Apresentação - Oduvaldo Vianna Filho [1936-1974]: 2024, 50º aniversário de morte - Sobre Oduvaldo Vianna Filho - Por Maria Sílvia Betti

 

Apresentação
Oduvaldo Vianna Filho [1936-1974]:
2024, 50º aniversário de morte
Sobre Oduvaldo Vianna Filho

 Oduvaldo Vianna Filho - Vianinha



Maria Sílvia Betti

 

 

Oduvaldo Vianna foi o mais importante dramaturgo do Brasil na segunda metade do século XX, tanto por ter enfrentado agudos desafios em seu trabalho como por ter se colocado diante deles com o espírito de quem procura não apenas criar, mas pensar e colocar-se de forma crítica e transformadora dentro de seu contexto. Ligado à militância política comunista através de seus pais, Vianinha cresceu em contato com quadros históricos do PCB (Partido Comunista Brasileiro), como Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighela. Participou ativamente das transformações que o teatro sofreu dentro do processo de modernização e industrialização do país nas décadas de 1950 e 1960. Participou, também, de iniciativas fundamentais para a renovação do teatro como veículo de reflexões estéticas e políticas: juntamente com companheiros do Teatro de Arena de São Paulo, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, e do grupo Opinião, no Rio de Janeiro, empenhou-se em redefinir o papel do teatro dentro da vida social e política do país, e procurou sempre, paralelamente, romper os limites de classe que pesavam sobre a produção cultural e que separavam da classe trabalhadora os intelectuais e artistas.

Entre o final da década de 1950 e o período que precedeu o golpe de 1964, Vianna criou trabalhos que avançaram significativamente no sentido de representar as questões políticas nacionais e os problemas que se apresentavam para o proletariado. É o que vemos em peças como Chapetuba Futebol Clube, de 1958-9, A mais valia vai acabar, seu Edgar, de 1961, Brasil versão brasileira, de 1961-2, Quatro quadras de terra, de 1962, e Os Azeredos mais os Benevides, de 1963.

Mesmo enfrentando os vetos constantes da censura política impostos a seus trabalhos, já sob a ditadura, Vianna criou alguns dos mais importantes textos teatrais brasileiros dessa época, como Moço em Estado de sítio e Se correr o Bicho pega, se ficar o Bicho come, de 1965, Mão na luva, de 1966, Dura lex sed lex no cabelo só Gumex, de 1967, Papa Highirte, de 1968, Nossa vida em família e A longa noite de Cristal, de 1970-1, Corpo a Corpo, de 1971, Allegro Desbum, de 1973, e Rasga Coração, sua obra-prima concluída às vésperas de sua morte prematura em 1974.

Vianna escreveu, paralelamente, textos teledramatúrgicos dotados de grande poder de síntese de impasses cruciais que pesavam sobre a classe trabalhadora, como Medéia, em que foi inspirada a peça Gota d´Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque. Foi também, juntamente com Armando Costa, o responsável pelos roteiros que consagraram o seriado A Grande Família.

O trabalho de Oduvaldo Vianna Filho é fundamental não só para quem estuda dramaturgia, mas também e principalmente para todos os que se interessam pelo mergulho crítico nos processos históricos do país em sentido amplo, enxergados sob a perspectiva das classes trabalhadoras e das lutas políticas da esquerda. Seus trabalhos documentam a rigorosa e intensa pesquisa estética com que ele procurou tratar dessas questões, e ao mesmo tempo a forma analítica e profundamente autocrítica com que ele buscou amadurecer a reflexão política e os expedientes dramatúrgicos utilizados.

Os dramaturgos e encenadores brasileiros da primeira metade do século XX não haviam legado à geração que os sucedeu elementos que permitissem avançar decisivamente no tratamento dramatúrgico e cênico das questões imediatas do país. A necessidade de enfrentar esse desafio se tornou premente para os que os sucederam. Dentre eles foi Vianna que se debruçou com particular afinco e radicalidade sobre essa questão: seus trabalhos teatrais e seus textos ensaísticos, por isso, constituem o mais representativo e coeso conjunto de criações e reflexões produzido por sua geração no teatro brasileiro de sua época.

Vianna pertence à primeira geração de dramaturgos brasileiros a travar contato com o teatro de Brecht, e a descobrir nele expedientes importantes para a representação dramatúrgica de questões da estrutura material da sociedade, da exploração do trabalho, da figuração da luta de classes e do próprio papel do teatro.

Seu teatro como um todo insere-se num momento em que o país ingressava numa nova fase de desenvolvimento capitalista sem ter previamente superado as contradições relativas à sua estrutura econômica e administrativa e ao processo de industrialização em curso. Vianna recorreu com frequência às ferramentas épicas de expressão dramatúrgica, que utilizou tanto no CPC da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes), nos esquetes de teatro de rua, como nas peças mais longas escritas nas demais fases de seu trabalho.

A atualidade de seu trabalho é objetivamente constatável pelo modo analítico e reflexivo com que seu teatro responde às necessidades impostas pela matéria histórica representada em cada uma das fases de seu percurso.

Em um dos escritos ensaísticos que ele escreveu na época de sua participação no Teatro de Arena, no início de sua carreira, Vianna afirmava:

Quero fazer um teatro que pretende enriquecer o instrumento do homem, com que ele enfrenta a realidade, permitindo-lhe uma intervenção direta no seio mesmo das próprias condições que originam sua trágica existência - necessariamente trágica pelas condições, não porque suas vontades formam condições, porque as condições formam vontades. Um teatro que distinga a realidade da representação e dos valores que o homem dela tira para a modificação destes mesmos valores, mais aptos para enfrentar as condições que a originaram.[1]

 

Muitos anos mais tarde, ao escrever um Prólogo originalmente destinado a acompanhar sua última peça, Rasga Coração, ele escreveria:

 um teatro que exige do espectador

que deixe o ter a psicologia que tem

submete-o a uma extrema tensão psíquica

considera que a psicologia que temos

é uma vontade nossa

somos assim porque queremos ser assim

nós não consideramos a coisa essa maneira

 para nós, a psicologia que existe

é um sistema real para viver neste mundo

não podemos pedir portanto que você abandone você

o que queremos pedir é que você se divida,

lute consigo mesmo

à sua psicologia de vida presente

queremos apresentar uma psicologia de aspiração de um mundo melhor

e o queremos dividido, mais dividido,

não o queremos uno, inteiro, soberbo,

 nós o queremos dividido.[2]

 

A ideia do teatro como campo de debate de ideias e de organização do pensamento, a noção de um mundo historicamente determinado e por isso passível de transformação, e a busca constante e ininterrupta de aprofundamento das ferramentas artísticas de expressão foram elementos inerentes à forma pela qual Vianna pensou e desenvolveu seu trabalho. Tanto no campo do fazer teatral como no da construção de um pensamento crítico dentro da criação, Vianna avançou tão decisivamente porque vinha de uma trajetória ligada ao mesmo tempo à luta política e à prática artística, e porque as tratou como inseparáveis mesmo quando tensionadas entre si.




[1] O artista diante da realidade. In PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 73.

 

[2] VIANNA FILHO, Oduvaldo. Prólogo Inédito. In Rasga Coração. São Paulo: Editora Temporal,  2018, p. 166.



Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. É autora, entre outras obras, de Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos. São Bernardo do Campo-SP: Cia. Fagulha, 2017.

 


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