PAPA HIGHIRTE, de Oduvaldo Vianna Filho: a recepção crítica da montagem dirigida por Reinaldo Maia em 1986. Por Maria Sílvia Betti

  

PAPA HIGHIRTE, de Oduvaldo Vianna Filho:

a recepção crítica da montagem dirigida por Reinaldo Maia em 1986

Maria Sílvia Betti

FFLCH-USP


Fonte do artigo de Edson Santana:

Voz da Unidade, n. 307 (jul. 1986) - n. 311 (ago. 1986).pdf , p. 63



Em 14 de julho de 1986 estreou no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, a montagem de uma das peças mais duramente atingidas pela ação da Censura durante os anos de vigência do Ato Institucional número 5 sob a ditadura civil militar. Tratava-se de “Papa Highirte”, de Oduvaldo Vianna Filho, premiada no Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro em 1968, e logo a seguir vetada pela Censura Federal.

Em 1976, dois anos após a morte de Vianna, a peça, ainda proibida, tinha sido apresentada clandestinamente pelo grupo de teatro amador da Faculdade de Ciências Sociais da USP, em São Paulo sob a direção de Tin Urbinatti. Em 1979, com a chamada abertura e a liberação dos textos que a Censura tinha proibido, uma primeira montagem profissional estreou no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, com Sérgio Britto no papel título e Nelson Xavier na direção.

A encenação paulista de 1986, da qual existem pouquíssimos registros nos arquivos documentais, teve direção de Reinaldo Maia, músicas de Marcus Vinicius, e cenários e figurinos de Claudio Luchesi. De seu elenco participavam Javert Monteiro, Aiman Hammoud, Haydée Figueiredo, Ju Rodrigues, Paulo Ivo, Alvinho Gomes, Maria do Carmo Soares e Tadeu Di Pietro, todos integrantes do então recém-fundado São Paulo Ensemble, que tinha Bertolt Brecht e o Berliner Ensemble como referências. As apresentações aconteciam em dias e horários alternativos: às segundas, terças e quartas-feiras às 21h30, na Sala Jardel Filho. A temporada estendeu-se até 15 de outubro.

Na véspera da estreia, em julho de 1986, o Diário Popular publicou uma pequena reportagem em seu caderno de Variedades com o título “Papa Highirte, uma radiografia do ditador”. A matéria fazia um retrospecto do contexto de criação da peça e de sua proibição em 1968. Na retranca, um comentário síntese ressaltava o que o jornalista considerava ser a principal característica do protagonista:

 



 De forma didática e sucinta o artigo enfatizava uma suposta “melancolia” do protagonista, apresentando-o como vítima da violência que havia sido instaurada contra sua vontade no país de cujo governo havia sido deposto, a fictícia república latino-americana de Alhambra.

 


Perspectiva mais abrangente de entendimento da peça foi apresentada no artigo de Fernando Rodrigues publicado no Diário do Grande ABC, na Seção Teatro/Crítica, em 12 de agosto de 1986, sob o título “Grandes desempenhos na peça ‘Papa Highirte’”: depois de contextualizar o momento político de criação do texto, o crítico expunha o cerne do enredo e frisava que Highirte remetia associativamente a outros ditadores da América Latina, ainda que não personificasse nenhum deles especificamente. O artigo antecipava o desfecho ao comentar que Highirte, no exílio, planejava ser reconduzido ao governo de Alhambra, mas que nem tudo se passara como ele desejara.

Um aspecto importante a ser ressaltado nesse artigo é a observação de que a peça não formulava “simples juízos” e que a trama não se apoiava na “dicotomia fácil” do bem contra o mal. Nos termos de Fernando Rodrigues, Vianna teria se eximido de configurar Highirte como tirano sem, porém, perder de vista a complexidade dramatúrgica de seu personagem e a dificuldade que o pensamento autoritário impunha para as oposições:



  
Aspecto digno de nota nesta crítica, ainda, foi o destaque dado a aspectos da direção e da iluminação de Reinaldo Maia, e dos cenários de Cláudio Luchesi. Há ressalvas com relação ao ritmo, considerado lento, e à funcionalidade cênica da luz, que teria produzido nuances comprometedoras da clareza, que o crítico considerava uma demanda central do texto de Vianna na denúncia dos horrores das ditaduras:

