Quem tem medo de Virginia Woolf? De Edward Albee. Breves observações de análise. Por Maria Sílvia Betti

 

Quem tem medo de Virginia Woolf? De Edward Albee.

Breves observações de análise. Por Maria Sílvia Betti


Quem tem medo de Virginia Woolf?

Walmor Chagas, Fúlvio Stefanini, Cacilda Becker e Lilian Lemmertz.

Brasil. jun. 1965. Fotógrafo: Maureen Bisilliat

 

Ao escrever Quem tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) em 1962, Edward Albee não deixou pedra sobre pedra no que diz respeito à estrutura dramatúrgica de composição de suas personagens e à abordagem da universidade como campo representativo da ideologia dominante. O título originou-se em um grafitto que Albee teria visto num café do Greenwich Village, em Nova Iorque, na ocasião em que escreveu a peça, à qual havia inicialmente pensado dar o título, igualmente significativo, de O exorcismo (The exorcism).

Desde A história do jardim zoológico (The zoo story), seu primeiro texto teatral, de 1959, Albee vinha representando de forma crítica os fundamentos do assim chamado “sonho americano”, versão idealizada da vida na sociedade estadunidense e ao mesmo tempo epicentro da ideologia do Estado, representado como igualitário e democrático.

Em 1960 essa representação crítica havia sido explicitada por ele numa peça em um ato intitulada, justamente, O sonho americano (The American dream), cujo foco são as distorções assimiladas e reproduzidas dentro da instituição família e da classe média estadunidense.

Em Quem tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) o autor situa seus leitores e espectadores no campus de uma universidade localizada na cidade fictícia de Nova Cartago, na Nova Inglaterra, região nordeste dos Estados Unidos. A localização não poderia ser mais significativa para o papel crítico da peça, pois permite que as associações latentes no texto remetam simbolicamente às raízes da formação histórica e ideológica estadunidense desde a chegada dos colonizadores puritanos (1620), passando pela Guerra de Independência (1776) e consolidando-se por meio de remissões de ironia latente à Antiguidade clássica e ao mundo greco-romano. A Nova Inglaterra é, em larga medida, o nascedouro da cultura capitalista estadunidense, e esta é apresentada na peça em inequívoco processo de desintegração.

Alguns elementos dignos de nota, no que diz respeito à escritura, são a linguagem, com o uso de expressões de relevo crítico algumas vezes intraduzíveis, o uso mordaz e distanciado de remissões a cantigas infantis (nursery rhymes), o uso simbólico e igualmente distanciador e crítico da ideia de jogos (games) e das personagens como jogadores (players), as falas narrativas das personagens George e Nick remetendo a passagens reveladoras de seus respectivos passados, e os títulos dados aos três atos da peça que, numa gradação crescente iniciada em Divertimento e jogos, Ato I (Fun and games), passa pela Noite das bruxarias, Ato II (Walpurgisnacht) e conduz ao desfecho em O exorcismo, Ato III (The exorcism).

Com relação às cantigas infantis (nursery rhymes), é importante observar o uso paródico e distanciado que Albee faz delas na peça, explicitando seu uso pelas personagens com associações implícitas a aspectos sádicos já historicamente presentes em suas origens e exacerbados na forma como se repetem em diversas cenas. Pode-se dizer que o que Albee faz a esse respeito tem analogia com o recurso utilizado pelo poeta T.S.Eliot no poema Os homens ocos (The hollow men).

As quatro personagens da peça são diretamente representativas de pontos nevrálgicos da figuração crítica desse cerne ideológico abordado por Albee: Martha e George, casal de meia idade, respectivamente a filha do presidente da universidade (na nomenclatura estadunidense) e um professor do Departamento de História, residem no campus da universidade, e ao chegarem de uma festa acadêmica do corpo docente (faculty party), aguardam um casal de jovens convidados, Honey e Nick, para um último drinque mais íntimo. Nick é um recém-admitido professor do Departamento de Biologia, que com sua jovem esposa, Honey, provém do Meio Oeste do país, região amplamente associada à representação da mediania e da tipicidade do estilo de vida e pensamento do país no que estes têm de mais centralmente reprodutores do sistema dominante de ideias.

O pai de Martha é indiscutivelmente o personagem onipresente na peça, mesmo que não apareça em cena em nenhum momento. Tudo o que rege a vida do casal Martha e George é determinado pelas expectativas institucionais ligadas a ele.

A tensão é o elemento fundamental para a configuração de George como personagem e para sua função de condutor, a partir de certo ponto da peça, dos jogos que culminarão no exorcismo final. Pressionado pelo papel que dele esperava a instituição (o de professor gestor, atuante no sentido de fazer contatos capazes de atrair patrocínios e doações para a universidade) George é alvo de palavras depreciativas de Martha, que o vê como um fracassado. As palavras cáusticas dela, que George revida tanto quanto consegue, vão, pouco a pouco nos levando a inferir, ao longo da peça, que ele havia sempre priorizado o papel de professor pesquisador, preferindo a biblioteca ao gerenciamento de contatos lucrativos para a esfera administrativa da instituição, e vendo-se frustrado inclusive como autor de um romance cuja publicação foi vetada porque seu conteúdo havia sido considerado excessivamente chocante para os valores da universidade tal como entendida e gerida por seu sogro.

Sintomaticamente, o cerne compositivo de Quem tem medo de Virgínia Woolf? converge centralmente para outra figura não materializada em cena: a de um filho único imaginário, produto do pacto afetivo estabelecido entre Martha e George, filho este cuja existência simbólica dependeria do acordo mútuo em não fazer menção dela a quem quer que fosse. É da quebra deste pacto por Martha, e do exorcismo desta figura idealizada do filho, que Albee extrai elementos para levar seus leitores e espectadores ao ritual doloroso realizado por George, levando, ao final, às palavras de Martha em resposta à pergunta do estribilho da canção infantil parodiada.

Honey e Nick, o casal de jovens recém-entronizados nesse mundo acadêmico em clara deterioração intelectual, espelham Martha e George em versão rebaixada: Nick, como personagem, evidencia uma total aceitação de todas as premissas pessoais e institucionais, explícitas ou latentes, necessárias à carreira acadêmica que acaba de iniciar. Ao mesmo tempo, a gravidez histérica de Honey, que no passado recente o havia levado a casar-se com ela, espelha em versão degradada o filho imaginário de Martha e George.

Como se pode constatar por este breve apanhado, a pauta histórica e simbólica figurada na peça de Albee tem grande envergadura, passando por aspectos históricos, políticos, culturais, comportamentais e afetivos que, em seu conjunto, empreendem um painel contundente e denso de representação crítica de aspectos centrais da ideologia dominante estadunidense.

No Brasil a encenação de estreia de Quem tem medo de Virginia Woolf? se deu em 1965, tendo Cacilda Becker, Walmor Chagas, Fulvio Stefanini e Lilian Lemertz nos papéis das quatro personagens sob a direção de Maurice Vaneau. Sobre a encenação e particularmente sobre a interpretação de Cacilda e Walmor, Maria Thereza Vargas afirma: “Quem tem medo de Virgínia Woolf?, a última direção de Maurice Vaneau, com Cacilda no elenco, foi sem dúvida o ponto mais alto a que atingiram Walmor e Cacilda em suas carreiras, ricas na decantada interação interpretativa.”

 

 

Referências bibliográficas

 

 

ALBEE, Edward. Who’s afraid of Virginia Woolf? New York: Atheneum, 1970.

 

_______. Quem tem medo de Virginia Woolf? Tradução de Nice Rossoni. São Paulo: Editora Abril, 1977.

 

ELIOT, T.S. The hollow men. Disponível em: <https://www.lcsnc.org/site/handlers/filedownload.ashx?moduleinstanceid=19495&dataid=32553&FileName=The%20Hollow%20Men%20by%20T.%20S.%20Eliot.pdf>. Acesso em: 03 out. 2020.

 

_______. Os homens ocos. Tradução de Ivan Junqueira. Disponível em: <https://singularidadepoetica.art/2017/04/04/t-s-eliot-os-homens-ocos/>. Acesso em: 03 out. 2020.

 

VARGAS, Maria Thereza. Cacilda Becker. Uma mulher de muita importância. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2013, p. 123-124.

 



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Autoritarismo e luta política na pauta de uma peça fundamental do teatro brasileiro: Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho. Por Maria Sílvia Betti

 Autoritarismo e luta política na pauta de uma peça fundamental do teatro brasileiro: Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho. Por Maria Sílvia Betti [1]

 

Authoritarianism and political struggle in a fundamental play of Brazilian Theatre: Papa Highirte, by Oduvaldo Vianna Filho



Sérgio Britto e Tonico Pereira, em Papa Highirte. Foto: Funarte.

