Autoritarismo e luta política na pauta de uma peça fundamental do teatro brasileiro: Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho. Por Maria Sílvia Betti

 Autoritarismo e luta política na pauta de uma peça fundamental do teatro brasileiro: Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho. Por Maria Sílvia Betti [1]

 

Authoritarianism and political struggle in a fundamental play of Brazilian Theatre: Papa Highirte, by Oduvaldo Vianna Filho



Sérgio Britto e Tonico Pereira, em Papa Highirte. Foto: Funarte.

 

 

Resumo – Este artigo analisa alguns dos recursos dramatúrgicos utilizados na peça Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho, em relação ao contexto histórico e político da América Latina em 1968, ano de sua elaboração. Esses recursos são: o uso de planos ora paralelos ora consecutivos de espaço e tempo, a construção de nexos contrastivos subentendidos entre os tempos representados, a ironia dramática utilizada para a caracterização dos dois fios dramáticos de conflito e a construção de Highirte como protagonista sem protagonismo.

Palavras-chave: dramaturgia brasileira; teatro brasileiro; obra de Oduvaldo Vianna Filho

 

Abstract – This article analyzes some of the dramaturgical resources used in the play Papa Highirte, by Oduvaldo Vianna Filho, in relation to the historical and political context of Latin America in 1968, the year of its elaboration. These resources are: the use of sometimes parallel and sometimes consecutive plans of space and time, the construction of contrasting nexus implied between the times represented, the dramatic irony used to characterize the two dramatic threads of conflict and the construction of Highirte as protagonist without protagonism.

Keywords: Brazilian drama; Brazilian Theater; Oduvaldo Vianna Filho’s works

 

 Papa Highirte (1968), peça do dramaturgo brasileiro Oduvaldo Vianna Filho [1936-1974], trata da tentativa de retomada do poder por um ex-ditador deposto da fictícia república latino-americana de Alhambra e exilado há alguns anos na também fictícia Montalva: trata-se do protagonista, Juan Maria Guzamon Highirte, cognominado Papa Highirte, em analogia a Papa Doc (François Duvalier), ditador no Haiti de 1957 a 1971.

A deposição, de Highirte, supostamente exigida em nome de liberdades democráticas, havia sido orquestrada pelas cúpulas militares a serviço dos interesses de uma “potência estrangeira” hegemônica no cenário político e econômico internacional. Referências explícitas aos Estados Unidos e à sua política externa eram inviáveis no contexto político e cultural brasileiro sob a ditadura civil-militar instaurada em 1964.

Partindo dessa situação de exílio e de tensão histórica e política, a peça de Vianna coloca em foco o controle exercido por essa potência estrangeira sobre a América Latina por um lado, e as lutas das organizações revolucionárias de esquerda por outro.

O presente dramático da peça é situado no exílio, e portanto fora do período ditatorial de Highirte em Alhambra. Cenas das articulações conspiratórias em andamento alternam-se continuamente com cenas do passado, quando o então ditador governava cercado pelas cúpulas militares e o controle do Estado era assegurado por meio de perseguições e tortura.

Confinado agora em um bunker em Montalva, Highirte tenta obter apoios a seu plano de volta ao poder, sem saber que está na mira de um militante de uma organização de esquerda armada, Mariz, que pretende vingar o assassinato do companheiro e líder revolucionário Manito, vítima da tortura sob o governo do ex-ditador.

Manito era o sobrinho querido de Grissa, criada que acompanha Highirte em Montalva, embora nunca tenha aceitado a explicação oficial dada pelo governo do ex-ditador para a morte do rapaz. Para executar seu plano, Mariz entabula um relacionamento clandestino com Graziela, jovem amante do ex-ditador, e graças a ela consegue ser contratado como motorista, posição que deverá lhe dar a chance de pôr em prática o ato de vingança.

O passado recente de cada uma dessas personagens contém em si elementos fundamentais para o entendimento da trama em construção, e esta vai sendo explicitada gradualmente por meio de cenas que se alternam entre o presente em Montalva e o passado em Alhambra, materializado por meio de flashes back. Essa alternância é demarcada por modulações de luz, ressaltando muitas vezes, nas sequências apresentadas, as contradições entre a realidade dos fatos sob a ditadura de Highirte e suas justificativas oficiais.

