Leituras críticas de dramaturgia moderna. Críticos estadunidenses fundamentais (Gassner, Bentley e Carlson). Por Maria Sílvia Betti


Leituras críticas de dramaturgia moderna.
Críticos estadunidenses fundamentais (Gassner, Bentley e Carlson). 
Por Maria Sílvia Betti.

Aula de 24/03/2020

24 de março

Tema da aula
 - Introdução, contextualização e problematização da proposta da disciplina de pós-graduação intitulada LEITURAS CRÍTICAS DE DRAMATURGIA MODERNA. CRÍTICOS ESTADUNIDENSES FUNDAMENTAIS (GASSNER, BENTLEY E CARLSON), oferecida no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCH-USP, Departamento de Letras Modernas, Linha de Pesquisa Contatos Literários.

Maria Sílvia Betti (docente)


Link de acesso à página da disciplina no Moodle:



OBJETIVOS:
Introduzir e discutir uma seleção de obras críticas relevantes para a pesquisa analítica e crítica do texto dramatúrgico em sua relação com as concepções cênicas que lhe são inerentes.
Familiarizar os alunos com discussão crítica de textos teatrais representativos das questões formais e teóricas examinadas nos trabalhos discutidos.

JUSTIFICATIVAS: O estudo do texto dramatúrgico e das concepções cênicas a que ele se liga é imprescindível para o embasamento de pesquisas em diversas áreas de Literatura Dramática, de Artes Cênicas e de Dramaturgia. Os trabalhos críticos apresentados e discutidos no programa são pontos de referência nessas áreas, e permitem a colocação de questões essenciais para um trabalho analítico aprofundado.

CONTEÚDO (EMENTA):
Aula 1: Introdução, contextualização e problematização da proposta.
Aulas 2 e 3: John Gassner: contextualização de seu trabalho crítico. Form and idea, de John Gassner. Discussão de excertos.
Aula 4: Mestres do Teatro II, de John Gassner. Discussão de excertos.
Aula 5: Eric Bentley: contextualização de seu trabalho crítico. The theatre of commitment. Discussão de excertos.
Aula 6: Eric Bentley. O dramaturgo como pensador. Discussão de excertos.
Aula 7: Eric Bentley. The theory of the modern stage. Discussão de excertos.
Aula 8: Marvin Carlson. contextualização de seu trabalho. The Theory of the modern stage: an introduction to modern theatre and drama. Discussão de excertos relacionados à segunda metade do século XX.
Aula 9. Marvin Carlson. Performance. A critical introduction. Discussão de excertos.
Aula 10. Marvin Carlson. Post dramatic theatre and post dramatic performance. Discussão do texto do ensaio.
Aula 11: críticos estadunidenses nos Cadernos do Tablado. Discussão de uma seleção de artigos tomados a diversos números dos Cadernos.
Aula 12: balanço do curso e reflexões de encerramento.

