Quem tem medo de Virginia Woolf? De Edward Albee.
Breves observações de análise. Por Maria Sílvia Betti
Ao escrever Quem
tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) em 1962,
Edward Albee não deixou pedra sobre pedra no que diz respeito à estrutura
dramatúrgica de composição de suas personagens e à abordagem da universidade
como campo representativo da ideologia dominante. O título originou-se em um grafitto que
Albee teria visto num café do Greenwich Village, em Nova Iorque, na ocasião em
que escreveu a peça, à qual havia inicialmente pensado dar o título, igualmente
significativo, de O exorcismo (The
exorcism).
Desde A história
do jardim zoológico (The zoo story), seu primeiro texto teatral, de 1959, Albee vinha representando de
forma crítica os fundamentos do assim chamado “sonho americano”, versão
idealizada da vida na sociedade estadunidense e ao mesmo tempo epicentro da
ideologia do Estado, representado como igualitário e democrático.
Em 1960 essa
representação crítica havia sido explicitada por ele numa peça em um ato
intitulada, justamente, O sonho americano (The American dream), cujo foco são as distorções assimiladas e reproduzidas
dentro da instituição família e da classe média estadunidense.
Em Quem tem medo
de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) o autor situa seus leitores e espectadores
no campus de uma universidade localizada na cidade fictícia de Nova
Cartago, na Nova Inglaterra, região nordeste dos Estados Unidos. A localização
não poderia ser mais significativa para o papel crítico da peça, pois permite
que as associações latentes no texto remetam simbolicamente às raízes da
formação histórica e ideológica estadunidense desde a chegada dos colonizadores
puritanos (1620), passando pela Guerra de Independência (1776) e
consolidando-se por meio de remissões de ironia latente à Antiguidade clássica
e ao mundo greco-romano. A Nova Inglaterra é, em larga medida, o
nascedouro da cultura capitalista estadunidense, e esta é apresentada na peça em
inequívoco processo de desintegração.
Alguns elementos dignos de nota, no que diz
respeito à escritura, são a linguagem, com o uso de expressões de relevo
crítico algumas vezes intraduzíveis, o uso mordaz e distanciado de remissões a cantigas
infantis (nursery rhymes), o uso
simbólico e igualmente distanciador e crítico da ideia de jogos (games) e das personagens como jogadores
(players), as falas narrativas das
personagens George e Nick remetendo a passagens reveladoras de seus
respectivos passados, e os títulos dados aos três atos da peça que, numa
gradação crescente iniciada em Divertimento e jogos, Ato I (Fun and games), passa pela Noite das
bruxarias, Ato II (Walpurgisnacht)
e conduz ao desfecho em O exorcismo, Ato III (The exorcism).
Com relação às cantigas infantis (nursery rhymes), é importante observar o uso paródico e distanciado que Albee
faz delas na peça, explicitando seu uso pelas personagens com associações implícitas
a aspectos sádicos já historicamente presentes em suas origens e exacerbados na
forma como se repetem em diversas cenas. Pode-se dizer que o que Albee faz a esse
respeito tem analogia com o recurso utilizado pelo poeta T.S.Eliot no poema Os homens ocos (The hollow men).
As quatro personagens da peça são diretamente
representativas de pontos nevrálgicos da figuração crítica desse cerne
ideológico abordado por Albee: Martha e George, casal de meia idade,
respectivamente a filha do presidente da universidade (na nomenclatura
estadunidense) e um professor do Departamento de História, residem no campus da universidade, e ao chegarem de
uma festa acadêmica do corpo docente (faculty
party), aguardam um casal de jovens convidados, Honey e Nick, para um
último drinque mais íntimo. Nick é um recém-admitido professor do Departamento
de Biologia, que com sua jovem esposa, Honey, provém do Meio Oeste do país,
região amplamente associada à representação da mediania e da tipicidade do
estilo de vida e pensamento do país no que estes têm de mais centralmente reprodutores
do sistema dominante de ideias.
O pai de Martha é indiscutivelmente o
personagem onipresente na peça, mesmo que não apareça em cena em nenhum
momento. Tudo o que rege a vida do casal Martha e George é determinado pelas
expectativas institucionais ligadas a ele.