 


Também o jornal Voz da Unidade (semanário do Partido Comunista Brasileiro que circulou de 1980 a 1991) noticiou a montagem da peça desde antes de sua estreia: na edição número 306, de 11 a 17 de julho de 1986, o jornal publicou uma nota em sua seção de Cultura:

 


Significativamente, no número anterior, havia sido publicada uma pequena nota cujo teor coincidia com o assunto central da peça de Vianna: o declínio em andamento das ditaduras no contexto político da América Latina, ressaltando, porém, que tal declínio não representava a retomada de governos democráticos no continente:

 



Um mês depois da estreia de “Papa Highirte” em 1986, no mesmo jornal Voz da Unidade, Reinaldo Maia, diretor da montagem, publicou um artigo igualmente significativo para o contexto da reencenação:

 


O PCB, agora novamente legalizado, ingressava num período de discussões internas da conjuntura do país. Maia, em seu texto, ressaltava que o Partido estava vivendo um dilema análogo ao de Hamlet: seus militantes, depois de anos de acolhida estratégica em outros partidos, estavam experimentando uma espécie de “dupla identidade” cheia de distorções e de vícios decorrentes dos anos de uma “dupla militância”. Era crucial para Maia que agora, no novo contexto que se abria para o partido, a teoria e a prática se “colassem” uma na outra para que um avanço real pudesse acontecer. E reiterando a ideia central de um texto anterior de José Paulo Netto, ele afirmava:

 


Nesse mesmo mês de agosto, em seu número 309, o Voz da Unidade publicou uma chamada de primeira página apontando com ênfase a união de países latino-americanos contra o imperialismo:

 


 No pé dessa mesma página, entre os títulos de artigos em destaque, estava a notícia da montagem da peça de Vianna, sem dúvida em um enquadramento histórico extremamente relevante e significativo para a discussão do emblemático ocaso de Highirte como ditador diante da reestruturação das forças do imperialismo e de seu poder sobre o continente.

 


 O autor desse artigo era Edson Santana, ator cujo histórico de trabalho ligava-se ao teatro-jornal no Teatro de Arena de São Paulo no início dos anos 70. A matéria dava ênfase textual e gráfica ao papel de Vianna para o teatro e a cultura, e ressaltava o teor de seu pensamento político e estético num grande box de destaque com citação de um trecho do poema “Somos profissionais”, identificado no artigo com uma nota explicativa que dizia: por Vianinha à frente de duas tentativas de prólogo para "Rasga Coração"). Dentro do box, ainda, duas fotos eram destacadas sobre fundo em preto, uma do próprio Vianna e outra da cena em que Highirte (Javert Monteiro) tem nos braços sua jovem amante Graziela (Haydée Figueiredo).

Santana, inicialmente, contextualiza a montagem recém-estreada à luz do percurso histórico e político do trabalho do autor, apresentando a seguir os aspectos centrais do enredo:

 


“Papa Highirte” ilustra, para Santanna, a preocupação central que Vianinha teve sempre de investigar a realidade “em seu ofício e em sua vida”. Discutir as ambições de ditadores no exílio era naquele momento um assunto que dispensava comentários sobre a atualidade da peça, ainda que o ditador Highirte não se parecesse com nenhum dos que existiram na realidade histórica do continente latino-americano, e ainda que o ator Javert Monteiro o tornasse “sincero demais”, chegando quase a lhe dar, segundo Edson Santana, credibilidade perante o público.

O aspecto fundamental implícito na crítica de Santanna diz respeito a um problema central da peça: a necessidade de não se enxergar Highirte pelo prisma redutor das motivações individuais, pois existe o risco de se entender o ex-ditador como alguém que quer voltar a governar Alhambra por acreditar que o povo o quer de volta. Com isso, existe também o risco de o público quase acreditar que Alhambra estaria melhor com ele, tão grande é sua vontade de servir os pobres e sua crença de que é amado por eles.