 

 

Resumo – Este artigo analisa alguns dos recursos dramatúrgicos utilizados na peça Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho, em relação ao contexto histórico e político da América Latina em 1968, ano de sua elaboração. Esses recursos são: o uso de planos ora paralelos ora consecutivos de espaço e tempo, a construção de nexos contrastivos subentendidos entre os tempos representados, a ironia dramática utilizada para a caracterização dos dois fios dramáticos de conflito e a construção de Highirte como protagonista sem protagonismo.

Palavras-chave: dramaturgia brasileira; teatro brasileiro; obra de Oduvaldo Vianna Filho

 

Abstract – This article analyzes some of the dramaturgical resources used in the play Papa Highirte, by Oduvaldo Vianna Filho, in relation to the historical and political context of Latin America in 1968, the year of its elaboration. These resources are: the use of sometimes parallel and sometimes consecutive plans of space and time, the construction of contrasting nexus implied between the times represented, the dramatic irony used to characterize the two dramatic threads of conflict and the construction of Highirte as protagonist without protagonism.

Keywords: Brazilian drama; Brazilian Theater; Oduvaldo Vianna Filho’s works

 

 Papa Highirte (1968), peça do dramaturgo brasileiro Oduvaldo Vianna Filho [1936-1974], trata da tentativa de retomada do poder por um ex-ditador deposto da fictícia república latino-americana de Alhambra e exilado há alguns anos na também fictícia Montalva: trata-se do protagonista, Juan Maria Guzamon Highirte, cognominado Papa Highirte, em analogia a Papa Doc (François Duvalier), ditador no Haiti de 1957 a 1971.

A deposição, de Highirte, supostamente exigida em nome de liberdades democráticas, havia sido orquestrada pelas cúpulas militares a serviço dos interesses de uma “potência estrangeira” hegemônica no cenário político e econômico internacional. Referências explícitas aos Estados Unidos e à sua política externa eram inviáveis no contexto político e cultural brasileiro sob a ditadura civil-militar instaurada em 1964.

Partindo dessa situação de exílio e de tensão histórica e política, a peça de Vianna coloca em foco o controle exercido por essa potência estrangeira sobre a América Latina por um lado, e as lutas das organizações revolucionárias de esquerda por outro.

O presente dramático da peça é situado no exílio, e portanto fora do período ditatorial de Highirte em Alhambra. Cenas das articulações conspiratórias em andamento alternam-se continuamente com cenas do passado, quando o então ditador governava cercado pelas cúpulas militares e o controle do Estado era assegurado por meio de perseguições e tortura.

Confinado agora em um bunker em Montalva, Highirte tenta obter apoios a seu plano de volta ao poder, sem saber que está na mira de um militante de uma organização de esquerda armada, Mariz, que pretende vingar o assassinato do companheiro e líder revolucionário Manito, vítima da tortura sob o governo do ex-ditador.

Manito era o sobrinho querido de Grissa, criada que acompanha Highirte em Montalva, embora nunca tenha aceitado a explicação oficial dada pelo governo do ex-ditador para a morte do rapaz. Para executar seu plano, Mariz entabula um relacionamento clandestino com Graziela, jovem amante do ex-ditador, e graças a ela consegue ser contratado como motorista, posição que deverá lhe dar a chance de pôr em prática o ato de vingança.

O passado recente de cada uma dessas personagens contém em si elementos fundamentais para o entendimento da trama em construção, e esta vai sendo explicitada gradualmente por meio de cenas que se alternam entre o presente em Montalva e o passado em Alhambra, materializado por meio de flashes back. Essa alternância é demarcada por modulações de luz, ressaltando muitas vezes, nas sequências apresentadas, as contradições entre a realidade dos fatos sob a ditadura de Highirte e suas justificativas oficiais.

Um exemplo de uma dessas sequências se apresenta quando, no passado, Grissa pede ao ditador pela vida de Manito, que está preso sob a acusação de assalto ao quartel da Terceira Divisão do Exército (VIANNA FILHO, 2019, p. 15) [2]. Segue-se cena do presente em que Highirte explica a ela, com impaciência, algo que alega ter-lhe dito já várias vezes: que Manito morrera numa tentativa de fuga, e não assassinado por torturadores (ibid., p. 17). Volta-se novamente o foco cênico para o passado, e flagramos então o próprio ditador perguntando ao General Perez y Mejia a respeito de denúncias sobre tortura feitas pelo jornal de oposição El Clarin, cujo fechamento é sintomaticamente exigido por Mejia (ibid., p. 18-19).

O contraste entre passado e presente, nessa sequência de cenas, evidencia o ocultamento dos fatos sob a vigência do governo de Highirte. Trazido à cena e intercalado ao presente, o passado é elucidado de forma inequívoca. A alternância entre os tempos é o recurso estrutural por meio do qual a supressão da verdade é exposta, revelando assim ao espectador e ao leitor o contexto real dos acontecimentos ocultados.

O enquadramento temporal dado às cenas explícitas de tortura sob o governo de Highirte, mostradas nos diversos flashes back, exerce função análoga. Essas cenas, embora situadas no passado, materializam-se simultaneamente a diferentes momentos do presente, e colocam assim em foco a evidência concreta da tortura e a ação de torturadores a serviço do governo do então ditador. Essa simultaneidade, em suas diversas ocorrências ao longo da peça, explicita o contexto de autoritarismo e os mecanismos nos quais se apoiava a ditadura de Highirte em Alhambra.

Uma cena marcante de utilização desse recurso é a da entrevista de admissão de Mariz para o emprego de motorista de Highirte no bunker, no plano do presente, enquanto paralelamente, no passado, dois encapuçados torturam um rapaz que é visto de costas e que tem exatamente sua estatura e compleição física. A figura de Mariz duplica-se, assim, nesses planos temporais simultâneos, ressaltando o sentido político de sua motivação e ao mesmo tempo tornando flagrante a prática da tortura sob o governo de Highirte.

Paralelamente, projeções rememoradas do passado militante de Mariz trazem à cena, em suas ocorrências, os debates internos da organização de luta armada à qual pertencia. Apresentam-se, nessas cenas, as posições de Manito, que defendia a ação de focos revolucionários de vanguarda, e de Mariz, que apoiava a organização coletiva e gradual da luta (ibid., p. 34). Nessas projeções Manito aparece em cena ensanguentado e algemado, antecipando as marcas da tortura que viria a sofrer. Trata-se de um recurso cênico que ressalta o elo entre seu assassinato sob tortura, no passado, e a determinação de vingança de Mariz no presente.

Se no caso de Mariz as rememorações recorrentes justificam o ato de vingança que planeja, no caso de Highirte, uma rememoração indesejada, na cena em que ele dança a chula e bebe pulque, lhe traz de volta duras palavras que ouvira do General Perez y Mejia sobre seu governo, levando-o a arremessar contra a parede a garrafa como que no desejo de dissipar a lembrança e o sentido da crítica ouvida naquele momento (ibid., p. 47). Trata-se de uma cena que agrega elementos fundamentais para a compreensão histórica e concreta do passado político de Highirte em seu governo.

Outro recurso igualmente importante para a evidenciação crítica desse passado em seu contraste com o presente encontra-se na cena em que o ex-ditador, ainda como governante de Alhambra, diz ao General Perez y Mejia que sabe ser amado pelo povo, ao passo que a cena que se segue, no plano do presente, expõe sua reação descabida e brutal ao ser surpreendido por uma brincadeira de Graziela que, chegando sem ser pressentida, venda-lhe os olhos com as mãos (ibid., p. 27). O tapa que ele imediatamente desfere na face da moça é uma reação patética de injustificada violência, e deixa transparecer claramente a fragilidade e o pânico do ex-ditador. O gesto, sugestivo do temor de um possível atentado, desmente a autoconfiança que ele ostentava no passado, na cena precedente, sobre a estima que lhe dedicava o povo de Alhambra. Trata-se de um recurso econômico e expressivo que, ao mesmo tempo, agrega elementos para a caracterização de Highirte como personagem.

A configuração de contraste entre presente e passado apresentada nessa cena repete-se em outra igualmente reveladora: Highirte tem Graziela em seus braços, no presente, enquanto em plano simultâneo, no passado, dialoga com Perez y Mejia e rebate as pressões por democratização que lhe são feitas pelo General (ibid., p. 31). Todos os fios dramáticos encontram-se representados de alguma forma nessa simultaneidade cênica: espectador e leitor, a essa altura, já sabem que a moça introduziu no bunker aquele que planeja executar o ex-ditador, e sabem também que Mejia, que havia assegurado pela força a implantação da ditadura de Highirte, seria também, posteriormente, articulador da chamada redemocratização que serviria de pretexto para sua derrubada.