Um exemplo de uma dessas sequências se apresenta quando, no passado, Grissa pede ao ditador pela vida de Manito, que está preso sob a acusação de assalto ao quartel da Terceira Divisão do Exército (VIANNA FILHO, 2019, p. 15) [2]. Segue-se cena do presente em que Highirte explica a ela, com impaciência, algo que alega ter-lhe dito já várias vezes: que Manito morrera numa tentativa de fuga, e não assassinado por torturadores (ibid., p. 17). Volta-se novamente o foco cênico para o passado, e flagramos então o próprio ditador perguntando ao General Perez y Mejia a respeito de denúncias sobre tortura feitas pelo jornal de oposição El Clarin, cujo fechamento é sintomaticamente exigido por Mejia (ibid., p. 18-19).

O contraste entre passado e presente, nessa sequência de cenas, evidencia o ocultamento dos fatos sob a vigência do governo de Highirte. Trazido à cena e intercalado ao presente, o passado é elucidado de forma inequívoca. A alternância entre os tempos é o recurso estrutural por meio do qual a supressão da verdade é exposta, revelando assim ao espectador e ao leitor o contexto real dos acontecimentos ocultados.

O enquadramento temporal dado às cenas explícitas de tortura sob o governo de Highirte, mostradas nos diversos flashes back, exerce função análoga. Essas cenas, embora situadas no passado, materializam-se simultaneamente a diferentes momentos do presente, e colocam assim em foco a evidência concreta da tortura e a ação de torturadores a serviço do governo do então ditador. Essa simultaneidade, em suas diversas ocorrências ao longo da peça, explicita o contexto de autoritarismo e os mecanismos nos quais se apoiava a ditadura de Highirte em Alhambra.

Uma cena marcante de utilização desse recurso é a da entrevista de admissão de Mariz para o emprego de motorista de Highirte no bunker, no plano do presente, enquanto paralelamente, no passado, dois encapuçados torturam um rapaz que é visto de costas e que tem exatamente sua estatura e compleição física. A figura de Mariz duplica-se, assim, nesses planos temporais simultâneos, ressaltando o sentido político de sua motivação e ao mesmo tempo tornando flagrante a prática da tortura sob o governo de Highirte.

Paralelamente, projeções rememoradas do passado militante de Mariz trazem à cena, em suas ocorrências, os debates internos da organização de luta armada à qual pertencia. Apresentam-se, nessas cenas, as posições de Manito, que defendia a ação de focos revolucionários de vanguarda, e de Mariz, que apoiava a organização coletiva e gradual da luta (ibid., p. 34). Nessas projeções Manito aparece em cena ensanguentado e algemado, antecipando as marcas da tortura que viria a sofrer. Trata-se de um recurso cênico que ressalta o elo entre seu assassinato sob tortura, no passado, e a determinação de vingança de Mariz no presente.

Se no caso de Mariz as rememorações recorrentes justificam o ato de vingança que planeja, no caso de Highirte, uma rememoração indesejada, na cena em que ele dança a chula e bebe pulque, lhe traz de volta duras palavras que ouvira do General Perez y Mejia sobre seu governo, levando-o a arremessar contra a parede a garrafa como que no desejo de dissipar a lembrança e o sentido da crítica ouvida naquele momento (ibid., p. 47). Trata-se de uma cena que agrega elementos fundamentais para a compreensão histórica e concreta do passado político de Highirte em seu governo.

Outro recurso igualmente importante para a evidenciação crítica desse passado em seu contraste com o presente encontra-se na cena em que o ex-ditador, ainda como governante de Alhambra, diz ao General Perez y Mejia que sabe ser amado pelo povo, ao passo que a cena que se segue, no plano do presente, expõe sua reação descabida e brutal ao ser surpreendido por uma brincadeira de Graziela que, chegando sem ser pressentida, venda-lhe os olhos com as mãos (ibid., p. 27). O tapa que ele imediatamente desfere na face da moça é uma reação patética de injustificada violência, e deixa transparecer claramente a fragilidade e o pânico do ex-ditador. O gesto, sugestivo do temor de um possível atentado, desmente a autoconfiança que ele ostentava no passado, na cena precedente, sobre a estima que lhe dedicava o povo de Alhambra. Trata-se de um recurso econômico e expressivo que, ao mesmo tempo, agrega elementos para a caracterização de Highirte como personagem.