A tensão é o
elemento fundamental para a configuração de George como personagem e para sua
função de condutor, a partir de certo ponto da peça, dos jogos que culminarão
no exorcismo final. Pressionado pelo papel que dele esperava a instituição (o
de professor gestor, atuante no sentido de fazer contatos capazes de
atrair patrocínios e doações para a universidade) George é alvo de palavras
depreciativas de Martha, que o vê como um fracassado. As palavras cáusticas dela,
que George revida tanto quanto consegue, vão, pouco a pouco nos levando a
inferir, ao longo da peça, que ele havia sempre priorizado o papel de professor
pesquisador, preferindo a biblioteca ao gerenciamento de contatos
lucrativos para a esfera administrativa da instituição, e vendo-se frustrado
inclusive como autor de um romance cuja publicação foi vetada porque seu
conteúdo havia sido considerado excessivamente chocante para os valores da
universidade tal como entendida e gerida por seu sogro.
Sintomaticamente,
o cerne compositivo de Quem tem medo de
Virgínia Woolf? converge centralmente para outra figura não materializada
em cena: a de um filho único imaginário, produto do pacto afetivo estabelecido
entre Martha e George, filho este cuja existência simbólica dependeria do
acordo mútuo em não fazer menção dela a quem quer que fosse. É da quebra deste pacto
por Martha, e do exorcismo desta figura idealizada do filho, que Albee extrai
elementos para levar seus leitores e espectadores ao ritual doloroso realizado
por George, levando, ao final, às palavras de Martha em resposta à pergunta do
estribilho da canção infantil parodiada.
Honey e Nick, o
casal de jovens recém-entronizados nesse mundo acadêmico em clara deterioração
intelectual, espelham Martha e George em versão rebaixada: Nick, como
personagem, evidencia uma total aceitação de todas as premissas pessoais e
institucionais, explícitas ou latentes, necessárias à carreira acadêmica que
acaba de iniciar. Ao mesmo tempo, a gravidez histérica de Honey, que no passado
recente o havia levado a casar-se com ela, espelha em versão degradada o filho
imaginário de Martha e George.
Como se pode
constatar por este breve apanhado, a pauta histórica e simbólica figurada na peça
de Albee tem grande envergadura, passando por aspectos históricos, políticos,
culturais, comportamentais e afetivos que, em seu conjunto, empreendem um
painel contundente e denso de representação crítica de aspectos centrais da
ideologia dominante estadunidense.
No
Brasil a encenação de estreia de Quem tem
medo de Virginia Woolf? se deu em 1965, tendo Cacilda Becker, Walmor
Chagas, Fulvio Stefanini e Lilian Lemertz nos papéis das quatro personagens sob
a direção de Maurice Vaneau. Sobre a encenação e particularmente sobre a
interpretação de Cacilda e Walmor, Maria Thereza Vargas afirma: “Quem
tem medo de Virgínia Woolf?, a última direção de Maurice Vaneau, com Cacilda
no elenco, foi sem dúvida o ponto mais alto a que atingiram Walmor e Cacilda em
suas carreiras, ricas na decantada interação interpretativa.”
Referências
bibliográficas
ALBEE, Edward. Who’s afraid of Virginia Woolf? New York: Atheneum, 1970.
_______.
Quem tem medo de Virginia Woolf?
Tradução de Nice Rossoni. São Paulo: Editora Abril, 1977.
ELIOT, T.S. The hollow men. Disponível em: <https://www.lcsnc.org/site/handlers/filedownload.ashx?moduleinstanceid=19495&dataid=32553&FileName=The%20Hollow%20Men%20by%20T.%20S.%20Eliot.pdf>. Acesso em: 03 out. 2020.
_______.
Os homens ocos. Tradução de Ivan
Junqueira. Disponível em: <https://singularidadepoetica.art/2017/04/04/t-s-eliot-os-homens-ocos/>.
Acesso em: 03 out. 2020.
VARGAS,
Maria Thereza. Cacilda Becker. Uma mulher de muita importância. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2013, p. 123-124.
Conheça também:
Dramaturgia comparada EUA / Brasil: três estudos, de Maria Sílvia Betti
https://www.ciafagulha.com.br/product/507580/dramaturgia-comparada-eua-brasil-tres-estudos
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