A peça estrutura-se, como podemos constatar, sobre a construção de nexos contrastivos subentendidos entre os tempos. Esses nexos perpassam toda a sua tessitura dramatúrgica e cênica, e não se restringem às cenas consecutivas ou às simultâneas no tempo: também as que ocorrem em diferentes momentos do plano do passado apresentam, em seus conteúdos, elementos de importante elucidação crítica. É o caso, por exemplo, das interações entre Highirte e o General Perez y Mejia, seu principal assessor em Alhambra, no passado, e seu principal interlocutor no exílio no presente. Mejia, que outrora cobrara de Highirte o acirramento do autoritarismo, passa, a partir de um certo momento, a exigir-lhe a renúncia e a apontar para a necessidade de restabelecimento da democracia em Alhambra, já que essa é a linha que se tornou conveniente à “potência estrangeira” (ibid., p. 31-32).

As posições defendidas pelo General nessas cenas expõem a incipiência da estrutura do poder em Alhambra, a fragilidade política de Highirte, e ao mesmo tempo sua deficiente percepção tanto do contexto que o levou ao poder como daquele em que veio a ser derrubado.

A composição estrutural da peça apoia-se, como podemos constatar, na progressão de dois fios dramáticos tensionados entre si: um, que apresenta os empenhos conspiratórios de Highirte no presente à luz de seu passado como ditador, e outro, que acompanha no presente o plano de vingança de Mariz em andamento, sob as intermitentes lembranças da figura de Manito.

Para que as articulações tentadas por Highirte no presente se configurem em cena sem perda de seu sentido histórico, é necessário que a situação de Alhambra sob o governo de seu sucessor, Camacho, seja devidamente contextualizada, assim como a posição tomada a seguir pelas Forças Armadas sob a tutela da “potência estrangeira”.

Como o presente cênico está voltado para o exílio de Highirte em Montalva, os recursos utilizados para que essa contextualização aconteça são o da narração indireta, depreendida de réplicas do ex-ditador em ligação telefônica ao General Menandro (ibid., p. 39), e o do encontro do ex-ditador com o representante diplomático dessa “potência”, mediado por Menandro sob pressão insistente de Highirte (ibid., p. 42-43). Esses recursos trazem à pauta dramatúrgica elementos necessários para que, nos diálogos e interações, seja devidamente elucidada a conjuntura de Alhambra depois da deposição do ex-ditador.

O tão esperado encontro de Highirte com o diplomata estrangeiro coloca em cena, no presente, todos os agentes dramáticos ligados às questões políticas ligadas ao Estado e ao destino político de Alhambra. O tom é distanciado e bufonesco: Highirte não fala inglês e perde a paciência e a compostura, pois Menandro, além de ser um intérprete sofrível, exorbita de sua função a partir de uma certa altura, e passa a reproduzir e defender, em suas próprias considerações, os argumentos do Estrangeiro (ibid., p. 43). A cena empreende, assim, a síntese do contexto político de Alhambra e da América Latina nesse momento, deixando claro que as decisões determinantes são, no passado como no presente, as que atendem as demandas e interesses da “potência estrangeira”. Há um efeito épico implícito no potencial distanciamento resultante: vê-se claramente que a democratização exigida não trouxe e nem trará transformação política e nem avanço de liberdades democráticas, pois a prioridade continuará sendo pautada pela agenda política do país hegemônico que determina os destinos de Alhambra e do continente.

No que diz respeito à progressão dramática da peça, porém, é a execução do plano de Mariz que terá papel crucial: espectador e leitor sabem do plano de vingança do rapaz e testemunham a arrogância e o desdém com que Highirte se dirige a ele. O ex-ditador provoca-o abertamente dizendo-se supostamente indiferente à ideia de um possível envolvimento do rapaz com Graziela, e expondo a ele detalhes torpes de sua intimidade com a moça (ibid., p. 50).

Protagonista sem protagonismo, porém, Highirte é incapaz de se aperceber plenamente do contexto real à sua volta, seja no âmbito político, seja no plano imediato de sua sobrevivência no bunker. Embora saiba das apreensões de seu guarda-costas Morales quanto a sua segurança (ibid., p. 24), Highirte não suspeita do novo motorista, pois sente por ele o mesmo menosprezo que expressa sobre o povo humilde de Alhambra, e que não se intimida em expressar diante do próprio rapaz.

Mariz está disposto a ir até as últimas consequências para executar a tarefa que se tornou sua prioridade de vida. Contido e de poucas palavras, ele se vê sob o sofrimento constante das lembranças de Manito. Sua posição de antagonista na peça requer uma composição dramatúrgica dotada de relevo e complexidade expressiva. É necessário, assim, que em algum momento uma eclosão intensa de voz e fúria ocorra para que o sentido dramático e político de seu antagonismo se desenhe com o necessário vigor.

Essa eclosão ocorre na segunda parte da peça quando, num encontro amoroso clandestino com Graziela, Mariz se sente provocado pela desconcertante ingenuidade da moça, que tenta proporcionar-lhe as mesmas carícias e fantasias que lhe eram impostas por Highirte (ibid., p. 56). Apresenta-se, nessa cena, o estopim para que o rapaz, num longo e angustiante relato, entrecortado por rememorações de Manito, revele a ela que, não resistindo às sessões de tortura que sofreu na prisão, em Alhambra, acabou sendo responsável pela delação que levou à captura e ao assassinato do companheiro e líder (ibid., p. 60). A intempestividade emocional dessa fala expõe para Graziela não apenas o sentimento de Mariz, mas também o próprio plano, que ela até então ignorava. Trata-se de uma revelação que, potencialmente, poderá colocar Mariz em risco, uma vez que a moça, acuada por alguma situação de suspeita que se apresente, poderá vir a delatá-lo. Para Mariz, o plano de execução de Highirte é um caminho sem volta. A proposta de fuga que lhe faz Graziela depois de ouvi-lo é ignorada por ele e atua como indicadora de sua determinação inabalável e, ao mesmo tempo, como elemento importante de sua composição como personagem (ibid., p. 63).

A ironia, mecanismo crítico central da estrutura dramatúrgica, atuará decisivamente, na parte final da peça, no sentido de figurar as circunstâncias históricas e políticas de Alhambra e da América Latina nesse momento: o representante diplomático da “potência estrangeira” e o General Perez y Mejia preparam-se para derrubar Camacho, que subira ao poder depois da deposição de Highirte, e articulam um encontro com o ex-ditador. O motivo do encontro não é o de preparar a recondução deste ao poder, e sim dar-lhe ciência do plano de governo que será implantado (ibid., p. 86). Presume-se que haverá resistência por parte dos sindicatos e de alguns setores da indústria (ibid., p. 83), mas Perez y Mejia e Menandro avaliam que possuem apoio militar suficiente para sufocar essas manifestações, expulsar Camacho e assumir o controle do Estado em Alhambra (loc. cit.). Tendo esta etapa sido vencida, as centrais sindicais serão destruídas, aportes de investimentos estrangeiros serão feitos para as indústrias de café solúvel e eleições conduzidas pelas cúpulas militares serão realizadas a seguir. Tem-se aqui o ponto máximo de aproximação figurativa da peça com o contexto do golpe de 1964 no Brasil e com golpes perpetrados em vários outros países da América Latina nesse mesmo período. Highirte, agora isolado e sem qualquer perspectiva, desejava impor-se como “candidato natural”, mas é rechaçado precisamente por seu passado de ditador e pelas medidas repressivas que haviam assegurado sua ascensão ao poder.

Sentindo-se só e tendo fracassado em seu intento de retomada do poder, Highirte, ironicamente, tem em Mariz seu único interlocutor nesse momento, já que até Grissa decidiu demitir-se e voltar para Alhambra.

Fundamental para o rendimento crítico da peça, nessa cena final, é o fato de a fragilidade política e emocional de Highirte não fazer dele uma vítima, e de Mariz não ser heroicizado na execução de seu ato, cujo sentido político é pouco consistente. Propelido por um forte sentido de autocondenação, sua motivação de vida passou a ser a de executar Highirte: trata-se da única forma capaz de redimi-lo da culpa que o faz refém de sua própria consciência em face da morte de Manito. Vingar o companheiro é honrar sua fé revolucionária, mesmo que o ato não tenha um sentido determinante dentro da luta revolucionária propriamente dita.

  Colocados um diante do outro nessa última cena, é Highirte, agora, que se vê sozinho com o rapaz no bunker, e que lhe pergunta sobre seu próprio passado político e sobre os erros cometidos em seu governo. As respostas de Mariz são inicialmente lacônicas, mas, em sua sucessão, vão empreendendo pouco a pouco um retrospecto que culminará no desfecho planejado (ibid., p. 90).

Enquanto “Moço em Estado de sítio”, que Vianna tinha escrito três anos antes, encerrava-se com a evasão autodefensiva do protagonista, sitiado por suas próprias opções políticas e por sua própria cooptação dentro dos acontecimentos políticos do Brasil, “Papa Highirte” encerra-se com o autoenfrentamento de Mariz diante do passado que o aprisionava em sua própria consciência.