Outro grande diferencial desse artigo em relação aos demais é o fato de as observações não se fixarem no espetáculo em detrimento da dramaturgia ou vice-versa. Ao ressaltar que a montagem privilegia as contradições de Mariz, Edson Santanna detecta um aspecto importante a ser enfrentado na estrutura dramatúrgica de Vianna: Highirte é o protagonista, mas é também uma figura que já não interessa à hegemonia da “grande potência estrangeira” (entenda-se, os Estados Unidos), e que está, portanto, desprovido de condições de exercer qualquer protagonismo. Seu antagonista Mariz, paralelamente, entre flashes entrecortados do passado, caminha numa linha contínua de ações que o levam à execução do ato final, que certamente implicará em sua própria prisão, condenação e morte. O artigo ressalta a forma bastante desafiadora com que a peça está construída tanto para quem a assiste como para quem a lê: Highirte é carta fora do baralho dentro do jogo de interesses da “potência estrangeira”, e é Mariz, no desejo de vingar a memória do companheiro assassinado e de redimir-se perante sua própria consciência, que vive em cena as mais intensas contradições, devidamente captadas na montagem de Maia , na interpretação do ator Aiman Hammoud (Mariz), e em suas interações com a atriz Haydée Figueiredo, intérprete de sua amante Graziela:



Na peça o fluxo temporal do presente (exílio de Highirte em Montalva) é entrecortado por flashes do passado (governo de Highirte em Alhambra, tortura sofrida por Mariz, e discussões entre Mariz e Manito, companheiros de militância). As soluções cenográficas aplicadas por Claudio Lucchesi são ao mesmo tempo valorizadas pelo desafio que enfrentam e criticadas por incorrerem numa ordenação excessiva que, para Edson Santana, criam um efeito de solidez e estabilidade contrários ao que a peça requer:


Todas essas observações indicam, da parte de Edson Santanna, a sintonia estética e política com as questões de Vianna como autor e com as de Maia como diretor, e reconhecem os desafios implicados na estrutura dramatúrgica. Ao mesmo tempo em que os aponta, Edson coloca-se diante da encenação como um “espectador comum” e como alguém cujo interesse maior é o de estimular o debate, e não o de fechar questão em torno de preceitos estéticos ou formulações políticas:


É o trabalho de Vianna o objeto central de interesse na matéria, e para ressaltar sua importância, o artigo remete à coletânea de textos ensaísticos organizada por Fernando Peixoto e publicada em 1984 pela Editora Brasiliense com o título “Vianinha. Teatro. Televisão. Política.” Há nítida preocupação em apresentar um fio da meada do trabalho de Vianna, situando-o dentro de um enquadramento histórico e político que vai do Teatro de Arena, passa pelos CPCs e vai até a televisão, com “A Grande Família”.



Edson Santana escreve com motivação quase didática no sentido de fornecer fontes e indicações bibliográficas aos leitores do jornal “Voz da Unidade”:

 

 

O trecho final é a citação direta de palavras de Ferreira Gullar sobre Vianna em entrevista concedida à revista Fatos e Fotos em outubro de 1976:

 


Entre 1986 e 1987, dois cineastas paulistas, Jorge Achoa e Gilmar Candeias, ganharam um edital para a realização de um curta-metragem sobre a obra e as ideias de Oduvaldo Vianna Filho. As companhias produtoras foram a Griffith Produções Cinematográficas Ltda e o Cineclube Bixiga. O roteiro, com a narração de Fernando Peixoto, alinhava trechos de depoimentos de companheiros e contemporâneos de Vianna, e intercalava canções e cenas de peças marcantes nas diferentes fases do trabalho do autor. Uma delas é justamente a cena fulcral de “Papa Highirte”, e nela, num cruzamento de planos temporais, Fernando Peixoto interpreta Highirte, Reinaldo Maia interpreta Mariz e Edson Santana interpreta o guerrilheiro assassinado Manito:

PAPA HIGHIRTE – [...] Volto, meu povo, sem rancor, três anos de exílio, volto, estão convencidos agora, não é? Viram a subversão bem de perto outra vez, não viram? Nunca tão de perto, hein, meu povo?

MARIZ - Hein, povo? O que nós somos, hein, povo?

PAPA HIGHIRTE - Viram a subversão solta na rua com suas goelas vermelhas pedindo almas iguais, homens iguais, prometendo batatas em troca da sua alma, viram? (Papa para de falar para pensar)

MARIZ - Eles falam que lutam pela liberdade, que queremos fazer todos virar autômatos, mas o que é que nós somos? Autômatos. Somos todos iguais, companheiros, a mesma miséria, olhem, o mesmo desinteresse, a mesma falta de futuro, o mesmo relógio de ponto, a mesma viagem de ônibus, a mesma dor nas costas, o mesmo único interesse de salvar pelo menos nossos filhos...