A configuração de contraste entre presente e passado apresentada nessa cena repete-se em outra igualmente reveladora: Highirte tem Graziela em seus braços, no presente, enquanto em plano simultâneo, no passado, dialoga com Perez y Mejia e rebate as pressões por democratização que lhe são feitas pelo General (ibid., p. 31). Todos os fios dramáticos encontram-se representados de alguma forma nessa simultaneidade cênica: espectador e leitor, a essa altura, já sabem que a moça introduziu no bunker aquele que planeja executar o ex-ditador, e sabem também que Mejia, que havia assegurado pela força a implantação da ditadura de Highirte, seria também, posteriormente, articulador da chamada redemocratização que serviria de pretexto para sua derrubada.

A peça estrutura-se, como podemos constatar, sobre a construção de nexos contrastivos subentendidos entre os tempos. Esses nexos perpassam toda a sua tessitura dramatúrgica e cênica, e não se restringem às cenas consecutivas ou às simultâneas no tempo: também as que ocorrem em diferentes momentos do plano do passado apresentam, em seus conteúdos, elementos de importante elucidação crítica. É o caso, por exemplo, das interações entre Highirte e o General Perez y Mejia, seu principal assessor em Alhambra, no passado, e seu principal interlocutor no exílio no presente. Mejia, que outrora cobrara de Highirte o acirramento do autoritarismo, passa, a partir de um certo momento, a exigir-lhe a renúncia e a apontar para a necessidade de restabelecimento da democracia em Alhambra, já que essa é a linha que se tornou conveniente à “potência estrangeira” (ibid., p. 31-32).

As posições defendidas pelo General nessas cenas expõem a incipiência da estrutura do poder em Alhambra, a fragilidade política de Highirte, e ao mesmo tempo sua deficiente percepção tanto do contexto que o levou ao poder como daquele em que veio a ser derrubado.

A composição estrutural da peça apoia-se, como podemos constatar, na progressão de dois fios dramáticos tensionados entre si: um, que apresenta os empenhos conspiratórios de Highirte no presente à luz de seu passado como ditador, e outro, que acompanha no presente o plano de vingança de Mariz em andamento, sob as intermitentes lembranças da figura de Manito.

Para que as articulações tentadas por Highirte no presente se configurem em cena sem perda de seu sentido histórico, é necessário que a situação de Alhambra sob o governo de seu sucessor, Camacho, seja devidamente contextualizada, assim como a posição tomada a seguir pelas Forças Armadas sob a tutela da “potência estrangeira”.

Como o presente cênico está voltado para o exílio de Highirte em Montalva, os recursos utilizados para que essa contextualização aconteça são o da narração indireta, depreendida de réplicas do ex-ditador em ligação telefônica ao General Menandro (ibid., p. 39), e o do encontro do ex-ditador com o representante diplomático dessa “potência”, mediado por Menandro sob pressão insistente de Highirte (ibid., p. 42-43). Esses recursos trazem à pauta dramatúrgica elementos necessários para que, nos diálogos e interações, seja devidamente elucidada a conjuntura de Alhambra depois da deposição do ex-ditador.

O tão esperado encontro de Highirte com o diplomata estrangeiro coloca em cena, no presente, todos os agentes dramáticos ligados às questões políticas ligadas ao Estado e ao destino político de Alhambra. O tom é distanciado e bufonesco: Highirte não fala inglês e perde a paciência e a compostura, pois Menandro, além de ser um intérprete sofrível, exorbita de sua função a partir de uma certa altura, e passa a reproduzir e defender, em suas próprias considerações, os argumentos do Estrangeiro (ibid., p. 43). A cena empreende, assim, a síntese do contexto político de Alhambra e da América Latina nesse momento, deixando claro que as decisões determinantes são, no passado como no presente, as que atendem as demandas e interesses da “potência estrangeira”. Há um efeito épico implícito no potencial distanciamento resultante: vê-se claramente que a democratização exigida não trouxe e nem trará transformação política e nem avanço de liberdades democráticas, pois a prioridade continuará sendo pautada pela agenda política do país hegemônico que determina os destinos de Alhambra e do continente.

No que diz respeito à progressão dramática da peça, porém, é a execução do plano de Mariz que terá papel crucial: espectador e leitor sabem do plano de vingança do rapaz e testemunham a arrogância e o desdém com que Highirte se dirige a ele. O ex-ditador provoca-o abertamente dizendo-se supostamente indiferente à ideia de um possível envolvimento do rapaz com Graziela, e expondo a ele detalhes torpes de sua intimidade com a moça (ibid., p. 50).