Sob o ponto de vista de sua escritura, essa opção formal não deixa de representar também um ato de enfrentamento compositivo do próprio Vianna, já que as questões figuradas no texto estavam (e em alguma medida estão ainda, de várias formas) histórica e politicamente em aberto e em processo.

“Papa Highirte” não foi o primeiro trabalho de Vianna a tratar da conjuntura política da América Latina: em “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”, escrito, encenado e publicado em 1967 [3], o contexto latino-americano tinha sido abordado dentro de uma estrutura de revista musical, fazendo farto uso de expedientes narrativos de humor e de sátira política. A peça, em sua irreverência e comicidade, tratava de forma contundente da matéria histórica abordada, colocando em pauta as mazelas políticas e econômicas da dependência, da militarização e da supressão das liberdades civis.

Nesse período, no contexto político da América Latina, os países enfrentavam sérias dificuldades econômicas. A prioridade dentro da política externa dos Estados Unidos, nação hegemônica no hemisfério, tinha passado a ser o Leste Asiático. No entanto, o agravamento das condições econômicas no Cone Sul passou a atrair a atenção de setores centrais do governo estadunidense. Diversos regimes militares, nesse contexto, foram assim implantados a partir da metade da década de 1960. Embora fossem bastante diversos entre si, eles evidenciavam um importante fator em comum: a ingerência da diplomacia dos Estados Unidos, sob a justificativa ideológica da tensão internacional entre o comunismo e o assim chamado “mundo livre” [4]. Com base nessa perspectiva, as políticas estadunidenses para a América Latina passaram a difundir a ideia de que cabia aos exércitos, sob a orientação tática dos Estados Unidos, garantir a ordem social e econômica. Assim, rapidamente, a burocracia estatal e o grande empresariado, em diversos países da América Latina, uniram seus interesses aos das cúpulas das Forças Armadas sob orientação estadunidense, e por meio de medidas de terror asseguraram o longo período de vigência que essas ditaduras teriam no período subsequente [6].

A crescente insurreição social das massas populares e as manifestações nacionalistas antiestadunidenses, nesse contexto, não deixaram de ocorrer, mas tornaram-se prontamente alvos de dura repressão. Perseguições políticas seguidas de tortura, desaparecimento e assassinato de militantes de esquerda e anulação de direitos democráticos tornaram-se constantes. Modelos de desenvolvimento baseados na concentração de renda e no achatamento salarial foram implantados de modo a permitir que o capital estrangeiro tivesse seu acesso à economia dos diferentes países franqueado pelas elites militares no poder.

O ano de 1968, em que “Papa Highirte” foi escrita, foi um dos mais conturbados politicamente em todo o mundo. No contexto brasileiro, especificamente, foi promulgado o Ato Institucional número 5 [8], assinalando a suspensão das liberdades civis. A notícia do assassinato do líder revolucionário Che Guevara, em outubro de 1967, havia levado quadros históricos do Partido Comunista Brasileiro a comunicarem publicamente suas dissidências, e sua posterior adesão à organização de luta armada Aliança Libertadora Nacional, apontando assim para a emergência de organizações de vanguarda revolucionária [9].

A riqueza, complexidade e agudeza constitutivas da peça Papa Highirte tocam no nervo histórico de questões enraizadas no plano das lutas da esquerda e da classe trabalhadora latino-americanas, e registram o imenso amadurecimento de Oduvaldo Vianna Filho como dramaturgo. Impossível, ao lermos sua peça, não lembrarmos das palavras de Noam Chomsky sobre as tendências fascistas presentes na América Latina, configurando uma modalidade política e econômica de “fascismo clientelista”, apoiado no sufocamento das conquistas sociais e na perpetuação de diversas formas de dependência [10]. Qualquer semelhança com o contexto da ascensão do poder militar em Alhambra sob o controle econômico e ideológico da “potência estrangeira” não é mera coincidência, e sim uma evidência da atualidade e pertinência do texto de Oduvaldo Vianna Filho.

 

Notas

 

[1] Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Organizadora, prefaciadora e autora dos posfácios das seguintes edições da obra de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal: Rasga Coração; Dossiê de Pesquisa sobre Rasga Coração (2018); Papa Highirte (2019); A longa noite de Cristal (2019). Autora de Dramaturgia comparada Estados Unidos/Brasil. Três Estudos. Cia. Fagulha (2017), e de Oduvaldo Vianna Filho. Edusp / Fapesp (1997).

 

[2] Oduvaldo Vianna Filho, Papa Highirte. Organização, apresentação e posfácio: Maria Sílvia Betti. São Paulo: Editora Temporal, 2019. Obs. Todas as notas relativas ao texto da peça serão feitas com base nesta edição.

 

[3] Oduvaldo Vianna Filho, Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex. Rio de Janeiro: Guanabara, 1967.

 

[4] Sobre os regimes militares implantados na América do Sul na década de 1960, o historiador Oswaldo Coggiola observa: “No que pesem as enormes diferenças, alguns pontos em comum a todos os regimes militares são evidentes: dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral.” Oswaldo Coggiola. Governos Militares na América Latina. São Paulo: Editora Contexto, 2001, p. 11.

 

[5] “Durante os longos anos em que perduraram as ditaduras militares, a forma principal do mecanismo de dominação política foi a união pessoal dos representantes do grande empresariado com a camada superior da burocracia estatal, com a “cúpula das Forças Armadas e com as sucessivas “equipes técnicas governamentais.” Mário Rapoport e Rubén Laufer. “Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da década de 1960”. Revista. Brasileira de Política. Internacional. Volume 43 (1) 2000.

 

[6] A dimensão continental das políticas estadunidenses para os países do Cone Sul se traduziu em uma generalizada adoção por suas Forças Armadas da doutrina militar propugnada a partir do National War College, centrada no combate ao “inimigo interno”. Os Exércitos latino-americanos deveriam reforçar sua função de garantes da ordem econômica e social. A “defesa do mundo ocidental” – sob a coordenação dos E.U.A. – substituiu o princípio da defesa nacional, cujos interesses eram identificados com os da potência líder do “mundo livre”. Mário Rapoport e Rubén Laufer. Op. cit., p. 71.

 

[7] “O cenário político da América do Sul foi marcado, ao longo das décadas de 1960 e 1970, pela emergência de ditaduras civil-militares e pela ascensão de diversas organizações revolucionárias, que, apesar de suas especificidades, também possuíam similitudes teóricas e práticas e, além disso, procuraram estabelecer articulações guerrilheiras, esboçando tentativas (na maioria dos casos, fracassadas) de efetivar um internacionalismo revolucionário na região.” Izabel Priscila Pimentel da Silva. “Em El Camino del Che”: Ditaduras militares, luta armada e internacionalismo revolucionário na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970. Cadernos do Tempo Presente – ISSN: 21792143, n.15, mar./abr., p. 57.

 

[8] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 01 out. 2020.

 

[9] Sobre a conjuntura em que ocorreram estas dissidências, veja-se Carlos Marighella. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 7. Sobre a Revolução Cubana como estímulo para organizações de esquerda armada, veja-se Vitor Amorim de Angelo. Ditadura militar, esquerda armada e memória social. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Universidade Federal de São Carlos, 2011, p. 33.


[10] Noam Chomsky and Edward S. Herman. The Washington Connection and Third World Fascism. South End Press. Boston. 1979, p. 55.

 

 



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Conheça também:

 

de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)

 

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos

Autora: Maria Sílvia Betti

Editora: Cia. Fagulha

ISBN 13:       978-85-68844-03-8

Páginas:       360

 



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Psicanálise e Poder: a leitura de Freud do Moisés de Michelangelo. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


Psicanálise e Poder: a leitura de Freud do Moisés de Michelangelo.
Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


Orcid: orcid.org/0000-0003-4528-8776

Publicado anteriormente em: Caderno de Psicologia da UniABC, Santo André, Ano IV, n. 32, p. 9-29, 2002.



NOTA PRELIMINAR, de Maria Sílvia Betti: 

Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico anterior, publicado em 2002 na Revista UniABC - Humanas, publicação da UniABC. Essa Universidade depois ficou sob o controle administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton, criando assim a maior companhia de educação do mundo. 

Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho docente.

A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma luta continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo exercido pelos professores em todos os seus níveis.


Psicanálise e Poder: a leitura de Freud do Moisés de Michelangelo.

Por Agenor Bevilacqua Sobrinho [*]




MICHELANGELO. Moisés. c. 1513-1515 [1].

Mármore; alt. 2,35 m. S. Pietro in Vincoli, Roma.


Resumo

Neste trabalho fazemos uma análise dos problemas e discussões suscitados por Freud na sua leitura do Moisés de Michelangelo.
Palavras-chave: Freud, Michelangelo, Moisés, Moisés de Michelangelo

Abstract

In this work we make an analysis of the problems and discussions raised by Freud in his interpretation of Moses by Michelangelo.
Keywords: Freud, Michelangelo, Moses, Michelangelo’s Moses.