A proposta deste curso é estudar como e com que perspectivas a dramaturgia moderna é abordada e discutida nos trabalhos de três críticos estadunidenses: John Gassner [1902-1967], Eric Bentley [1916-] e Marvin Carlson [1935-].
Por dramaturgia entende-se o conjunto de textos escritos para o teatro em suas diferentes configurações formais (tragédias, comédias, dramas, melodramas, etc.). Por moderna entende-se a dramaturgia escrita entre o final do século XIX e o final da segunda metade do século XX.
A dramaturgia interessa a todos os que desejam investigar de que forma o teatro representou, em seus textos, as transformações sociais, econômicas e culturais à sua volta.
O texto não é a instância única e nem a principal de expressão no teatro, como se sabe. Mas o seu apagamento do campo de estudos de teatro tem causado sérios danos à formação da sensibilidade pensante de várias gerações de pesquisadores e de intérpretes. No contexto atual, as práticas teatrais não dramatúrgicas tendem a prevalecer tanto nos programas de estudo acadêmico como em grande número encenações em São Paulo, o que ocorre por motivos diversos e que não nos cabe neste momento específico do curso discutir.
Na FFLCH especificamente o estudo de dramaturgia existe dentro de disciplinas das áreas de Teoria Literária, Literatura Brasileira e de algumas das literaturas estrangeiras. Isso ocorre como resultado do trabalho desenvolvido por Décio de Almeida Prado [1917-2001], crítico, historiador do teatro brasileiro e professor que, entre 1966 e 1984, ministrou cursos e publicou obras que formaram várias gerações de docentes e pesquisadores.
No momento em que estamos, em 2020, grande parte dos estudos teórico-críticos de dramaturgia na FFLCH são norteados pela abordagem teórica de Peter Szondi, autor de “Teoria do Drama Moderno 1880-1950”.
Estudioso das configurações estilísticas na dramaturgia, Szondi examinou os processos pelos quais os dramaturgos, nos períodos de grandes transformações da sociedade à sua volta, haviam sido obrigados a criar estratégias compositivas que lhes permitissem continuar escrevendo dentro dos preceitos vigentes, mas sem deixar de tratar do que era necessário e emergente. Szondi observa e analisa os “ajustes” formais que foram tendo que ser feitos nesse sentido pelos dramaturgos dessas épocas de transformações históricas entre 1880 e 1950, e dedica particular atenção às mudanças estilísticas observadas no campo do expressionismo, da revista política de Erwin Piscator, do teatro épico de Bertolt Brecht, do conceito de “montagem”, da impossibilidade flagrada na forma dramática utilizada por Pirandello, do surgimento do monólogo interior e do emprego do “eu épico” como diretor de cena, recurso utilizado pelo dramaturgo estadunidense Thornton Wilder [1897-1975] na peça “Nossa Cidade” (1938).
Particular atenção é dedicada por Szondi à análise de peças de três autores estadunidenses: Eugene O’Neill [1888-1953], Arthur Miller [1914-2005] e o já mencionado Thornton Wilder. Isso não ocorre por acaso: em peças desses autores, aspectos então historicamente recentes dos mecanismos de desagregação da individualidade, da alienação do sujeito anônimo dentro de uma sociedade massificada e da exploração de sua força de trabalho se apresentavam com configurações estilísticas dignas de nota.
O contexto teatral estadunidense é radicalmente diferente do alemão, do francês e do inglês. Nos Estados Unidos, desde os primórdios da colônia e da república recém-fundada, o teatro era fruto de práticas comerciais e empresariais. Era empreendimento comercial e era ofício. Era basicamente business. Na época da Grande Depressão econômica, na década de 1930, o governo de Franklyn Delano Roosevelt teve que criar um projeto de âmbito federal (o Federal Theatre Project) para salvar da crise milhões de trabalhadores do mundo dos espetáculos, pois estes representavam um quinhão considerável da força de trabalho do país nesse período.
Obviamente, nesse contexto os dramaturgos precisaram lançar mão de recursos compositivos específicos, já que estavam no epicentro do mundo capitalista e numa sociedade que tinha raízes históricas diferentes das dos países europeus.
Assim, o teatro estadunidense, durante a primeira metade do século XX, foi desenvolvendo feições que passaram a diferenciá-lo do teatro praticado em outros países, seja pelo fato de que os Estados Unidos tinham se tornado a nação econômica e militarmente hegemônica no plano internacional, seja pelo gigantesco crescimento de sua indústria de cinema e mídia e por seu imenso poder de construir e de vender imagens.
