama e épico,
sacrifício e demagogia para abordá-lo, o estudo aqui realizado o faz a fim de
analisar os processos determinantes da escritura. É importante frisar que o
pressuposto teórico que o orienta é o do entendimento da forma como elemento
portador de um conteúdo maior do que aquele ao qual remete a sua materialidade
sensível, e que a atenção analítica mobilizada nele se volta não para o exame
da relação entre a obra e suas condições externas contextuais, mas para o modo
pelo qual a dinâmica interna e as soluções postas em prática pelo escritor
foram influenciadas pela relação visada com seu público.
Do ponto de vista de sua tessitura
compositiva, Café é uma obra híbrida e multifacetada, que
mobiliza elementos e técnicas heterogêneos. Para Philippe Curimbaba Freitas ela
não é apenas híbrida, mas paradoxal, pois composta a partir de pressupostos que
aparentemente conflitam entre si. Ainda assim, observa-se nela, à luz da
análise minuciosa realizada por ele em seu estudo, a predominância de uma
coerência dramática, uma vez que as partes que a constituem apresentam ligações
com o todo ou são justificadas por ele, o que lhe dá unidade e coerência.
Tanto elementos dramáticos associados ao aspecto
conflitual, como épicos, associados aos coros e à justaposição de quadros são
amplamente utilizados. O hibridismo compositivo não assegura o predomínio da
forma dramática, mas também não apaga por completo os seus resíduos. Existe uma
primazia do aspecto plástico no emprego de quadros vivos (tableaux vivants),
apontando para a não causalidade dramática entre as cenas em sua sucessão, e
existe também um regime formal antidramático nas linhas de concepção cênica e
visual, apoiadas no lirismo e no simbolismo profético.
O uso de recursos épicos não remete, como ocorreria
em Bertold Brecht, a processos e relações sociais. O coro, por exemplo, atua
como entidade coletiva a partir da qual se colocam visões de mundo e
perspectivas de vida ligadas às classes populares e à sua representação, mas
sua utilização não impede que ocorra, em outros momentos e por outras
perspectivas, a representação das classes dominantes.
Ao examinar a ocorrência tanto de padrões burgueses
como antiburgueses em Café, Philippe faz observações de análise
que indicam que essa coexistência não constitui contradição, mas que aponta
para a unidade que se configura a despeito da heterogeneidade.
Uma passagem importante de sua análise a esse
respeito coloca em foco a divergência de entendimento verificada entre Mário de
Andrade e Sérgio Milliet a propósito da dificuldade de entendimento do público
diante de obras contemporâneas no campo da pintura. Para Sérgio Milliet a
dificuldade resultava do fato de ter havido uma transição histórica da técnica
ligada a um padrão artístico aristocrático para a técnica ligada a um padrão
artístico burguês.
Para Mário de Andrade, porém, a dificuldade era
acarretada não pela mudança da técnica, e sim pela mudança do próprio assunto,
que havia passado a ser burguês, gerando a necessidade de uma nova perspectiva
de leitura e recepção.
Outra reflexão de análise igualmente importante diz
respeito ao paralelo entre as formulações de Walter Benjamin sobre os efeitos
da reprodutibilidade da obra de arte, e a concepção de Mário de Andrade, que
via na reprodutibilidade técnica na música um elemento que não só influenciaria
os processos de sua recepção, mas traria consigo a possibilidade de restauração
de um ethos artístico perdido com o desenvolvimento do
individualismo cristão e a organização das sociedades com base num princípio
democrático.
O estudo da ópera Café realizado
por Philippe Curimbaba Freitas abre caminho para futuras ligações de estudo e
de análise em múltiplas direções e em diferentes terrenos artísticos, e convida
seus leitores para que percorram com interesse investigativo o instigante
percurso de criação trilhado por Mário de Andrade em seu libreto.
Referência
Philippe
Curimbaba Freitas. Estética e política no último Mário de Andrade: um
estudo sobre a ópera Café. São Paulo, 2023, 288 págs (https://amzn.to/457BGl7).
Maria Sílvia Betti é
Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da
FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários
em Inglês. É autora, entre outras obras, de Dramaturgia Comparada
Estados Unidos / Brasil: Três estudos. São Bernardo do Campo-SP: Cia.
Fagulha, 2017.
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