1.         Introdução
Neste trabalho fazemos uma análise dos problemas e discussões suscitados por Freud na sua leitura do Moisés de Michelangelo. Inicialmente apresentamos breve biografia de Michelangelo e, resumidamente, cinco pontos de vista acerca de Moisés, a saber: primeiro e segundo - duas obras cinematográficas (Moisés e Os dez mandamentos); terceiro - o Moisés bíblico; e quarto e quinto - duas esculturas (Estatueta de Moisés, atribuída a Nicolas de Verdun e o Poço de Moisés, de Claus Sluter). Em seguida, na conclusão, realizamos uma reflexão sobre o poder e sobre a autoridade.

2.         Michelangelo Buonarotti
Michelangelo Buonarotti, arquiteto, escultor, pintor e poeta, nasceu em Caprese, em 1475, e faleceu em Roma em 1564, aos 89 anos. Discípulo de Ghirlandaio e influenciado por Donatello e pela cultura clássica, seus trabalhos expressam vigor e energia ímpares.
Em certo sentido, sua obra rivaliza com aquela atribuída a Deus, pois seus esforços lembram a “criação”: ao estabelecer uma luta com a matéria da qual quer liberar a figura refém do mármore, prevê sua existência encarcerada no bloco em bruto. Dizia ele: “...eu só retiro as sobras, a estátua já está lá”. Uma vez que a estátua está contida na pedra, podemos perceber que a criação artística tem por objetivo libertar o que permanece impedido, tolhido e dar-lhe expressão.
Moisés figura entre suas obras mais importantes. Mas por que esta figura para decorar o túmulo de Júlio II?
Há um vínculo entre o caráter do papa e as relações dele com Michelangelo. São personalidades que desejavam realizar obras cuja grandeza ultrapassam séculos. Talvez Michelangelo também tenha querido despertar em suas explosões temperamentais Moisés, mas controlou-se.
A elaboração do Moisés foi demorada, porque o papa interrompeu o trabalho do artista na fase inicial do projeto do sepulcro para que Michelangelo fosse decorar a fresco o teto da Capela Sistina; e o fez relutando em abandonar sua obra recém-iniciada, e, é claro, diante da força e da adulação papal acabou por se render.
Por que a figura de Moisés de Michelangelo é analisada por Freud?
Quiçá pelo paralelo biográfico de Freud com a figura do pai e de seus traidores. A importância de Moisés na obra freudiana é impressionante, chegando a finalizá-la com Moisés e o monoteísmo.
Freud também se aproxima de Michelangelo pelo fato de que ambos têm seus trabalhos transitando entre o abandono pela hesitação e a obstinação em decifrar enigmas, o que lhes permitem concluir suas obras.

3.         Duas representações cinematográficas
O Moisés [2], desempenhado por Burt Lancaster, embora seja forte [3], apresenta, desde o início do filme, um rosto tranquilo e sereno, transfigurado em algum instante anterior ao qual o espectador não teve acesso; porque grande período de sua vida foi omitido, e já o encontramos com a feição de um indivíduo maravilhado. Serve-se de seu irmão, Aarão, como porta-voz para informar ao faraó os desígnios de Deus, uma vez que Moisés declara-se homem “sem eloquência” (Êxodo. 4:10).
No filme, Deus adverte: — “E eu os atormentei com insatisfação, para que somente em mim eles se encontrassem”. Ou seja, o tributo para a paz de espírito é o penar, que atormenta, enviado pelo Senhor para nos testar.
O resumo do filme nos conta que “Moisés, recém-nascido, escapa do Édito que proclama a morte de todos os meninos hebreus e é criado na Corte egípcia pela princesa. Depois, Moisés volta à vida simples, enfrenta o faraó, prevê as dez pragas, lidera o êxodo, recebe os dez mandamentos e conduz seu povo à Terra Prometida.” Um herói!
Por outro lado, o Moisés de Cecil B. DeMille [4] é ainda mais robusto fisicamente; é construída a imagem do rebelde portador da força divina para livrar seu povo.
Antes de cair em desgraça e ser perseguido, é o guerreiro que adquire constantemente novos territórios para o Egito, e por isso, rivaliza com o irmão (Yul Brynner), filho do faraó, na conquista do trono.
A partir de seu primeiro “encontro com Deus”, seu rosto é transfigurado e as marcas do tempo se acentuam em seus cabelos e barbas grisalhos velozmente.
Através de um narrador, presente em cena, somos informados de que a Bíblia omite 30 anos da vida de Moisés, mas que o filme tenta recompô-los. O resumo conta apenas do “bebê de três meses de idade, achado no Nilo por Bithiah, a filha do faraó, e adotado na Corte; porém, caiu em desgraça quando descobriu que era hebreu e matou um egípcio”. Acrescenta o narrador que o “tema do filme é se o homem deve ser governado por leis divinas, ou pelos desmandos de um ditador como Ramsés. É o homem propriedade do Estado? Ou são almas livres sob as leis de Deus? Semelhante batalha continua até hoje” (Grifo nosso). Aqui temos uma “pérola” da Guerra Fria.
Essa história de três mil anos, escrita nos 5 livros atribuídos a Moisés e “divinamente inspirada”, é esclarecedora para nosso objetivo. Quem é o Moisés bíblico e em que se difere do encontrado por Freud, na estátua de Michelangelo?

4.         O Moisés bíblico
Diz o Êxodo, livro do Pentateuco [5], que os egípcios escravizaram os filhos de Israel e os lamentos deste povo subiram aos céus, e Deus, contrafeito, lançou sobre os egípcios, no humilde casebre de Anrão e Joquebede, a semente do homem que seria o portador dos Dez Mandamentos e levantar-se-ia contra a tirania do império. Portanto o Êxodo é o livro da redenção dos israelitas oprimidos do Egito.
Por precaução, o imperador Ramsés I lança um édito no qual estabelece que todo recém-nascido hebreu do sexo masculino deve morrer. Mas aquele que viria a ser a salvação do povo hebreu escapa por um estratagema: viaja na cesta flutuante onde é encontrado pela princesa, criado por uma mãe hebreia e adotado pela princesa quando menino já grande (Êxodo. 2:1-10). As águas representam aqui o primeiro artifício pelo qual o “herói” Moisés, “o retirado das águas”, está condenado a ser um instrumento de Deus. Depois, Moisés se envolve em uma altercação e mata um egípcio que feriu um varão hebreu e foi obrigado a exilar-se (2:11-15).
Deus fala a Moisés e promete-lhe livrar os israelitas, o povo eleito, do jugo egípcio (3:7-10); como o novo faraó tem o coração obstinado e não cede, o Deus irascível manda toda sorte de pragas aos egípcios: das águas tornando-se sangue, das rãs, dos piolhos, das moscas, da peste nos animais, da saraiva, dos gafanhotos, das trevas, da morte dos primogênitos, do mar que engole os exércitos.
É preciso ressaltar que é Deus quem faz o coração do faraó ser obstinado para Seu marketing pessoal: — “Mas deveras para isto te mantive, para mostrar o meu poder em ti, e para que o meu nome seja anunciado em toda a Terra” (9:16).
Deus manda: — “...guie o povo pelo caminho, e anuncia a ruína dos egípcios...” (14:26). Assim, os israelitas têm a passagem pelo meio do mar aberta enquanto os egípcios perecem.
O Senhor dita os mandamentos de caráter moral (20:1-26); as ordenanças de caráter social (21:1 — 24:11); e os regulamentos de caráter religioso (24:12 — 31:18). E dá a Moisés as duas Tábuas do testamento de pedra, escritas com o dedo de Deus (31:18).
A infração da lei, o culto ao bezerro de ouro, provoca a ira de Deus; Moisés suplica clemência para o seu povo e “então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo” (pela interferência de Moisés, que intercede por seu povo, Deus, agora não mais irascível, mas submisso, muda de ideia. Para quem não era tão eloquente, nada mal.)
Porém, Moisés, ao contemplar a transgressão, ficou furioso e “arremessou as Tábuas de suas mãos, e quebrou-as ao pé do monte (32-19). Como castigo, Moisés manda matar, em nome do Senhor, os idólatras: “e caíram do povo aquele dia uns três mil anos” (32-28). O povo é obstinado!, mas Deus, zeloso. E do alto de sua misericórdia, concede novas Tábuas dos Dez Mandamentos (34-1), nas quais Ele estabelece um pacto com os homens. Moisés, portanto, dando vazão a sua ira, encontra um Deus obsequioso, pronto a esculpir novas pedras da lei quando necessário. Há de se notar, ainda, que os encontros com Deus têm caráter privado: “E ninguém suba contigo, e também ninguém apareça em todo monte” (34:3).