PAPA HIGHIRTE - Os filhos? Como vocês tratam dos filhos? Noventa, noventa casos por mês de crianças que morrem desidratadas porque as mães levam os filhos ao hospital já tarde demais. Noventa. Noventa! Vejam, não estou criticando meu povo, vejam, mas entendam; gostamos mais das flores que dos frutos, gostamos mais do pôr do sol que da aurora, não sabemos prever, não inventamos a máquina de somar, inventamos os violões, as guitarras; ficamos para trás e reclamamos dos que estão na frente, mas eles trabalham em regime de quatro turnos, nós trabalhamos dois turnos; sessenta por cento do que poderíamos produzir fica perdido nas nossas eternas madrugadas, nas nossas eternas esquinas...

(Agora é Manito quem fala. Mariz, como se estivesse num comício, deixa-lhe a frente. Anima-o tocando seu ombro. Sai lento)

MANITO - ...Quarenta por cento, só quarenta por cento do que o povo produz aqui em Alhambra fica com a gente, só quarenta por cento dessa renda nacional que já é uma tristeza fica na minha mão, na sua e então não tem emprego e eles dizem que não gostamos de trabalhar, e não tem dinheiro e eles dizem que somos ladrões, e não tem esperança e a gente canta e bebe e eles dizem que somos perversos, dizem isso sentados, fofos, lisos, com o nosso trabalho nas mãos, nas almofadas, na pele limpa e o nosso pão é o desalento, a vergonha de nós mesmos, o pouco, o tão pouco meu Deus do céu que acreditamos em nós. Só temos quarenta por cento de nós mesmos.

PAPA HIGHIRTE - Só vinte e oito por cento da população trabalha. Só vinte e oito por cento.

MANITO - Cada um de nós deve trezentos dólares ao estrangeiro.

PAPA HIGHIRTE - Vivemos à custa do estrangeiro.

MANITO - O país é deles e nos pedem sacrifícios.

PAPA HIGHIRTE - O país é de vocês, é preciso sacrifícios.

MANITO - Chega, povo de Alhambra.

PAPA HIGHIRTE - Chega, povo de Alhambra.

MANITO - Ao poder, povo de Alhambra.

PAPA HIGHIRTE - Ao trabalho, povo de Alhambra.

MANITO - Chega.

PAPA HIGHIRTE - Chega.

 

Trinta e seis anos se passariam até que uma nova montagem de “Papa Highirte” fosse realizada, dessa vez com o grupo TAPA, sob a direção de Eduardo Tolentino de Araújo, Zecarlos Machado no papel de Highirte e Bruno Barchezi como Mariz.

Se este artigo tiver conseguido cumprir o papel que lhe cabe dentro dos tortuosos caminhos da pesquisa documental nestes nossos tempos, ele terá servido para fazer justiça à montagem dirigida por Reinaldo Maia com o elenco do São Paulo Ensemble, inscrevendo-a na história das encenações deste texto fundamental de Oduvaldo Vianna Filho.





Fonte do artigo de Edson Santana:

Voz da Unidade, n. 307 (jul. 1986) - n. 311 (ago. 1986).pdf , p. 63

https://drive.google.com/file/d/1tl4iWXfvS6kGsyRBTknlb7DII8S5BmgB/view?usp=drive_web
















Vianinha
Diretores: Jorge Achôa, Gilmar Guedes Candeias

Ficha técnica do vídeo:

A obra e as ideias do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, examinadas em uma cronologia biográfica que traça um painel dos acontecimentos mais significativos das décadas de 1960 e 70. O filme aborda as principais questões sobre a estética e política que nortearam o processo cultural a partir do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Questões estas estruturadas e debatidas a partir das idéias e produções artísticas de Odervaldo Vianna Filho, Vianinha. Diretores: Jorge Achôa, Gilmar Guedes Candeias Roteiristas: Jorge Achoa, Gilmar Guedes Candeias Identidades/elenco: Monteiro, Amilton Peixoto, Fernando Maia, Reinaldo Santana, Edson Cortez, Raul Nascimento, Luis Azari, Armando Petrin, Antonio Popadoupol, Rosali Guarnieri, Gianfrancesco F. Correa, Zé Celso Martinez Hirszman, Leon Gullar, Ferreira Daniel Filho Narração: Peixoto, Fernando The work and ideas of the playwright Oduvaldo Viana Filho, Vianinha, examined in a biographical chronology that traces a panel of the most significant events of the 1960s and 70s. Directors: Jorge Achôa, Gilmar Guedes Candeias Writers: Jorge Achoa, Gilmar Guedes Candeias



Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.