Protagonista sem protagonismo, porém, Highirte é incapaz de se aperceber plenamente do contexto real à sua volta, seja no âmbito político, seja no plano imediato de sua sobrevivência no bunker. Embora saiba das apreensões de seu guarda-costas Morales quanto a sua segurança (ibid., p. 24), Highirte não suspeita do novo motorista, pois sente por ele o mesmo menosprezo que expressa sobre o povo humilde de Alhambra, e que não se intimida em expressar diante do próprio rapaz.

Mariz está disposto a ir até as últimas consequências para executar a tarefa que se tornou sua prioridade de vida. Contido e de poucas palavras, ele se vê sob o sofrimento constante das lembranças de Manito. Sua posição de antagonista na peça requer uma composição dramatúrgica dotada de relevo e complexidade expressiva. É necessário, assim, que em algum momento uma eclosão intensa de voz e fúria ocorra para que o sentido dramático e político de seu antagonismo se desenhe com o necessário vigor.

Essa eclosão ocorre na segunda parte da peça quando, num encontro amoroso clandestino com Graziela, Mariz se sente provocado pela desconcertante ingenuidade da moça, que tenta proporcionar-lhe as mesmas carícias e fantasias que lhe eram impostas por Highirte (ibid., p. 56). Apresenta-se, nessa cena, o estopim para que o rapaz, num longo e angustiante relato, entrecortado por rememorações de Manito, revele a ela que, não resistindo às sessões de tortura que sofreu na prisão, em Alhambra, acabou sendo responsável pela delação que levou à captura e ao assassinato do companheiro e líder (ibid., p. 60). A intempestividade emocional dessa fala expõe para Graziela não apenas o sentimento de Mariz, mas também o próprio plano, que ela até então ignorava. Trata-se de uma revelação que, potencialmente, poderá colocar Mariz em risco, uma vez que a moça, acuada por alguma situação de suspeita que se apresente, poderá vir a delatá-lo. Para Mariz, o plano de execução de Highirte é um caminho sem volta. A proposta de fuga que lhe faz Graziela depois de ouvi-lo é ignorada por ele e atua como indicadora de sua determinação inabalável e, ao mesmo tempo, como elemento importante de sua composição como personagem (ibid., p. 63).

A ironia, mecanismo crítico central da estrutura dramatúrgica, atuará decisivamente, na parte final da peça, no sentido de figurar as circunstâncias históricas e políticas de Alhambra e da América Latina nesse momento: o representante diplomático da “potência estrangeira” e o General Perez y Mejia preparam-se para derrubar Camacho, que subira ao poder depois da deposição de Highirte, e articulam um encontro com o ex-ditador. O motivo do encontro não é o de preparar a recondução deste ao poder, e sim dar-lhe ciência do plano de governo que será implantado (ibid., p. 86). Presume-se que haverá resistência por parte dos sindicatos e de alguns setores da indústria (ibid., p. 83), mas Perez y Mejia e Menandro avaliam que possuem apoio militar suficiente para sufocar essas manifestações, expulsar Camacho e assumir o controle do Estado em Alhambra (loc. cit.). Tendo esta etapa sido vencida, as centrais sindicais serão destruídas, aportes de investimentos estrangeiros serão feitos para as indústrias de café solúvel e eleições conduzidas pelas cúpulas militares serão realizadas a seguir. Tem-se aqui o ponto máximo de aproximação figurativa da peça com o contexto do golpe de 1964 no Brasil e com golpes perpetrados em vários outros países da América Latina nesse mesmo período. Highirte, agora isolado e sem qualquer perspectiva, desejava impor-se como “candidato natural”, mas é rechaçado precisamente por seu passado de ditador e pelas medidas repressivas que haviam assegurado sua ascensão ao poder.

Sentindo-se só e tendo fracassado em seu intento de retomada do poder, Highirte, ironicamente, tem em Mariz seu único interlocutor nesse momento, já que até Grissa decidiu demitir-se e voltar para Alhambra.