5.         Duas esculturas
A estatueta de Moisés (de 1180), atribuída a Nicolas de Verdun, retrata um ancião irado que aperta suas madeixas. Nada do vigor físico do Moisés de Michelangelo.
Por outro lado, em o Poço de Moisés (1395-1406, Cartucha de Champmol, Dijon), de Claus Sluter, embora o artista tenha erigido uma figura de 1,83 cm, a expressão do velho Moisés guarda mais uma textura de penar e não lembra a força e a robustez do idoso retratado por Michelangelo.

[À esquerda, detalhe] 
CLAUS SLUTER. O Poço de Moisés. 1395-1406 [6].
Alt. das figuras. c. 1,83 m. Cartucha de Champmol, Dijon.


Acrescente-se, ainda, que a mão direita de Moisés, na obra de Sluter, sustenta as Tábuas da Lei em apenas uma das bandas [7], no seu lado superior. Não há displicência neste ato, mas quase uma desistência da crença na eficácia de uma arma que Moisés supunha poderosíssima (suas Tábuas) diante daquele povo ímpio, obstinado em adorar o bezerro de ouro e demonstrando-se indômito. Daí o ato de fúria de arremessar as pedras [8] e o recurso da reedição das Tábuas pelo escultor divino, o qual mantém seu atelier no Monte Sinai de prontidão para convencer os incrédulos dos poderes de Moisés; o que nos assinala um líder político arguto, ladino e afinado com o que hoje chamaríamos de realismo político.

6.         A análise de Freud
Além de haver hesitado, por um bom tempo, em publicar Moisés de Michelangelo, quando o fez, Freud apresentou-se anonimamente [9], existindo um intervalo de dez anos entre sua primeira aparição (1914) e a revelação da identidade de seu autor (1924). Era para ele uma obsessão: visitou várias vezes a estátua, e, ainda, mandava lembranças a “Moisés” através daqueles que viajavam a Roma (GAY, Peter, 1989, p. 293).
   


Desenho do ensaio de
Freud sobre Moisés [10].

Notamos, logo no primeiro parágrafo do texto, um pedido de indulgência de Freud a seus leitores, uma vez que ele não é um especialista em arte, mas “simplesmente um leigo” (FREUD, 1976, p. 253). Pretensa humildade, pois somos informados logo adiante (Ibidem, p. 254) que a interpretação para se descobrir a intenção do artista foi franqueada com o instrumental da psicanálise.
Freud adorava decifrar enigmas e atormentava-se quando não conseguia fazê-lo (GAY, Peter. Op. cit., p. 292). É preciso, segundo ele, compreender o efeito produzido pelas obras de arte que intriga o observador; aduzindo que, ao não apreendê-lo, sucede o desprazer. Por isso, o tema da obra é mais atraente, embora aos artistas as propriedades formais muitas vezes chamem mais a atenção.



[À esquerda] Túmulo do papa Júlio II [11],
do qual a estátua de Moisés é fragmento. c. 1512-1516.
    
[À direita, detalhe] MICHELANGELO. Moisés. c. 1513-1515.

A obra cujo significado e conteúdo será objeto de análise é a estátua sedestre de Moisés (altura de 2,35 m), situada na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Ela é fragmento e guardiã, entre outras, do túmulo do papa Júlio II, e estima-se ter sido construída entre 1512 e 1516.
Freud relata a dificuldade de acesso (“os íngremes degraus”), e que é necessário aturar “o desgracioso Corso Cavour” para poder, finalmente — a Terra Prometida (!) —, “suportar o irado desprezo do olhar do herói”; e, às vezes, Freud identificava-se à turba alienada, objeto de censura do olhar de Moisés (FREUD. Op. cit., p. 255). Ora, isto faz parte do trabalho do intérprete ou ele também se considerava, em alguma instância, um infiel?
Moisés, o Legislador dos Judeus, segurando as Tábuas dos Dez Mandamentos, lá está representado. Todavia, a crítica de arte em relação a este trabalho não é consensual e até mesmo a contradição parece condensar a maior parte das opiniões, uma vez que ele é julgado de formas as mais díspares possíveis; o que explica a preocupação freudiana em fazer um inventário completo das outras leituras por que passou a obra de Michelangelo.
A descrição:
O Moisés de Michelangelo é representado sentado; o corpo volta-se para frente, a cabeça com a pujante barba olha para a esquerda, o pé direito repousa sobre o solo e a perna esquerda acha-se levantada de maneira que apenas os artelhos tocam o chão. O braço direito une as Tábuas da Lei a uma parte da barba e o esquerdo repousa sobre o colo (Ibid., 1976, p. 256).
  A expressão facial de Moisés nas palavras de Thode, citado por Freud é:
...uma mescla de ira, dor e desprezo (...) ira em suas sobrancelhas ameaçadoramente contraídas, dor no olhar e desprezo no lábio inferior saliente e nos cantos da boca, voltados para baixo (Ibid., p. 257).

  

MICHELANGELO. Moisés.
Detalhe [12].
c. 1513-1515.

Os cornos míticos ostentados na fronte “representam a luz radiante que veio ao rosto de Moisés após ver Deus” (GAY, Peter. Op. cit., 293). A tensão psíquica é tão grande que levou muitos a pensarem que a moldura canhestra não conseguiria enquadrar tanto vigor. Mas, afinal, o que está sendo retratado? Qual a intenção do artista e por que ele construiu tal obra?
A tranquilidade está por um fio, aí vem a tensão? Moisés está por levantar-se ou reprimiu este desejo? A tensão nas pernas, os artelhos arqueados, indicam o início ou o final de uma ação?
O Moisés de Michelangelo é a figura do legislador ou do colérico personagem bíblico que quebra as Tábuas recebidas “de Deus”?
Nos diz o texto bíblico que Moisés traz as Tábuas e se decepciona ao perceber que o povo adorava o Bezerro de Ouro e, portanto, argumentam alguns, o momento retratado é o que precede a explosão de ira, destruindo as Tábuas no chão e vingando-se do povo infiel (não por sua vontade, mas por desígnio de Jeová).
No entanto, Freud pondera que a estátua de Moisés, participante do conjunto de outras que estão recostadas, quase deitadas na parte superior do túmulo, tem também efeito decorativo e seria incômodo, estranho e desarmônico que o artista mostrasse um dos integrantes prestes a abandonar seu posto de guarda, deixando seus companheiros; porém, com isso, ressaltou-se, sim, a força de sua individualidade: um ancião forte, robusto, que traz as Leis com estatuto divino.
Por outro lado, Michelangelo representa Giuliano de Medici sentado em repouso em sua Capela, e o pé esquerdo também aparenta a menção de movimento encontrada em Moisés.
  


MICHELANGELO. Túmulo de Giuliano de Medici [13].
c. 1524-34. Mármore; alt. da figura central 1,80 m.
Sacristia Nova, San Lorenzo, Florença.

Moisés segura as Tábuas com firmeza, diz Freud, pois são objetos sagrados, e seus movimentos estão na realidade confinados ao domínio da representação artística do movimento e da interpretação, uma vez que o mármore prende Moisés firmemente, de maneira mais poderosa do que, diríamos nós, uma fotografia faria a um outro ser representado nela; se a cólera é percebida, ela é também encarcerada.
Um estudo do caráter: um líder a quem cabe trazer os desígnios de Deus à turba inconstante e alienada. Ira, desprezo e sofrimento: como trazer a Lei ao mais completo desregramento?
Não estamos diante do Moisés histórico, mas de um tipo de caráter enérgico contra uma exterioridade hostil, que ele quer controlar.
É necessário, afirma Freud, diante do enigma observarmos os detalhes considerados de menor importância, os quais poderão tornar-se chaves de análise e compreensão. E aí temos uma advertência: verificar o não importante, o detalhe. Como, por exemplo, a posição da mão direita e a das duas Tábuas da Lei serão alvo de sua atenção.
  

MICHELANGELO. Moisés. Detalhe [14].
c. 1513-1515.

