PAPA HIGHIRTE, de Oduvaldo Vianna Filho:
a recepção crítica da montagem
dirigida por Reinaldo Maia em 1986
Maria Sílvia Betti
FFLCH-USP
Voz da Unidade, n. 307 (jul. 1986) - n. 311 (ago.
1986).pdf , p. 63
Em
14 de julho de 1986 estreou no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, a
montagem de uma das peças mais duramente atingidas pela ação da Censura durante
os anos de vigência do Ato Institucional número 5 sob a ditadura civil militar.
Tratava-se de “Papa Highirte”, de Oduvaldo Vianna Filho, premiada no Concurso
de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro em 1968, e logo a seguir vetada pela
Censura Federal.
Em
1976, dois anos após a morte de Vianna, a peça, ainda proibida, tinha sido apresentada
clandestinamente pelo grupo de teatro amador da Faculdade de Ciências Sociais
da USP, em São Paulo sob a direção de Tin Urbinatti. Em 1979, com a chamada
abertura e a liberação dos textos que a Censura tinha proibido, uma primeira
montagem profissional estreou no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, com
Sérgio Britto no papel título e Nelson Xavier na direção.
A
encenação paulista de 1986, da qual existem pouquíssimos registros nos arquivos
documentais, teve direção de Reinaldo Maia, músicas de Marcus Vinicius, e
cenários e figurinos de Claudio Luchesi. De seu elenco participavam Javert
Monteiro, Aiman Hammoud, Haydée Figueiredo, Ju Rodrigues, Paulo Ivo, Alvinho
Gomes, Maria do Carmo Soares e Tadeu Di Pietro, todos integrantes do então
recém-fundado São Paulo Ensemble, que tinha Bertolt Brecht e o Berliner
Ensemble como referências. As apresentações aconteciam em dias e horários
alternativos: às segundas, terças e quartas-feiras às 21h30, na Sala Jardel
Filho. A temporada estendeu-se até 15 de outubro.
Na
véspera da estreia, em julho de 1986, o Diário Popular publicou uma pequena reportagem em
seu caderno de Variedades com o título “Papa Highirte, uma radiografia do
ditador”. A matéria fazia um retrospecto do contexto de criação da peça e de
sua proibição em 1968. Na retranca, um comentário síntese ressaltava o que o
jornalista considerava ser a principal característica do protagonista:
De forma didática e sucinta o artigo enfatizava uma suposta “melancolia” do protagonista, apresentando-o como vítima da violência que havia sido instaurada contra sua vontade no país de cujo governo havia sido deposto, a fictícia república latino-americana de Alhambra.
Perspectiva
mais abrangente de entendimento da peça foi apresentada no artigo de Fernando
Rodrigues publicado no Diário
do Grande ABC, na Seção Teatro/Crítica, em 12 de agosto de 1986, sob o
título “Grandes desempenhos na peça ‘Papa Highirte’”: depois de contextualizar
o momento político de criação do texto, o crítico expunha o cerne do enredo e frisava
que Highirte remetia associativamente a outros ditadores da América Latina,
ainda que não personificasse nenhum deles especificamente. O artigo antecipava
o desfecho ao comentar que Highirte, no exílio, planejava ser reconduzido ao
governo de Alhambra, mas que nem tudo se passara como ele desejara.