Ao longo desse período, dois nomes surgidos no campo da crítica, entre os anos 1920 e 1930, haviam se consolidado como referências tanto para diretores e encenadores como para estudiosos do teatro nos Estados Unidos: um era o de John Gassner [1903-1967], húngaro de nascimento (como Szondi) e radicado nos Estados Unidos desde 1911, e o outro era o de Eric Bentley [1916-], inglês de nascimento mas radicado nos Estados Unidos onde seguiu carreira acadêmica. Ambos, com diferentes trajetórias e perspectivas de trabalho, viriam a se tornar autores de obras de historiografia e análise crítica de dramaturgia que exerceram importante papel tanto por suas abordagens como pela ampla circulação editorial que tiveram em diferentes países, inclusive no Brasil.
Gassner era crítico teatral e curador de repertório (play reader) do Theater Guild, um importante núcleo de modernização dramatúrgica nos anos 1940 nos Estados Unidos, e trabalhou como docente temporário convidado na Universidade de Columbia, em New York, precisamente no período em que Augusto Boal lá estagiou, no início dos anos 1950.
Bentley, por sua vez, traduziu Brecht para o inglês, além de ter sido seu interlocutor e divulgador de seus trabalhos e escreveu um dos mais importantes livros sobre o engajamento no teatro.
Parte considerável da obra crítica de Gassner e de Bentley trata precisamente da dramaturgia do período estudado por Szondi em “Teoria do Drama Moderno”, mas as abordagens de um e de outro enveredam, necessariamente, por caminhos conceituais e metodológicos diversos. Gassner ministrava concorridas oficinas de estudo frequentadas por aspirantes a dramaturgo e por atores e atrizes. Foi por indicação sua que Augusto Boal, em seu período de estágio acadêmico em New York, teve carta branca para assistir oficinas de interpretação no disputadíssimo Actors’ Studio.
Bentley, por sua vez, exerceu papel importante para a recepção e os estudos de Brecht nos Estados Unidos, sem dúvida um considerável desafio, mas acima de tudo uma contribuição importante para o aporte das concepções brechtianas de pensamento teatral num contexto que lhes era tão distinto e em alguma medida tão adverso como o da sociedade estadunidense. Brecht havia vivido nos Estados Unidos entre 1941 e 1947, ano em que voltou para a Alemanha logo após prestar depoimento, sob intimação, perante o Subcomitê de Atividades Antiamericanas do Senado presidido pelo republicano Joseph McCarthy. Tensa e árdua havia sido sua vida de trabalho criador nos Estados Unidos nos anos em que lá viveu, e que se encontram registrados em um dos volumes de seus “Diários de Trabalho”.
Se tanto Gassner como Bentley haviam abordado em seus trabalhos críticos da dramaturgia de que trata Szondi, em “Teoria do Drama Moderno”, como seria a experiência de estudo de alguém que se interessasse em olhar para essa dramaturgia tomando por base os trabalhos deles dentro do contexto estadunidense? Que recortes temáticos e que ferramentas expressivas lhes pareceram dignas de nota, e por que razões? Que perspectiva historica seus trabalhos construíram nos Estados Unidos, um país que era historicamente novo, como o Brasil, mas que se caracterizava pela enorme contradição de ser hegemônico por sua economia, poder militar e indústria cultural, mas de até certo ponto dependente e importador de ideias?
Uma das questões que prontamente ocorriam a partir dessa pergunta, dizia respeito justamente ao épico: Szondi vê o épico como configuração expressiva que supera o dramático, o que o leva, nas observações finais de seu livro, a dizer, como ressalva necessária, que a historia da dramaturgia moderna ainda não tinha chegado ao seu último ato.
Ora, vista a partir dessa premissa (a de que o épico é a via de superação expressiva do dramático), a maior parte da dramaturgia estadunidense moderna teria que ser posta de lado por ser supostamente superada ou desprovida de interesse, já que não é o épico a estrutura com que se configura parte considerável das peças que formam o que poderíamos chamar de um cânone dramatúrgico moderno dos Estados Unidos. Seria como se deixássemos implícita a ideia de que a sociedade estadunidense, em que as forças produtivas capitalistas haviam atingido seu grau máximo de desenvolvimento, de exploração do trabalho e de alienação, não havia conseguido produzir uma única forma de expressão dramatúrgica que representasse os processos que lhe eram inerentes.
 É o próprio livro de Szondi que desmente esse entendimento: as peças de O’Neill, Miller e Wilder não lhe teriam interessado se ele não tivesse detectado nelas mecanismos estilísticos dignos de nota e dotados de especificidade representativa para seu estudo.
Sendo assim, uma nova pergunta se colocava necessariamente: de que forma Gassner e Bentley, críticos que atuaram tão centralmente dentro do mesmo contexto ao qual pertenciam esses dramaturgos estadunidenses, tratariam das transformações da dramaturgia moderna estudada por Szondi? Essa pergunta, nascida da curiosidade analítica, se tornou o gatilho propositivo do programa deste curso.