A curva da barba, diz Freud, está sinalizando a anterior trajetória da mão direita, reflexo da indignação de Moisés para com o povo ímpio; ele abandona sua calmaria diante da percepção dos transgressores que adoravam o Bezerro de Ouro, e volta contra si sua indignação ao agarrar firmemente a barba para conter sua cólera; aí, levanta o pé esquerdo anunciando um movimento. Todavia sua mão direita voltará a abrir-se em virtude de outro fator: as Tábuas, que eram carregadas por Moisés de forma invertida, devido à saliência que dá apoio a seu portador, são abandonadas em sua fúria e, no momento do perigo, são capturadas pela pressão do braço junto ao corpo; porém, sendo insuficiente, esse gesto depende do retorno da mão direita que deixa escapar a barba, sem desvencilhar-se dela em seu todo, retendo a borda superior das Tábuas de seu impulso anterior, evitando, assim, despedaçá-las.
Desse modo, o registro não é de um momento particular da vida do profeta. Moisés é guardião do túmulo e sentinela das pedras sagradas. Observamos a ação suspensa, e não uma ação violenta por se iniciar.
Em seu primeiro transporte de fúria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as tábuas; mas dominou a tentação e permanecera sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento mesclado de desprezo. (...) foi para preservá-las (as tábuas) que manteve contida sua paixão (FREUD, 1976, p. 272).
A lembrança de sua missão o impediu de expressar seus sentimentos. Assim temos “não o prelúdio de uma ação violenta, mas os resquícios de um movimento encerrado”. Vemos “a passagem de uma violenta rajada de paixão através de sinais deixados por ela na calma que se seguiu”. Portanto, estamos diante de um Moisés artístico e não o da Bíblia.
Nesta, o Êxodo é eivado de contradições, incongruências, como bem observa Freud (Ibid., p. 274).
O povo corrompendo-se (Êxodo. 32:7), afasta-se dos caminhos estipulados por Deus (32:8), que não quer concorrência (o Bezerro de Ouro = outros ídolos) (32:10), ou seja, o monoteísmo deseja o único chefe e não as dissensões das tribos.
Mas o Senhor “arrepende-se” do mal que dissera que faria a seu povo (32:14) (nacionalista!), sendo adiado o castigo (32:34).
Ao artista é dada a licença poética: Freud nos diz que Moisés tem seu caráter alterado por Michelangelo; enquanto o bíblico era impetuoso e sujeito a crises de paixão (que o fez matar um egípcio e quebrar as Tábuas da Lei), a criação do artista não permite que Moisés quebre as Tábuas, apercebendo-se das consequências funestas de tal ato (um mundo sem regras).
Acrescenta Freud que há
algo de novo e mais humano junto à figura de Moisés; de modo que a estrutura gigantesca, com a sua tremenda força física, torna-se apenas uma expressão concreta da mais alta realização mental que é possível a um homem, ou seja, combater com êxito uma paixão interior pelo amor de uma causa a que se devotou (FREUD. Op. cit., p. 275). 
Freud, porém, omite o artifício mosaico da duplicata das Tábuas: de autoridade, monoteísmo, monoobediência.
Seria humana a repressão? “Humana, demasiada humana”, diria Nietzsche.
As circunstâncias da escrita do texto são contemporâneas do distanciamento entre as ideias de Freud e as de Jung.
E podemos entender que a leitura de Freud sobre a estátua de Moisés funciona como uma identificação projetiva, pois o legislador conseguiu a vitória sobre suas paixões, e Freud queria o mesmo; porém, como ele não era o “seu” Moisés de Michelangelo, desejava eliminar seus traidores.
Destarte, era na luta por autodisciplina e na coerção de seus ímpetos especulativos, que observava a necessidade de controlar sua fúria interior. Neste sentido, o estudo é um ato sublimatório, no qual o mecanismo da produção intelectual aliviava-o de suas tensões crescentes em relação a “seu” povo infiel.
Freud gostaria de ser o estadista controlado de Michelangelo, mas talvez, internamente, pulsava-lhe a veia do impulsivo líder religioso [15].
Por outro lado, a figura do pai e da religião encontram, também, suas expressões requisitando da turba as regulações morais da renúncia e abnegação; a internalização da regra como pacto social de convivência que instaura a cultura.

7.        Psicanálise e poder
De nosso ponto de vista, Moisés aparece como um líder político cuja identidade com Deus tem por objetivo domar aquele povo rebelde que escapa do jugo egípcio através da ira divina (e há aí um ingrediente de sabotagem contra o Estado egípcio, revestido do belo nome de “pragas divinas”).
Para debelar as frequentes revoltas, é preciso pulso, energia, repressão, assassinatos...; o crime que pôs fim à horda primitiva e instaura a cultura não poderia ser substituído pela força argumentativa.
O grande homem é um substituto do pai. (...) a massa, para exprimir-nos assim, tem para com o grande homem a mesma relação que frente ao pai primitivo: admiração que beira o fascínio, desejo masoquista de submissão, sede de autoridade; mas também é capaz de inverter a situação e de denegrir, maltratar e assassinar a personagem a quem atribui liderança (MEZAN. Op. cit., 501).
E aqui se manifesta a hostilidade frente à coerção pulsional.
O povo infantilizado poderia agir de outra forma? Quem recebe a chancela, o carimbo da autoridade, permanece livre? Por que estranhar, então, que o indivíduo que renunciou a seus impulsos pulsionais queira, agora, a máxima proteção? Ele não fez isso exatamente para haver a convivência social? Moisés relata que leva seu povo por caminhos de provas e dificuldades, ao final do qual encontrarão a Terra Prometida: caso esta promessa apareça sempre como miragem, ficção, por que a surpresa se a turba quiser degolar seu pai — seja ele quem for?
Notamos, de outra parte, que a preocupação pela falta de regras é demasiada, já que o ato de fundação da cultura está garantido pela reposição constante das pedras “sempre sagradas”.
Entretanto, se o mundo exterior é fonte de perigo (FREUD, 1979, p. 73), a religião surge como sistema de doutrinas e promessas que explica os enigmas deste mundo e que garante a existência de alguém que zela por nós, e nos pagará pelos sofrimentos vividos aqui na Terra (Ibid., p. 74).
Já a Igreja Universal, percebendo a deficiência da promessa em um mundo melhor no pós-vida, recruta seus seguidores através da (pretensa) ideia de recompensa “aqui e agora”.
Apesar disso, o princípio do prazer nos impele a escapar da infelicidade, pois:
A vida, tal como nos é imposta, é dura demais para nós; nos traz muitas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos prescindir de analgésicos. Existem, talvez, de três categorias: as distrações poderosas, que atenuam nossa miséria; satisfações substitutivas, que a reduzem; e entorpecentes que nos tornam insensíveis a elas (Ibid., p. 75).
Dada a infelicidade, o corolário é o ódio à civilização; uma vez que o desejo é impotente, se frustra continuamente, às vezes, ouvimos: “não posso desejar que não adianta!”
Mas, indagamos, de qual magnitude é a renúncia pulsional?
No capitalismo, como bem frisou Hélio Pellegrino (PELLEGRINO, 1987, p. 200), “a intensidade da repressão existe não apenas em função das exigências do processo civilizatório, mas da injustiça social, que é preciso garantir — e manter — pela força”.
As paixões humanas (originárias de Eros, pulsão de vida e de Thanatos, de morte) são submetidas em função do pacto civilizatório, através do qual a convivência social, para existir, exige a repressão da agressividade, a domesticação e a internalização constante de normas (superego cultural) e regras que enquadrem o sujeito.
Mas, se “o desejo não encontra satisfação definitiva e não para de renascer de suas satisfações efêmeras” (KEHL, 1988, p. 474), como suportar a incessante desprazer causado pelas normas regulatórias? Estas, em última instância, são veículos de interdição e coerção reiterados das pulsões. As overdoses de repressão a que são submetidos os mais miseráveis indica a necessidade do poder em não apenas amestrar os indivíduos, mas humilhá-los.
‘Na verdade’, dirá Freud, ‘a agressividade é uma fonte de prazer a que, como os outros prazeres, os seres humanos relutam em renunciar após tê-lo experimentado.’  ‘Não se sentem bem sem ela’, diria Freud (GAY, P. Op. cit., p. 498).
Porém, Freud argumenta (GAY, P. Loc. cit.) que a “agressão não foi criada pela propriedade”, e, portanto, não iria ser eliminada com sua abolição.
Ora, se a propriedade não é mãe da agressividade, o inverso é verdadeiro, ou seja, a propriedade é produto da agressão, da violência, da exclusão.
Recordemos Rousseau:
Se ‘o homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros’ [16], isto se explica porque ‘o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras e assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes’: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ [17]
E, caso Freud esteja correto ao afirmar que “o combate entre Eros e a Morte, a pulsão de vida e a pulsão de destruição, é o conteúdo essencial da vida como tal, e portanto deve-se descrever a evolução cultural, em suma, como a luta vital da espécie humana” (Apud GAY, P. Op. cit., p. 499), não estaria a cultura disponível para amortizar a pulsão de destruição e, por outro lado, oferecer pretensas substituições para satisfazer a pulsão de vida? E a estratégia seria criar sentidos ilusórios para a existência, impregná-la de razão, dado que os instintos devem contentar-se com a satisfação virtual. Daí, então, a sobrerrepressão — mencionada por Marcuse — na sociedade capitalista, cuja selvageria encontra no Brasil seu momento de paroxismo. Neste país, o pacto é realizado com patos, onde prevalece o toma lá, sem o dá cá (PELLEGRINO, 1987, p. 202), o que pode fazer cair por terra, através da ruptura do outro lado, tanto o pacto social como o primordial (Ibid., p. 203).