Fundamental para o rendimento crítico da peça, nessa cena final, é o fato de a fragilidade política e emocional de Highirte não fazer dele uma vítima, e de Mariz não ser heroicizado na execução de seu ato, cujo sentido político é pouco consistente. Propelido por um forte sentido de autocondenação, sua motivação de vida passou a ser a de executar Highirte: trata-se da única forma capaz de redimi-lo da culpa que o faz refém de sua própria consciência em face da morte de Manito. Vingar o companheiro é honrar sua fé revolucionária, mesmo que o ato não tenha um sentido determinante dentro da luta revolucionária propriamente dita.

  Colocados um diante do outro nessa última cena, é Highirte, agora, que se vê sozinho com o rapaz no bunker, e que lhe pergunta sobre seu próprio passado político e sobre os erros cometidos em seu governo. As respostas de Mariz são inicialmente lacônicas, mas, em sua sucessão, vão empreendendo pouco a pouco um retrospecto que culminará no desfecho planejado (ibid., p. 90).

Enquanto “Moço em Estado de sítio”, que Vianna tinha escrito três anos antes, encerrava-se com a evasão autodefensiva do protagonista, sitiado por suas próprias opções políticas e por sua própria cooptação dentro dos acontecimentos políticos do Brasil, “Papa Highirte” encerra-se com o autoenfrentamento de Mariz diante do passado que o aprisionava em sua própria consciência.

Sob o ponto de vista de sua escritura, essa opção formal não deixa de representar também um ato de enfrentamento compositivo do próprio Vianna, já que as questões figuradas no texto estavam (e em alguma medida estão ainda, de várias formas) histórica e politicamente em aberto e em processo.

“Papa Highirte” não foi o primeiro trabalho de Vianna a tratar da conjuntura política da América Latina: em “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”, escrito, encenado e publicado em 1967 [3], o contexto latino-americano tinha sido abordado dentro de uma estrutura de revista musical, fazendo farto uso de expedientes narrativos de humor e de sátira política. A peça, em sua irreverência e comicidade, tratava de forma contundente da matéria histórica abordada, colocando em pauta as mazelas políticas e econômicas da dependência, da militarização e da supressão das liberdades civis.

Nesse período, no contexto político da América Latina, os países enfrentavam sérias dificuldades econômicas. A prioridade dentro da política externa dos Estados Unidos, nação hegemônica no hemisfério, tinha passado a ser o Leste Asiático. No entanto, o agravamento das condições econômicas no Cone Sul passou a atrair a atenção de setores centrais do governo estadunidense. Diversos regimes militares, nesse contexto, foram assim implantados a partir da metade da década de 1960. Embora fossem bastante diversos entre si, eles evidenciavam um importante fator em comum: a ingerência da diplomacia dos Estados Unidos, sob a justificativa ideológica da tensão internacional entre o comunismo e o assim chamado “mundo livre” [4]. Com base nessa perspectiva, as políticas estadunidenses para a América Latina passaram a difundir a ideia de que cabia aos exércitos, sob a orientação tática dos Estados Unidos, garantir a ordem social e econômica. Assim, rapidamente, a burocracia estatal e o grande empresariado, em diversos países da América Latina, uniram seus interesses aos das cúpulas das Forças Armadas sob orientação estadunidense, e por meio de medidas de terror asseguraram o longo período de vigência que essas ditaduras teriam no período subsequente [6].

A crescente insurreição social das massas populares e as manifestações nacionalistas antiestadunidenses, nesse contexto, não deixaram de ocorrer, mas tornaram-se prontamente alvos de dura repressão. Perseguições políticas seguidas de tortura, desaparecimento e assassinato de militantes de esquerda e anulação de direitos democráticos tornaram-se constantes. Modelos de desenvolvimento baseados na concentração de renda e no achatamento salarial foram implantados de modo a permitir que o capital estrangeiro tivesse seu acesso à economia dos diferentes países franqueado pelas elites militares no poder.

O ano de 1968, em que “Papa Highirte” foi escrita, foi um dos mais conturbados politicamente em todo o mundo. No contexto brasileiro, especificamente, foi promulgado o Ato Institucional número 5 [8], assinalando a suspensão das liberdades civis. A notícia do assassinato do líder revolucionário Che Guevara, em outubro de 1967, havia levado quadros históricos do Partido Comunista Brasileiro a comunicarem publicamente suas dissidências, e sua posterior adesão à organização de luta armada Aliança Libertadora Nacional, apontando assim para a emergência de organizações de vanguarda revolucionária [9].