O trabalho crítico guarda sempre em si, de alguma forma, as marcas de seu tempo e de suas circunstâncias, e com isso faz surgirem, posteriormente, percepções que contrastam com as de outros momentos históricos e contextos. Ao revelarem em suas entrelinhas desvios ou lacunas de análise, trabalhos críticos significativos de outros períodos e contextos podem tornar flagrantes formas de percepção e de entendimento atuais, colocando em relevo as suas raízes históricas.
Tanto Gassner como Bentley foram extremamente prolíficos, e seus trabalhos constituem um conjunto extenso e representativo de abordagens que se revelam promissoras para o que se deseja estudar no programa proposto. Para essa finalidade foram tomados os seguintes livros, dos quais serão selecionados para leitura e discussão excertos previamente indicados: de John Gassner, “Form and Idea” e “Masters of Theatre II”, e de Eric Bentley, “The playwright as thinker” e “A experiência viva do teatro”.
Um outro lado da questão se apresentava, porém, no tocante ao contexto dramatúrgico posterior tanto ao de Szondi, que faleceu em 1971, como ao de Gassner (falecido em 1967) e de Bentley, em que pese a extraordinária longevidade deste: ficaria de fora do programa a dramaturgia das décadas finais do século XX? No contexto dos estudos teatrais contemporâneos, as obras teóricas do francês Jean-Pierre Sarrazac [1946-] e do alemão Hans Thies Lehman [1944-] mostravam ser, na FFLCH e fora dela, referências importantes para o campo de estudos de teatro.
Sarrazac havia escrito “O futuro do drama”, resultado de sua tese de doutoramento na Sorbonne nos anos 1970, trabalho que viria a ganhar tradução em Portugal em 2002. O fulcro de sua abordagem era a observação do processo que ele chamou de rapsodização do drama, numa perspectiva de análise que divergia e criticava a de Szondi.
Em que pese a forte ressonância das concepções de Sarrazac para o campo de estudos de teatro dessas últimas décadas do século XX, foi o livro de Lehman, “O teatro pós-dramático”, lançado em edição brasileira em 2007 com prefácio de Sérgio de Carvalho, que se revelou como fortemente determinante dos estudos e das práticas cências experimentais realizadas na USP e em seus entornos teatrais.
Lehman partia da superação histórica da forma do drama colocando em foco as modalidades de teatro contemporâneas que se apoiavam em outros parâmetros que não os do texto e os da ação cênica simbólica e mimética.
O conceito de “pós-dramático” ali introduzido aplicava-se às poéticas caracterizadas pela fragmentação da narrativa e pela desconstrução da mimese, e teve rápida acolhida tanto no âmbito acadêmico como nos meios ligados à criação teatral e à encenação. Uma inegável afinidade ligava-o ao conceito de “pós-moderno”, formulado nos anos 1990 e prontamente acatado por setores hegemônicos da crítica literária e artística. Esse aspecto, sem dúvida, contribuiu para a rápida assimilação do “pós-dramático” como perspectiva de atualização teórica amplamente acolhida nos estudos de teatro no Brasil. Em seu livro Lehmann apontava a tendência do teatro contemporâneo de absorver e incorporar elementos da arte performática e de rituais e cerimônias de diferentes naturezas, e enfatizava o fato de, nas modalidades ditas “pós-dramáticas” de teatro, o trabalho “não mais aspirar à expressão de uma totalidade”.
Por um lado, sua abordagem tratava como instigantes e profícuas as poéticas que se apoiavam na descontinuidade e nas fraturas e lacunas da representação simbólica; por outro, subentendia como obsoletas e equivocadas as poéticas que procuravam estabelecer conexões, analisar perspectivas de conjunto e historicizar a relação do teatro com a matéria sociopolítica simbolicamente representada por meio dele.
Se o programa proposto para o curso se dispunha a tratar de vozes críticas representativas no contexto estadunidense, quem ou qual seria o autor que ofereceria material para que não se deixasse de olhar, sob a perspectiva da dramaturgia, também justamente para o período mais próximo do contemporâneo?
O trabalho de Marvin Carlson [1935-], teórico e professor da City University of New York, forneceu a resposta por meio de um extenso conjunto de trabalhos relacionados ao assunto. Dentre eles constava com destaque “Theories of the theater. A historical and critical survey from Greeks to the present”, publicado nos Estados Unidos em 1995 e lançado em tradução brasileira em 1997 pela Editora da UNESP, mas constava também um ensaio de 2015 publicado na “Revista Brasileira de Estudos da Presença”, e que tinha o instigante título de “Teatro Pós-dramático e Performance Pós-dramática”.
Embora outros trabalhos da extensa obra crítica e teórica de Carlson também estivessem disponíveis para o leitor brasileiro, esses dois — e particularmente esse último — dialogavam de forma interessante com os estudos das configurações da dramaturgia numa era histórica caracterizada por sua assim chamada superação, e sem abstrair o contexto da dramaturgia e do teatro estadunidenses.
Completava-se, assim, o terceiro elo da corrente para a proposta do programa deste curso.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