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Moralândia. Capítulo 8. Atravessador foragido. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


 Moralândia. Capítulo 8. Atravessador foragido. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho

 


 Atravessador deixa a mensagem no grupo do zap:

 Conto com vocês. A missão é salvar Moralândia do comunismo.

Se der merda a intentona fascista, não tenho nada a ver com isso, talquei?

 

"Galera, é o seguinte: em boca fechada não entra mosquito.

Os atravessadores têm serventia mais ou menos prolongada. Alguns prestam serviços há gerações, enquanto outros são descartados rapidamente. Com estes lidamos em dois palitos, e desovamos em algum terreno baldio, já que serviçais de boca aberta, quando deveriam permanecer fechadas, representam perigos e efeitos colaterais evitáveis. Fulano vacilou, a gente passa a régua e anula o cpf.

Ninguém respeita quem hesita. A galera sabe que não vamos fraquejar diante de um vacilão desmancha-prazeres. Quer se foder, fique à vontade, mas não conte com o nosso fiofó para ir pra fila do INSS, talquei?

Não vou assistir a exibição da capivara da minha família nas TVs e nos jornais e ficar de braços cruzados, porra. Não vem desmoralizar nossa família que o bicho vai pegar. Que se foda se mandei apagar a vereadora, jogar mercúrio para envenenar os rios dos índios da Idade da Pedra ou proibir vacina. Eu quero é mais, tá ligado?

Não se acumula a quantidade de imóveis e de dinheiro que minha família juntou todos esses anos do nada. É um trabalho incansável de tirar do alheio e, para isso, usamos versículos bíblicos como doces para enganar crianças. Nisso você se dá conta da quantidade de otários à disposição sempre que fala uma merda qualquer e olha para a cara dos trouxas como se você tivesse inventado a lâmpada e fosse digno de um prêmio Nobel. Sendo que, na verdade, sou um sujeito limitado; admito ser uma verdadeira aberração. Tem gente muito mais preparada do que eu. Mas eu sou conveniente e cobro o pedágio pelo trampo, entendeu?

A diferença é minha esperteza. Farejo uma grana, uma falcatrua, uma oportunidade de encher as malas de dinheiro e já mexo os pauzinhos. O negócio é intermediar e receber as comissões na moleza. Se vai morrer dezenas de milhares ou centenas de milhares, não importa. O que interessa é aumentar os saldos de minhas contas. Entendeu ou precisa desenhar ainda mais?

Vou te contar. Dá até nojo desses idiotas. Detesto quando eles vêm abraçar e beijar. Dá vontade de vomitar. E quanto mais o mané é seboso, mais ódio dá. Nem com creolina a gente se desinfeta dessa ralé. O pior é que precisa fazer cara de quem tá gostando e fingir que está tudo bem. Caralho, como é um saco segurar esse personagem ‘da moral e dos bons costumes’ que exibimos para os manés adorarem. Eles acreditam piamente que somos a figura respeitável criada por nossas propagandas.

Fazer o quê, né? Quem nasceu para ser enganado, cai em qualquer 171, tem mais é que se ferrar de verde-amarelo.

Falando nisso, se apropriar das cores da bandeira e da religiosidade de maneira hipócrita foi a melhor forma de contabilizar seguidores fanáticos, dementes e escravos para o que der e vier.

