Zé
Celso, Aracy e Aderbal. Por Maria
Sílvia Betti
Zé Celso, Aracy Balabanian e Aderbal
Freire Filho
I
ZÉ CELSO
Em
1961 o Oficina estava se profissionalizando e Zé Celso, preocupado em
aprofundar o estudo das técnicas stanislavskianas de interpretação com os
atores e atrizes do grupo, rascunhou uma carta dirigida a Lee Strasberg,
diretor do Actors’ Studio, o famoso centro novaiorquino de aperfeiçoamento de
atores e atrizes profissionais. O parágrafo inicial dizia o seguinte:
Tenho
lido suas obras que puderam chegar até minhas mãos, conhecido o magnífico
resultado do seu trabalho prático (indiretamente, através do cinema), tendo
estudado Stanislavski e seus seguidores e estando enfim tentando aplicar o
Método na minha primeira direção profissional, encontro-me numa situação de
crise. Com grande esforço tenho procurado vencer a angústia e os erros do
autodidatismo, mas minha crise atingiu quase o ponto de clímax, uma vez que no
Brasil não existem escolas ou teatros formados dentro de métodos modernos.
Em seguida Zé Celso explicava que o
Oficina era formado por jovens universitários dentro de um movimento de
renovação artística que se congregava na União Paulista das Companhias Teatrais,
e que tinha como princípio fundamental a racionalização dos processos teatrais.
A motivação era desenvolver um teatro que, por meio de textos e interpretações,
refletisse as contradições do país e dialogasse com um público popular distante
dos padrões então vigentes de gosto da burguesia.
“Nosso velho teatro”, continuava
ele, “é um amontoado de clichês importados de uma Europa que não é a de Brecht,
mas uma negação da vida brasileira e do homem inteiramente ausente dos nossos
palcos: um outsider.”
A
peça que estava sendo ensaiada para montagem era “Awake and Sing” (“A vida
impressa em dólar”, na tradução de Elizabeth Kander), e o autor era Clifford
Odets, nome de referência da dramaturgia social dos Estados Unidos nos anos 30,
época da Depressão Econômica. Zé Celso pretendia aplicar na montagem os
princípios stanislavskianos de interpretação:
Tenho
aplicado o Método, analisando a Ideia Geral da peça: ‘acordar e cantar’; e a
Ideia Oposta: “viver no pó’. Desta Ideia Geral extraí uma primeira ideia geral
dos personagens, correspondente a seus comportamentos perante o “precisar
acordar e cantar” e o “pó”, descobrindo em cada personagem uma duplicidade.
Tendo em vista essa duplicidade, analisei as circunstâncias propostas em cada
cena, descobrindo uma vontade e uma contravontade do personagem. Analisei
depois a peça toda e encontrei a Vontade Geral do personagem e sua
Contravontade (processo dialético: o ator funcionando com duas vontades opostas
para vencer seus obstáculos). (Gostaria de saber como a Contra-Ação aparece nas
cenas, se podemos chegar ao ponto de racionalizá-la na vontade do personagem e
numa possível contravontade em cada cena.) Feita essa análise, passamos a peça
toda com o subtexto construído pelo ator, correspondente à análise das vontades
das cenas. Estou na fase das marcações primárias, das improvisações, dos
laboratórios de emoção. Pretendo posteriormente fazer ensaios de relação com
objetos, caracterização, etc.
A
carta escrita por Zé Celso foi posteriormente publicada no livro “Primeiro Ato.
Cadernos. Depoimentos. Entrevistas (1958-1974)”, com seleção, organização e
notas de Ana Helena Camargo de Staal. Lida à luz dos tempos que se seguiram,
trata-se de um documento revelador não só do desejo de aprendizado e
amadurecimento, como das questões de ordem prática que se apresentavam:
O
Método apresenta possibilidades imensas de invenção e de prática, mas como
saber se estou certo, como conseguir um processo mais rápido e eficaz de passar
das análises de vontade ao trabalho do ator no texto, como chegar à certeza
desse processo dialético de Vontade e Contravontade? Pelos resultados,
poder-se-ia argumentar. Mas como sabemos se os resultados encaminham-se para
uma solução ideal e não para uma nova forma de clichés racionais, emocionais?
Perguntas, milhares e milhares, que gostaria e precisaria ver respondidas.
A razão de minha carta é essa, de me encontrar necessitado de sua orientação.
“A
vida impressa em dólar” foi a primeira montagem profissional do Oficina, e
estreou em 16 de agosto de 1961 sob a direção de Zé Celso. De seu elenco
participava o mestre Eugênio Kusnet no papel de Jacob, o avô marxista,
idealista e amante de óperas.