John Gassner

Form and idea. The Dryden Press; First Edition edition (1956).
Mestres do teatro II. [tradução e organização Alberto Guzick e J. Guinsburg]. São Paulo: Perspectiva, 1996.

Eric Bentley

The theatre of commitment, and other essays on drama in our society. New York: Atheneum, 1967.
O teatro engajado / Eric Bentley; tradução de Yan Michalski -- Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
O dramaturgo como pensador: um estudo da dramaturgia nos tempos modernos: Wagner, Ibsen, Strindberg, Shaw, Pirandello, Sartre, Brecht / Eric Bentley; tradução de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
The Theory of the modern stage: an introduction to modern theatre and drama / edited by Eric Bentley. London: Penguin, 1992.

Marvin Carlson

Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade / Marvin Carlson. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997.
Performance: a critical introduction / Marvin Albert Carlson . New York: Routledge, 2004.
Performance: uma introdução crítica / Marvin Carlson; tradução Thais Flores Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
Postdramatic Theatre and Postdramatic Performance. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 577-595, Sept./Dec. 2015.
Teatro Pós-dramático e Performance Pós-dramática. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 577-595, set./dez. 2015.


Site da Internet: Acervo online dos Cadernos do Tablado. http://otablado.com.br/cadernos


Obs. Outros trabalhos críticos e teóricos serão indicados ao longo da disciplina.





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Conheça também:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360





Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti



e-mail: 
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Ingrid, Brueghel e o teatro de figuras alegóricas. Por Maria Sílvia Betti


Ingrid, Brueghel e o teatro de figuras alegóricas [1]. Por Maria Sílvia Betti [2]


Landscape with the fall of Icarus.

Paisagem com a queda de Ícaro.



De acordo com Brueghel
quando Ícaro caiu
era primavera

um fazendeiro arava
seu campo
o esplendor inteiro

do ano
acordara formigando
perto

da beira do mar
concentrado
em si mesmo

suando ao sol
que derreteu
a cera das asas

desapercebido
perto da orla
deu-se

um inaudível mergulho
era Ícaro
se afogando 

(Paisagem com a queda de Ícaro, tradução da autora) [3]




Em 1962 o poeta estadunidense William Carlos Williams [1883-1963] publicou o poema acima, Landscape with the fall of Icarus, que originalmente integrava uma série intitulada Pictures from Brueghel and Other Poems [4]. No texto Williams evocava o quadro de Brueghel [5] de título homônimo, assinalando a continuidade imperturbável e ininterrupta da vida, que não se crispava e nem se suspendia diante da queda de Ícaro [6]. Dele, na tela, apenas as pernas podiam ser vislumbradas num pequeno e quase imperceptível mergulho no canto direito inferior.