8.        Conclusão
Há limites para tanta degradação social? Não sabemos. Porém, cabe-nos indagar: se “a sublimação criou a cultura, e esta não passa de um subproduto da infelicidade humana” (KEHL, op. cit., p. 483), o que podemos fazer? Devemos jogar a criança fora com a água suja do banho? Ou perceber que a inteligência, “fruto da luta entre a onipotência dos desejos e os limites da realidade” (Ibid., 1988), pode engendrar uma existência sem tantos limites, onde os movimentos dos corpos e mentes não sejam objeto da circunscrição dos interditos, e na qual a psicanálise [18] apareça não como código disciplinar, mas como uma ética emancipatória sem códigos.
Caso uma vertente da psicanálise permaneça míope para o problema da luta de classes, e da sobrerrepressão intrínseca nestas sociedades [19] continuaremos num mundo que “tal como está, não serve”, como dizia Hélio Pellegrino (PELLEGRINO, apud KEHL, 1988, p. 473).
Como o mundo continua sem alteração, verificamos que a
Sociopatia e delinquência são faces de uma só moeda (...) É preciso mudar o modelo econômico e social brasileiro, por uma questão de higiene mental, moral e política. Por uma questão de vergonha (PELLEGRINO, 1987, p. 203).
Clamor sempre atual na sociedade brasileira. Do contrário, seremos constantemente vítimas da história dos vencedores e de seus discursos [20]. Se perguntarmos para o opressor se ele se sente culpado, obteremos uma resposta como a exemplificada numa cena que criamos:

NAZISTA: Eu? Faço tudo para o bem da humanidade. Sou feliz cumprindo o meu dever, porque o progresso tem como razão a violência:
NARRADOR EM “OFF”: O progresso como razão e violência. Ou a história dos vencedores ou da servidão.
APARECE O LETREIRO COM A INSCRIÇÃO:
(FALA EMPREENDIDA ANTES DA TOMADA DO PODER).
NAZISTA:
Onde olhas favelas, verás jardins
Pobres e esfarrapados, crianças sadias
Rugas e velhice, juventude e beleza
Ovelhas desgarradas, estudiosos
Grande bagunça, ordem impecável
Rios imundos, água cristalina
Encalhes de produtos, vendas mil...
Sarampo e outras epidemias, a panaceia
Soluços e gemidos, alegria e contentamento                                                    
Ócio, trabalho.

Construiremos o futuro
O progresso para todos
Muitos benefícios
Orgulho nacional.

DESCE O LETREIRO COM A INSCRIÇÃO:
(AÇÃO EMPREENDIDA DEPOIS DA TOMADA DO PODER)
Respeita o teu senhor!
Apaixona-te pelo que faz, mesmo que a contragosto
Zanzar em hora de serviço, jamais!
Anões desqualificados, não de acordo com a estética
Oh! Nosso país de homens perfeitos!

E sempre a postos para responder:

Venho cumprir as determinações
Irei obedecer-lhe cegamente (obede-servos, ser-te)
O senhor é o meu comando
Liberdade é segui-lo
Em circunstâncias quaisquer,
Nós estaremos aqui para defendê-lo
Caminhamos sob sua luz
Imploramos a sua compreensão
Amamos o seu progresso. Ele é nosso também. [Poema de minha autoria.]


BIBLIOGRAFIA


Bíblia Sagrada. Êxodo, p. 71-124. Trad. João Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil & Editora Vida. 1984.
CHÂTELET, Albert & GROSLIER, Bernard Philippe. História da Arte. Portugal: Ed. Américo Fraga Lamares & Cia., Ltda., 1991.
FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura. In: Obras completas, vol. 21 (1927-31), pp. 59-139. Buenos Aires: Amorrutu Editores, mayo 1979.
_______. O Moisés de Michelangelo (1914). In: Obras completas, vol. XIII. RJ: Imago, 1976.
GAY, Peter. Freud. Uma vida para o nosso tempo. SP: Companhia das Letras, 1989.
JANSON, H. W. História da arte. SP: Martins Fontes, 5 ed., 1982.
KEHL, Maria Rita. A psicanálise e o domínio das paixões. p. 469-496. In: Os sentidos da paixão. CARDOSO, Sérgio et alii. SP: Funarte e Companhia das Letras, 1988.
LETTS, Rosa Maria. O renascimento In: Introdução à História da arte da Universidade de Cambridge. RJ: Zahar Editores, 1984.
MEZAN, Renato. Freud. Pensador da cultura. SP: Brasiliense, 4ª ed., 1986.
PELLEGRINO, Hélio. Pacto edípico e pacto social. p. 195-205. In: Grupo sobre grupo.  Org. Luís Alberto Py. RJ: Rocco, 1987.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social.  SP: Abril Cultural, 2ª ed., 1978.
_______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. SP: Abril Cultural, 2 ed., 1978.
WÖLFFLIN, Heinrich. A arte clássica. SP: Martins Fontes, 1990.
WOODFORD, Susan. A arte de ver a arte. In: Introdução à História da arte da Universidade de Cambridge. RJ: Zahar Editores, 1983.


OUTROS (filmes)

SOBRE MICHELANGELO
Agonia e êxtase. 1965. Elenco: Charlton Heston, Rex Harrison. Direção: Carol Reed.

SOBRE MOISÉS
Moisés. 1989, 141 minutos. Filme dirigido por Gianfranco de Bosio.
Os dez mandamentos. 1956, 3h39m. Filme dirigido por Cecil B. DeMille.

FONTES DAS ILUSTRAÇÕES
Disponível em:

____________________________

Notas
[*] Agenor Bevilacqua Sobrinho é doutor em Artes Cênicas pelo CAC/ECA-USP e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-UNESP). É pesquisador do Grupo de Pesquisa Estudos histórico-críticos e dialéticos de teatro estadunidense e brasileiro (CNPq). Editor, dramaturgo e escritor, é autor de Atualidade/utilidade do trabalho de Brecht. Uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens femininasA LenteA Guerra de YuanO Rato Pensador (todos pela Editora Cia. Fagulhawww.ciafagulha.com.br) e de vários artigos publicados em revistas especializadas. 

[2] Moisés, 1989, 141 minutos. Dirigido por Gianfranco de Bosio e produzido por Vicenzo Labella. Elenco: Burt Lancaster, Anthony Quayle, Ingrid Thulin, Irene Papas, Laurent Terzieff e outros.
[3] É da tradição iconográfica personalidades históricas marcantes serem demarcadas com atributos físicos de vigor e força, e Michelangelo faz o mesmo com Moisés.
[4] Os dez mandamentos, 1956, 3h39m. Dirigido por Cecil B. DeMille. Elenco: Charlton Heston, Yul Brynner, Ann Baxter, Edward G. Robinson, Ivonne de Carlo e outros.
[5] Pentateuco - Os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos a Moisés: o Gênese, o Êxodo, o Levítico, o Números e o Deuteronômio.
[7] Neste sentido, estranhamos grande parte da preocupação de Freud quanto à posição destes “objetos sagrados” na obra de Michelangelo (“Vemos que as Tábuas estão de cabeça para baixo, o que é uma maneira singular de tratar objetos sacros” - FREUD, S. 1976, p. 269), pois, logo adiante, a “maneira singular” seria esquecida e a posição das Tábuas explicada para efeito de alicerçar seus argumentos da forma mais prosaica e utilitarista.
[8] Gesto revestido de um caráter teatral exemplar.
[9] Como observa Renato Mezan (1986, p. 396-397), Freud, não conseguindo dominar suas próprias paixões (“a mais alta realização mental”), e “entregando-se à cólera, fará todo o possível para excluir de suas hostes os adoradores do Bezerro de Ouro: na impossibilidade de coincidir com seu modelo, reconhece sua inferioridade e a assinala pela recusa em associar ao nome de Moisés o seu”.
[15] De acordo com MEZAN, R. (Op. cit., 396), a presença reiterada de Moisés mostra a identificação com o fundador do judaísmo, incompleta, pois Moisés vence sua paixão em nome da “missão à qual se consagrara”. Mas Freud se sente incapaz de realizar o “feito mais elevado” que consiste em dominar suas próprias paixões. Ao contrário, Freud adoraria eliminar Jung.
[16] ROUSSEAU. Do Contrato Social; Livro primeiro, Cap. I, p. 22; Abril, 1978.
[17] ROUSSEAU. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Segunda parte, p. 259; Abril, 1978.
[18] Segundo PELLEGRINO, H. Édipo e Liberdade. Folha de S. Paulo, 1985, “a psicanálise pretende curar o ser humano de suas ilusões. Ela não acredita na bondade fundamental do homem, nem parte do princípio de que o processo civilizatório é uma rampa ascendente de sucessivas vitórias que chegarão, necessariamente, à plenitude do amor por todos”.
[19] “Numa sociedade sem classes, dispensada da violência repressiva necessária à manutenção da injustiça, haverá mínima renúncia pulsional.” (PELLEGRINO, 1987, p. 200).
[20] E embustes, como, por exemplo, a ideologia da “globalização” ou da “desglobalização”, do “terraplanismo” etc.



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