Falo uma barbaridade pela manhã e fico sabendo por minha assessoria dos efeitos em grupos de discussão. O mesmo assunto que critiquei de manhã, se preciso, elogio à tarde, caso meus analistas recomendem. Não importa a opinião, idiota segue em qualquer direção que a gente mandar. O que tem que ficar claro é como tocar o gado. E este quer ração. Oferecemos ódio e inimigos imaginários todos os dias para esses sem noção se fartarem. Como estimulamos a máquina de fake news em escala industrial, nossos seguidores sempre exigem mais ódio e mais caos para acenarmos com a cenourinha da redenção pendurada à frente: ‘fim do comunismo’ e outras bobagens que inventamos e esses patetas caem com a maior facilidade.

Se quisesse, venderia terrenos na Lua ou no meio do oceano. Na realidade, vendo. Só não entrego, talquei? Mas o olhar de satisfação futura desses cuzões que me seguem ouvindo essas ofertas impossíveis, imaginando que vão pro Paraíso, é tão entorpecido e maluco que, com certeza, a sedução do meu discursinho mequetrefe tem efeito mais paralisante do que muitas drogas barras pesadas. Claro que o capital, as big techs e seus algoritmos dão a maior força. Mas não posso falar sobre isso agora, talquei?

O negócio é o seguinte, só posso ficar na vagabundagem e torrar o cartão corporativo com minha família e meus generais se o povão estúpido acreditar que estou combatendo a corrupção. Um malandro como eu, escolado e chefe do chefe do Escritório do Crime, sabe que deve acenar com discursos de moral, família e bons costumes, deus acima de tudo e outras baboseiras para os otários aplaudirem. Na verdade, meus seguidores são tão canalhas como eu, querem meter a mão no dinheiro público e passear de moto, jet-ski e iates. Todavia, repetem o mesmo blá-blá-blá que eu. Somos cínicos. A diferença brutal é fácil de constatar. Eu fiquei milionário com essa conversa fiada, enquanto esse pessoal sem rumo marcha pro abatedouro como gado de corte. Por isso preciso reposição constante da manada. As gerações mais velhas levam os filhos, estes levam os filhos e assim por diante.

É uma fórmula que tem dado resultado e, como diz o outro, em time que está ganhando não se mexe. Aqui e ali se faz uns ajustes, mas a ladainha do discurso anticorrupção, caça aos marajás, lava-jato e todo esse esgoto para enganar e deixar a massa anestesiada acontece no mesmo momento em que passamos o patrimônio do país a preços de meleca para os nossos chefes, mediante uma comissão pelos serviços, que ninguém é de ferro, talquei?

Enviar o pessoal para cumprir as tarefas. Tem que barbarizar. Não dar mole, não. Quem não tem respeito nesse ramo de atravessadores e vendedores de facilidades logo é substituído. Quando você não cumpre o acordado, o melhor é se livrar logo da testemunha, pois se ela abrir o bico na primeira esquina, teu barco afunda, xará. É bem simples a equação: tropeçou, fez merda, vai comer formiga. Mesmo que não saiba o gosto que vai ter, kkk. Mas na cidade do pé junto isso não vale merda nenhuma e todos somos pratos dos vermes. Pode embalsamar, revestir de ouro e o escambau. Vai tudo ter o mesmo fim. Apesar do dito, anota aí: quero ser embalsamado, cheio de adornos de ouro e ninguém esculhambando as cerimônias do meu funeral.

Repetidas vezes a gente faz a mesma coisa por que teve resultados positivos anteriormente. Mas quando a casa tá caindo e você assiste seus filhos sendo processados e sabe que eles serão presos um por um, não sendo um mané, você já foge logo pra a Flórida e pede asilo em qualquer lugar que tenha um ditador amigo e cujo país não tenha acordo de extradição ou relação com Interpol pra foder a sua vida.

Afinal, de que adianta ter aberto as portas para tantos magnatas, aprovado tantas facilidades e falcatruas, pra ficar ao relento com todo mundo passando a mão na sua bunda. Na, né, ni, nó, não. Tô fora. E a grana já foi antes de mim, kkk.

Quem fica é mané, talquei?

Bye, bye.”

 

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Golpista lamenta em e-mail:

 Nossa intentona fascista falhou.Dizem até que Moralândia nunca mais será a mesma.

 

"Pessoal da Intentona fascista, atenção!

O cerco está se fechando.

Os ventos mudaram.

Há muito tempo temia esse momento, mas nunca imaginei que ele, na hipótese mais remota, algum dia se concretizaria.