Ao contrário da composição pictórica de outros pintores, que antes e depois de Brueghel também trataram do tema, o mestre flamengo configurou seu quadro como um desafio ao olhar de quem o observa: a menção ao personagem mítico e sua queda condiciona o olhar a percorrer a tela ponto a ponto à procura da imagem. Esta é laboriosamente localizada, por fim, em posição secundária e sem destaque. Não há nela qualquer grandiosidade ou centralidade: a queda, na verdade, já ocorreu, e apenas o perscrutador atento conseguirá se dar conta de que, em meio ao esplendor da natureza e à continuidade da labuta do lavrador, o personagem lendário caiu sem impacto heroico e já foi parcialmente engolido pelo mar. A materialidade da subsistência prevalece e a pujança cromática da cena, num grande plano aberto, permite que se veja não só o camponês com seu arado, mas também o mar, barcos navegando e o horizonte em que o céu e as águas se encontram. Ícaro está sendo tragado pelas ondas, mas esse é apenas um flash momentâneo, pois tudo o mais, na sequência, seguirá seu rumo, numa celebração implícita e processual de tudo o que, ao contrário de Ícaro, permanece e vive.

A pintura de Brueghel é referência conceitual importante dentro do trabalho artístico e pedagógico de Ingrid Dormien Koudela. Poucos outros pesquisadores e formadores na área de estudos de teatro terão conseguido fazer uso tão consistente e tão funcional de uma referência como ela nas sucessivas abordagens que faz, em seus escritos teóricos e suas práticas pedagógicas, do repertório de procedimentos compositivos e de imagens do pintor.

Ingrid interessa-se por Brueghel por encontrar em seus quadros e gravuras elementos condizentes com o uso teatral de figuras alegóricas, não psicologizadas e não inseridas em narrativas apoiadas em relações de causa e efeito. Interessam-lhe os processos associativos sugeridos a partir de imagens, e interessa-lhe criar uma motivação lúdica que articule as camadas de imagens represadas no consciente e no subconsciente de quem as contempla. Brueghel proporciona a Ingrid estímulos significativos para ativar todos estes elementos de percepção, e estes são o fundamento do teatro de figuras alegóricas que tanto a apaixona. Tal como na pintura do artista, os elementos figurados devem, para ela, ser desierarquizados entre si: o procedimento narrativo é inerente ao próprio ato da perscrutação e inseparável dele. Como no quadro ao qual alude o poeta Williams, é a percepção que irá atuar como desencadeadora potencial dos mecanismos associativos.

O papel das imagens dentro da concepção bruegheliana de Ingrid é central, e a decifração delas pode trazer potencialmente consigo a possibilidade brechtiana do estranhamento. Estranhar liga-se estreitamente a historicizar, e é do estudo brechtiano intitulado O efeito de estranhamento nas pinturas narrativas de Peter Brüghel [7], o Velho, que Ingrid extrai a ideia da transitoriedade das pessoas e dos processos como elementos capazes de induzir percepções historicizadoras dentro desse teatro de figuras alegóricas que preconiza. Esse mesmo estudo de Brecht fornece-lhe, como ela própria ressalta, elementos capazes de alimentar a invenção pantomímica, inspiradora em potencial do gestus e elemento imprescindível da poética cênica brechtiana.

O material pictórico de Brueghel ilumina, paralelamente, uma outra faceta conceitual central do teatro de que trata Ingrid: a do chamado pós-dramático tal como entendido pelo teórico Hans Thies Lehmann [8] e praticado pelo dramaturgo Heiner Müller [9]. Contemplados a partir da perspectiva deles, os quadros e gravuras de Brueghel são compatíveis com a figuração cênica de uma realidade vista como fragmentária, inconclusiva e povoada de impossibilidades.