Um
aspecto importante a ser ressaltado nesse artigo é a observação de que a peça
não formulava “simples juízos” e que a trama não se apoiava na “dicotomia fácil”
do bem contra o mal. Nos termos de Fernando Rodrigues, Vianna teria se eximido
de configurar Highirte como tirano sem, porém, perder de vista a complexidade
dramatúrgica de seu personagem e a dificuldade que o pensamento autoritário
impunha para as oposições:
Também
o jornal Voz da Unidade (semanário do
Partido Comunista Brasileiro que circulou de 1980 a 1991) noticiou a montagem
da peça desde antes de sua estreia: na edição número 306, de 11 a 17 de julho
de 1986, o jornal publicou uma nota em sua seção de Cultura:
Significativamente,
no número anterior, havia sido publicada uma pequena nota cujo teor coincidia
com o assunto central da peça de Vianna: o declínio em andamento das ditaduras no
contexto político da América Latina, ressaltando, porém, que tal declínio não
representava a retomada de governos democráticos no continente:
Um mês depois da estreia de “Papa Highirte” em 1986, no mesmo jornal Voz da Unidade, Reinaldo Maia, diretor da montagem, publicou um artigo igualmente significativo para o contexto da reencenação:
O
PCB, agora novamente legalizado, ingressava num período de discussões internas
da conjuntura do país. Maia, em seu texto, ressaltava que o Partido estava
vivendo um dilema análogo ao de Hamlet: seus militantes, depois de anos de
acolhida estratégica em outros partidos, estavam experimentando uma espécie de
“dupla identidade” cheia de distorções e de vícios decorrentes dos anos de uma
“dupla militância”. Era crucial para Maia que agora, no novo contexto que se
abria para o partido, a teoria e a prática se “colassem” uma na outra para que
um avanço real pudesse acontecer. E reiterando a ideia central de um texto anterior
de José Paulo Netto, ele afirmava:
Nesse mesmo mês de agosto, em seu número 309, o Voz da Unidade publicou uma chamada de primeira página apontando com ênfase a união de países latino-americanos contra o imperialismo:
No pé dessa mesma página, entre os títulos de artigos em destaque, estava a notícia da montagem da peça de Vianna, sem dúvida em um enquadramento histórico extremamente relevante e significativo para a discussão do emblemático ocaso de Highirte como ditador diante da reestruturação das forças do imperialismo e de seu poder sobre o continente.
O autor desse artigo era Edson Santana, ator
cujo histórico de trabalho ligava-se ao teatro-jornal no Teatro de Arena de São
Paulo no início dos anos 70. A matéria dava ênfase textual e gráfica ao papel
de Vianna para o teatro e a cultura, e ressaltava o teor de seu pensamento
político e estético num grande box de
destaque com citação de um trecho do poema “Somos profissionais”, identificado
no artigo com uma nota explicativa que dizia: por Vianinha à frente de duas
tentativas de prólogo para "Rasga Coração"). Dentro do box, ainda,
duas fotos eram destacadas sobre fundo em preto, uma do próprio Vianna e outra da
cena em que Highirte (Javert Monteiro) tem nos braços sua jovem amante Graziela
(Haydée Figueiredo).
Santana,
inicialmente, contextualiza a montagem recém-estreada à luz do percurso
histórico e político do trabalho do autor, apresentando a seguir os aspectos
centrais do enredo:
“Papa
Highirte” ilustra, para Santanna, a preocupação central que Vianinha teve
sempre de investigar a realidade “em seu ofício e em sua vida”. Discutir as
ambições de ditadores no exílio era naquele momento um assunto que dispensava
comentários sobre a atualidade da peça, ainda que o ditador Highirte não se parecesse
com nenhum dos que existiram na realidade histórica do continente latino-americano,
e ainda que o ator Javert Monteiro o tornasse “sincero demais”, chegando quase
a lhe dar, segundo Edson Santana, credibilidade perante o público.
O
aspecto fundamental implícito na crítica de Santanna diz respeito a um problema
central da peça: a necessidade de não se enxergar Highirte pelo prisma redutor das
motivações individuais, pois existe o risco de se entender o ex-ditador como
alguém que quer voltar a governar Alhambra por acreditar que o povo o quer de
volta. Com isso, existe também o risco de o público quase acreditar que
Alhambra estaria melhor com ele, tão grande é sua vontade de servir os pobres e
sua crença de que é amado por eles.