A riqueza, complexidade e agudeza constitutivas da peça Papa Highirte tocam no nervo histórico de questões enraizadas no plano das lutas da esquerda e da classe trabalhadora latino-americanas, e registram o imenso amadurecimento de Oduvaldo Vianna Filho como dramaturgo. Impossível, ao lermos sua peça, não lembrarmos das palavras de Noam Chomsky sobre as tendências fascistas presentes na América Latina, configurando uma modalidade política e econômica de “fascismo clientelista”, apoiado no sufocamento das conquistas sociais e na perpetuação de diversas formas de dependência [10]. Qualquer semelhança com o contexto da ascensão do poder militar em Alhambra sob o controle econômico e ideológico da “potência estrangeira” não é mera coincidência, e sim uma evidência da atualidade e pertinência do texto de Oduvaldo Vianna Filho.

 

Notas

 

[1] Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Organizadora, prefaciadora e autora dos posfácios das seguintes edições da obra de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal: Rasga Coração; Dossiê de Pesquisa sobre Rasga Coração (2018); Papa Highirte (2019); A longa noite de Cristal (2019). Autora de Dramaturgia comparada Estados Unidos/Brasil. Três Estudos. Cia. Fagulha (2017), e de Oduvaldo Vianna Filho. Edusp / Fapesp (1997).

 

[2] Oduvaldo Vianna Filho, Papa Highirte. Organização, apresentação e posfácio: Maria Sílvia Betti. São Paulo: Editora Temporal, 2019. Obs. Todas as notas relativas ao texto da peça serão feitas com base nesta edição.

 

[3] Oduvaldo Vianna Filho, Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex. Rio de Janeiro: Guanabara, 1967.

 

[4] Sobre os regimes militares implantados na América do Sul na década de 1960, o historiador Oswaldo Coggiola observa: “No que pesem as enormes diferenças, alguns pontos em comum a todos os regimes militares são evidentes: dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral.” Oswaldo Coggiola. Governos Militares na América Latina. São Paulo: Editora Contexto, 2001, p. 11.

 

[5] “Durante os longos anos em que perduraram as ditaduras militares, a forma principal do mecanismo de dominação política foi a união pessoal dos representantes do grande empresariado com a camada superior da burocracia estatal, com a “cúpula das Forças Armadas e com as sucessivas “equipes técnicas governamentais.” Mário Rapoport e Rubén Laufer. “Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da década de 1960”. Revista. Brasileira de Política. Internacional. Volume 43 (1) 2000.

 

[6] A dimensão continental das políticas estadunidenses para os países do Cone Sul se traduziu em uma generalizada adoção por suas Forças Armadas da doutrina militar propugnada a partir do National War College, centrada no combate ao “inimigo interno”. Os Exércitos latino-americanos deveriam reforçar sua função de garantes da ordem econômica e social. A “defesa do mundo ocidental” – sob a coordenação dos E.U.A. – substituiu o princípio da defesa nacional, cujos interesses eram identificados com os da potência líder do “mundo livre”. Mário Rapoport e Rubén Laufer. Op. cit., p. 71.

 

[7] “O cenário político da América do Sul foi marcado, ao longo das décadas de 1960 e 1970, pela emergência de ditaduras civil-militares e pela ascensão de diversas organizações revolucionárias, que, apesar de suas especificidades, também possuíam similitudes teóricas e práticas e, além disso, procuraram estabelecer articulações guerrilheiras, esboçando tentativas (na maioria dos casos, fracassadas) de efetivar um internacionalismo revolucionário na região.” Izabel Priscila Pimentel da Silva. “Em El Camino del Che”: Ditaduras militares, luta armada e internacionalismo revolucionário na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970. Cadernos do Tempo Presente – ISSN: 21792143, n.15, mar./abr., p. 57.

 

[8] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 01 out. 2020.

 

[9] Sobre a conjuntura em que ocorreram estas dissidências, veja-se Carlos Marighella. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 7. Sobre a Revolução Cubana como estímulo para organizações de esquerda armada, veja-se Vitor Amorim de Angelo. Ditadura militar, esquerda armada e memória social. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Universidade Federal de São Carlos, 2011, p. 33.


[10] Noam Chomsky and Edward S. Herman. The Washington Connection and Third World Fascism. South End Press. Boston. 1979, p. 55.

 

 



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