As cenas pictoricamente retratadas nas telas e gravuras brueghelianas desencadeiam estímulos para a imaginação alegorizante, para mecanismos associativos, para a expressão e a percepção de realidades autônomas dotadas de regularidades espaciais e temporais próprias, e que com isso criam um trânsito lúdico entre as camadas do consciente e do subconsciente. Fragmentos extraídos da cultura popular e do imaginário medievais povoam o espaço cênico com ruínas diversas, com figuras despsicologizadas, com estímulos perceptivos de amplo espectro.

Não se caracteriza com isso nenhuma forma de práxis, como observa Ingrid, e nem se articula uma linha de trabalho disposta a agir sobre as consciências ou a politizá-las: cria-se, porém, um campo diversificado e múltiplo de instauração cênica no plano do subconsciente, flagrado em sua relação com o pensar conceitual. No espaço potencial assim constituído, Ingrid vislumbra a latência de processos de criação e percepção em que o político, em alguma medida, está latente e pode potencialmente encontrar força para se manifestar. É do material pictórico de Brueghel que ela extrai o repertório processual e figurativo com que fundamenta, com tanta paixão e consistência, a proposta de um teatro de figuras alegóricas.



BIBLIOGRAFIA

KOUDELA, Ingrid. A cidade como alegoria. Disponível em: <http://seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/526/468>. Acesso em: 20 nov. 2019.

_______. Leitura das pinturas narrativas de Peter Brüghel, o velho. Ingrid Koudela (ECA/USP) IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. GT: Pedagogia do Teatro & Teatro na Educação.

_______. Teatro de figuras Alegóricas. Universidade de São Paulo/UNISO – Universidade de Sorocaba
Palavras-chave: encenação contemporânea; pedagogia do espectador

WILLIAMS, William Carlos. Collected Poems: 1939-1962, Volume II, New Directions Publishing Corp. 1962.








[1] Este artigo é a versão revista do texto Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (originalmente publicado em Ingrid Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).

[2] Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.


Livros:

Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), Oduvaldo Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).


* Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy), 2013. 
* Organizadora, prefaciadora e autora dos textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018) e Papa Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho. 
* Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004). 
* Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams. 


Artigos recentes:

* Teatro e movimentos sociais na cidade de São Paulo: um recorte comentado. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/>.

* O impulso e o salto: Boal em Nova Iorque (1953-1955). (In Blog da Cia. Fagulha).


* Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.


[3] Texto original disponível em: <http://www.english.emory.edu/classes/paintings&poems/williams.html>. Acesso em: 20 nov. 2019. Landscape with the fall of Icarus:

According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring

a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry

of the year was
awake tingling
with itself

sweating in the sun
that melted
the wings' wax

unsignificantly
off the coast
there was

a splash quite unnoticed
this was
Icarus drowning

[4] Pinturas de Brueghel e outros poemas.

[5] Pieter Brueghel, o Velho. Pintor e gravurista flamengo. [Nascimento entre 1525 e 1530 (data incerta), e falecimento em 1569].

[6] Personagem da mitologia grega conhecido por sua tentativa de deixar a ilha de Creta voando com asas de cera, tentativa que culminou com sua queda e morte nas águas do mar Egeu.

[7] Esta foi a grafia utilizada neste texto.

[8] [1944-]. Crítico e estudioso alemão de Teatro e Dramaturgia, autor de Teatro pós-dramático, publicado na Alemanha em 1999 e no Brasil em 2008: Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. Apresentação de Sérgio de Carvalho. São Paulo: Cosac & Naify.

[9] [1929-1995]. Dramaturgo alemão autor de “Hamletmáquina”, “Medeamaterial”, “A missão” e “Quarteto”, entre outros trabalhos.



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Conheça também:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360



Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti



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