Outro
grande diferencial desse artigo em relação aos demais é o fato de as
observações não se fixarem no espetáculo em detrimento da dramaturgia ou
vice-versa. Ao ressaltar que a montagem privilegia as contradições de Mariz, Edson
Santanna detecta um aspecto importante a ser enfrentado na estrutura
dramatúrgica de Vianna: Highirte é o protagonista, mas é também uma figura que
já não interessa à hegemonia da “grande potência estrangeira” (entenda-se, os
Estados Unidos), e que está, portanto, desprovido de condições de exercer
qualquer protagonismo. Seu antagonista Mariz, paralelamente, entre flashes
entrecortados do passado, caminha numa linha contínua de ações que o levam à
execução do ato final, que certamente implicará em sua própria prisão,
condenação e morte. O artigo ressalta a forma bastante desafiadora com que a
peça está construída tanto para quem a assiste como para quem a lê: Highirte é
carta fora do baralho dentro do jogo de interesses da “potência estrangeira”, e
é Mariz, no desejo de vingar a memória do companheiro assassinado e de
redimir-se perante sua própria consciência, que vive em cena as mais intensas
contradições, devidamente captadas na montagem de Maia , na interpretação do
ator Aiman Hammoud (Mariz), e em suas interações com a atriz Haydée Figueiredo,
intérprete de sua amante Graziela:
Na
peça o fluxo temporal do presente (exílio de Highirte em Montalva) é
entrecortado por flashes do passado
(governo de Highirte em Alhambra, tortura sofrida por Mariz, e discussões entre
Mariz e Manito, companheiros de militância). As soluções cenográficas aplicadas
por Claudio Lucchesi são ao mesmo tempo valorizadas pelo desafio que enfrentam
e criticadas por incorrerem numa ordenação excessiva que, para Edson Santana,
criam um efeito de solidez e estabilidade contrários ao que a peça requer:
Todas
essas observações indicam, da parte de Edson Santanna, a sintonia estética e
política com as questões de Vianna como autor e com as de Maia como diretor, e reconhecem os desafios implicados na estrutura dramatúrgica. Ao mesmo tempo em que os
aponta, Edson coloca-se diante da encenação como um “espectador comum” e como
alguém cujo interesse maior é o de estimular o debate, e não o de fechar
questão em torno de preceitos estéticos ou formulações políticas:
É
o trabalho de Vianna o objeto central de interesse na matéria, e para ressaltar
sua importância, o artigo remete à coletânea de textos ensaísticos organizada
por Fernando Peixoto e publicada em 1984 pela Editora Brasiliense com o título
“Vianinha. Teatro. Televisão. Política.” Há nítida preocupação em apresentar um
fio da meada do trabalho de Vianna, situando-o dentro de um enquadramento
histórico e político que vai do Teatro de Arena, passa pelos CPCs e vai até a
televisão, com “A Grande Família”.
Edson
Santana escreve com motivação quase didática no sentido de fornecer fontes e
indicações bibliográficas aos leitores do jornal “Voz da Unidade”:
O
trecho final é a citação direta de palavras de Ferreira Gullar sobre Vianna em
entrevista concedida à revista Fatos e Fotos em outubro de 1976:
Entre
1986 e 1987, dois cineastas paulistas, Jorge Achoa e Gilmar Candeias, ganharam
um edital para a realização de um curta-metragem sobre a obra e as ideias de
Oduvaldo Vianna Filho. As companhias produtoras foram a Griffith Produções Cinematográficas
Ltda e o Cineclube Bixiga. O roteiro, com a narração de Fernando Peixoto, alinhava
trechos de depoimentos de companheiros e contemporâneos de Vianna, e
intercalava canções e cenas de peças marcantes nas diferentes fases do trabalho
do autor. Uma delas é justamente a cena fulcral de “Papa Highirte”, e nela, num
cruzamento de planos temporais, Fernando Peixoto interpreta Highirte, Reinaldo
Maia interpreta Mariz e Edson Santana interpreta o guerrilheiro assassinado
Manito:
PAPA
HIGHIRTE – [...] Volto, meu povo, sem rancor, três anos de exílio, volto, estão
convencidos agora, não é? Viram a subversão bem de perto outra vez, não viram?
Nunca tão de perto, hein, meu povo?
MARIZ
- Hein, povo? O que nós somos, hein, povo?