Devo lembrar que há décadas tenho conseguido imunidades diversas para afastar os constrangimentos legais a que estão sujeitos os mortais comuns.

Muitos não entendem os esforços necessários para estar numa posição de intocável. Pensam se tratar de sorte, mágica ou quaisquer tolices do tipo.

Na realidade, não se atinge esse grau de tolerância das autoridades estabelecidas sem agradá-las continuamente. Policiais, pastores, jornalistas, juízes, generais, deputados, senadores e outros subornáveis na fila da venalidade inflacionam os negócios, porém os mantêm em funcionamento lubrificado, com as peças girando e se encaixando como uma orquestra.

Frequentadores de geriatras e inativos desde o início de carreira num país sem inimigos externos, generais ávidos por propinas se interessam pelas diversas atividades que oferecemos: jogatina, prostituição, tráfico de armas, drogas e de pessoas, garimpo e uma infinidade de práticas ilícitas, cuja fachada edulcoramos com nomes santificados e excelsos, com bênçãos de pastores e as loas mais cínicas que um oportunista produz quando cheira dinheiro fácil e, sem pestanejar, entrega sua “reputação ilibada”, cuja credibilidade só é aceita por néscios.

Repletas de dinheiro vivo, as malas têm um poder persuasivo instantâneo. Acaba com a flora, fauna e índios da Idade da Pedra num instante, como se jamais tivessem existido um dia em Moralândia. Destruir milhares de hectares de florestas virgens pode gerar protestos domésticos e internacionais. Entretanto, basta ter um governo nosso, de extrema-direita dos pés à cabeça, que o incômodo pode ser abafado do mesmo modo que as janelas acústicas nos separam do burburinho e tumulto que se abate sobre a gentinha ordinária e imprestável, presa ao cotidiano mesquinho da estrita sobrevivência.

Nosso projeto é compartilhado mundialmente com outros partidos conservadores. Carregam bandeiras em nome da “família, moral, religião” e demais narcóticos incessantemente infundidos na massa ávida por uma vida pós-morte com algum sentido, já que a presente é um selo de garantia de viagem perdida.

Em público, faço questão de aparecer com um crucifixo e olhar de adoração aos céus e seus habitantes imaginários, milenarmente criados e reciclados por nossos ideólogos das classes abastadas.

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, basta dispararmos em correntes de whatsapp / telegram que a Terra é plana, junto a variadas besteiras ainda mais absurdas, para os zumbis repetirem ad nauseaum como o primeiro versículo da Bíblia de nossas engrenagens de manipulação, operadas com montanhas de dinheiro para defender interesses que interessam.

Com a injeção de medo e caos, dosadas e esquadrinhadas com lógica de algoritmos, os fantoches se multiplicam e não decepcionam. A obediência cega e inquestionada não poderia ser obtida sem a cumplicidade da mídia e instituições veneradas e respeitáveis por desavisados.

Pastores midiáticos e seus subalternos gostam de receber a remuneração em cash, propriedades móveis e imóveis, amantes e quaisquer outras coisas compráveis pelos representantes do bezerro de ouro. Como os outros colaboradores, o apetite deles pela bufunfa é inesgotável. E isso facilita nossas operações, afinal os recursos são públicos e não despendemos um único centavo de caixa próprio.

Não é por sovinice, pois seria de mau gosto gastar do bolso o que é facilmente acessado por cartões corporativos sem limites e (i)licitações de editais elaborados por nossas equipes. Às vezes, aqui e acolá, aparecem figuras para atrapalhar os encaminhamentos previamente entabulados por nossos gerentes. Aí é chegado o momento de distribuir parte da riqueza alheia.

Despachamos as somas de acordo com as contingências. Motoboy, táxi, barco, avião, terminais de computador, paraísos fiscais e os meios disponíveis para retirar impedimentos reais ou erguidos com a finalidade de aumentar o pedágio.

Todavia, a vida mansa teve fim, como já alertei no início. A maré virou e tratei de voar rapidinho pra Miami, tendo me precavido com as transferências de fundos e valores para paraísos fiscais, mudanças de nome, documentos e toda burocracia acarretada pela débâcle de nosso governo militar.

Dizem até que Moralândia nunca mais será a mesma.

E até mesmo pode mudar de nome.

Bye, bye."

 

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