Sobre Kusnet, Zé Celso comentaria,
muitos anos depois, referindo-se ao trabalho “Ator e Método”:
Kusnet
fez uma boa cartilha de interpretação, no melhor sentido da palavra cartilha.
Como essa pecinha do Brecht que alfabetiza em teatro épico. São cartilhas
indispensáveis, eu acho. Sou cem por cento a favor da retomada da objetividade
do trabalho do ator.
Eu
sinto muita falta do Kusnet. Muita falta! Ele valorizava a palavra e o amor ao
detalhe, o capricho da pequena... como ele chamava?... “a pequena maravilha”:
—
O ator fez pequena maravilha!
“Pequena
maravilha”: ele estava no detalhe, nas pequenas coisas, era fantástico!
A
carta dirigida a Strasberg não chegou a ser enviada, mas em suas linhas ficaram
registradas considerações que mostram a intensa batalha das dúvidas e das
reflexões nesse começo da longa e transformadora jornada de Zé Celso no teatro
brasileiro à frente do teatro Oficina.
II
ARACY
Sou
uma atriz stanislavskyana. Apesar de todos os outros métodos que surgiram
depois, e que aprendi, sempre o meu trabalho passa pelos ensinamentos de
Stanislavsky e a memória afetiva. Mesmo que não tenha vivido todas as
experiências da minha personagem, tento me aproximar o máximo possível dela,
conhecê-la a fundo. E assim vou entrando no ser humano que vou conhecendo.
Imaginando a sua vida, como ela se veste, o que ela sente, até me fundir com a
personagem. Nesse momento, eu encontro dentro de mim a personagem. Não é que
fique possuída, que baixe um santo, sou totalmente consciente quando estou
representando, mas estou de tal maneira envolvida com aquela pessoa, que já
penso, sinto e ajo como ela.
Com
essas palavras Aracy Balabanian se autodefiniu como atriz para Tania Carvalho,
autora do livro biográfico Nunca fui
santa, de 2005. Sua formação tinha se iniciado em 1954 no Teatro Paulista
de Estudantes sob a orientação de Beatriz Segall, que havia então passado a
atuar na direção do grupo. Aracy tinha afinidade com o pensamento de Vianinha e
Guarnieri, responsáveis pela proposta de criação do Teatro Paulista de
Estudantes, e também com o trabalho de Augusto Boal, que a dirigiu em 1957 e
que a aconselhou procurar aprofundamento de estudos na EAD, a Escola de Arte
Dramática. Esse foi o começo de sua prolífica carreira, que se estenderia de
1957 a 2019, com atuações no teatro (inicialmente amador e depois profissional),
na televisão e no cinema.
No
teatro, o que chama a atenção no histórico de atuações de Aracy são os inúmeros
espetáculos que em alguma medida registravam transformações importantes nas
estéticas dramatúrgicas e cênicas no século XX. Aracy foi dirigida por Augusto
Boal em “Juno e o pavão”, de Sean O’Casey (1957), por Maurice Vaneau em “Os
ossos do barão”, de Jorge Andrade (1963), por Antunes Filho em “Vereda da
Salvação”, também de Jorge Andrade (1964), por Flávio Rangel em “Depois da
queda”, de Arthur Miller (1965), novamente por Augusto Boal na “Feira Paulista
de Opinião”, com textos de Lauro César Muniz, Plínio Marcos, Gianfrancesco
Guarnieri e do próprio Boal(1968), por Ademar Guerra em “Oh, que delícia de
guerra”, de Joan Littlewood (1966), em “Marat Sade”, de Peter Weiss (1967), em
“ Hair”, de James Rado, Gerome Ragni e Galt McDermot(1969), em “Brecht segundo
Brecht”, de Oswaldo Mendes (1977), e em “Boa noite, mãe”, de Marsha Norman
(1984), e por Eduardo Tolentino de Araújo em “O tempo e os Conways”, de J. B. Priestley
(1985).
A
linha do tempo das atuações teatrais de Aracy se estende paralelamente aos anos
da ditadura, implantada em 1964, ao período de censura e perseguições iniciado
com o AI-5 em 1968, à resistência ao regime autoritário, e à fase de transição
para a chamada abertura democrática, indo até o final da década de 90, quando
se deu o crescimento da indústria de telecomunicações e a implantação de um
modelo econômico neoliberal para o país.