PAPA
HIGHIRTE - Viram a subversão solta na rua com suas goelas vermelhas pedindo
almas iguais, homens iguais, prometendo batatas em troca da sua alma, viram? (Papa para de falar para pensar)
MARIZ
- Eles falam que lutam pela liberdade, que queremos fazer todos virar
autômatos, mas o que é que nós somos? Autômatos. Somos todos iguais,
companheiros, a mesma miséria, olhem, o mesmo desinteresse, a mesma falta de
futuro, o mesmo relógio de ponto, a mesma viagem de ônibus, a mesma dor nas
costas, o mesmo único interesse de salvar pelo menos nossos filhos...
PAPA
HIGHIRTE - Os filhos? Como vocês tratam dos filhos? Noventa, noventa casos por
mês de crianças que morrem desidratadas porque as mães levam os filhos ao
hospital já tarde demais. Noventa. Noventa! Vejam, não estou criticando meu povo,
vejam, mas entendam; gostamos mais das flores que dos frutos, gostamos mais do
pôr do sol que da aurora, não sabemos prever, não inventamos a máquina de
somar, inventamos os violões, as guitarras; ficamos para trás e reclamamos dos
que estão na frente, mas eles trabalham em regime de quatro turnos, nós
trabalhamos dois turnos; sessenta por cento do que poderíamos produzir fica
perdido nas nossas eternas madrugadas, nas nossas eternas esquinas...
(Agora é Manito quem
fala. Mariz, como se estivesse num comício, deixa-lhe a frente. Anima-o tocando
seu ombro. Sai lento)
MANITO
- ...Quarenta por cento, só quarenta por cento do que o povo produz aqui em
Alhambra fica com a gente, só quarenta por cento dessa renda nacional que já é
uma tristeza fica na minha mão, na sua e então não tem emprego e eles dizem que
não gostamos de trabalhar, e não tem dinheiro e eles dizem que somos ladrões, e
não tem esperança e a gente canta e bebe e eles dizem que somos perversos,
dizem isso sentados, fofos, lisos, com o nosso trabalho nas mãos, nas
almofadas, na pele limpa e o nosso pão é o desalento, a vergonha de nós mesmos,
o pouco, o tão pouco meu Deus do céu que acreditamos em nós. Só temos quarenta
por cento de nós mesmos.
PAPA
HIGHIRTE - Só vinte e oito por cento da população trabalha. Só vinte e oito por
cento.
MANITO
- Cada um de nós deve trezentos dólares ao estrangeiro.
PAPA
HIGHIRTE - Vivemos à custa do estrangeiro.
MANITO
- O país é deles e nos pedem sacrifícios.
PAPA
HIGHIRTE - O país é de vocês, é preciso sacrifícios.
MANITO
- Chega, povo de Alhambra.
PAPA
HIGHIRTE - Chega, povo de Alhambra.
MANITO
- Ao poder, povo de Alhambra.
PAPA
HIGHIRTE - Ao trabalho, povo de Alhambra.
MANITO
- Chega.
PAPA
HIGHIRTE - Chega.
Trinta
e seis anos se passariam até que uma nova montagem de “Papa Highirte” fosse
realizada, dessa vez com o grupo TAPA, sob a direção de Eduardo Tolentino de
Araújo, Zecarlos Machado no papel de Highirte e Bruno Barchezi como Mariz.
Se
este artigo tiver conseguido cumprir o papel que lhe cabe dentro dos tortuosos
caminhos da pesquisa documental nestes nossos tempos, ele terá servido para
fazer justiça à montagem dirigida por Reinaldo Maia com o elenco do São Paulo
Ensemble, inscrevendo-a na história das encenações deste texto fundamental de
Oduvaldo Vianna Filho.
Fonte do artigo de Edson Santana:
Voz da Unidade, n. 307 (jul. 1986) - n. 311 (ago. 1986).pdf , p. 63
https://drive.google.com/file/d/1tl4iWXfvS6kGsyRBTknlb7DII8S5BmgB/view?usp=drive_web
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