Como
escreveu Natália Beukers em coluna publicada na Folha de São Paulo em 08 de
agosto passado, a carreira de Aracy é antes de mais nada fruto dos palcos,
mesmo que o sucesso televisivo tenha se superposto, na memória de várias
gerações, ao registro deixado por tantos e tantos espetáculos, e ao valor
artístico e humano de suas atuações teatrais.
III
ADERBAL
Uma
curtíssima temporada de apenas três dias, em 2019, assinalou a passagem por São
Paulo da montagem de “Vianinha conta o último combate do homem comum”, dirigida
por Aderbal Freire Filho a partir do texto de “Nossa vida em família”, de
Oduvaldo Vianna Filho, escrito no início dos anos 70. O espetáculo tinha
estreado com sucesso de público e crítica no Rio de Janeiro em 2014,
prosseguindo em cartaz nos anos seguintes com apresentações em inúmeras outras
cidades do estado do Rio, de Minas Gerais, do Paraná, e em Brasília.
Por
coincidência, na ocasião da estreia, a novela das 21 horas da Rede Globo de
Televisão, com trama de Manoel Carlos, chamava-se precisamente “Em família”, e
Aderbal, por isso, optou por alterar o título do espetáculo para evitar mal-entendidos.
A
inspiração para o novo título foi a peça sinfônica do compositor estadunidense
Aaron Copland, “Fanfarra para o homem comum”, composta em 1942 a partir de um
famoso discurso do então vice-presidente dos Estados Unidos (Henry Wallace), que
se referiu ao século XX como o “o século do homem comum”. A ideia era bastante
compatível com o assunto central da peça de Vianna, que tratava do beco sem
saída em que se via um casal idoso de trabalhadores da pequena classe média nos
anos 70, empobrecida e sem perspectivas, dentro de um contexto familiar em que
a sobrevivência material e a afetiva se encontravam em insolúvel contradição.
“Decidi
por esse título porque, na peça, o Vianinha faz um recorte da etapa final da
vida desse homem, como se fosse a sua última batalha manter ou não o aluguel”,
comentou Aderbal em uma entrevista na época da estreia.
No
espetáculo as intervenções feitas por ele modulavam a escrita dramatúrgica
original de Vianna com recursos de distanciamento, como por exemplo a presença
de todos os atores no palco em todas cenas, a transformação de um dos
personagens (Beto) em um palhaço-narrador, e o uso de cenário bastante
minimalista. Aderbal considerava essa peça o ápice da investigação de Vianna
sobre o "homem comum", ou seja, o trabalhador brasileiro, o lutador
que empenhara a vida inteira na batalha cotidiana pelo sustento da família.
Aderbal,
juntamente com Eduardo Tolentino de Araújo, foi o diretor com maior número de
direções de textos de Vianinha, pois já havia anteriormente dirigido “Corpo a
corpo”, em 1975, “Moço em estado de sítio”, em 1981, e “Mão na luva”, em 1984.
A partir da direção de Moço em Estado de Sítio seu trabalho se
voltou para uma busca de equilíbrio entre experimentalismo e clareza na
exposição dos fatos dramáticos. O texto era tomado por ele como um dos eixos da
criação cênica, e o elenco era envolvido ativamente na criação do espetáculo.
Aderbal admirava, na dramaturgia de
Vianna, o contraponto entre a leveza do humor e a densidade das questões
cruciais ligadas à vida social e política do país. “Mão na luva”, a que Sábato
Magaldi tinha se referido como a “enésima prova do talento de Vianinha”,
recebeu de Aderbal um tratamento cênico de profundo lirismo na interpretação de
Juliana Carneiro da Cunha e Marco Nanini. Por ela Aderbal recebeu os prêmios
Mambembe e Golfinho de Ouro de melhor direção.
Um
de seus focos constantes de atenção foi sempre a relação entre o texto original
e o espetáculo. Numa entrevista de 1978, ele deixou clara sua preocupação com a
fidelidade, sem, entretanto, deixar de problematizá-la:
Parece
absurdo, mas eu tenho visto montagens tão pouco ‘influenciadas’ pelo texto
original... Eu acho que toda montagem deve partir de uma ideia básica de
fidelidade. [...] Os críticos me classificam de infiel, mas aí é outra coisa. A
minha disposição básica é ser fiel, se o meu espetáculo não corresponde à
expectativa de um crítico é porque preferi ser fiel ao autor e à nossa
compreensão dele do que ser fiel a outro leitor, geralmente apressado.
Em
2008 ele voltaria a discutir essa questão, ressaltando o fato de ver o texto
original como intrinsicamente inacabado:
Eu
sempre quero ser muito fiel, e os meus espetáculos são provavelmente muito
diferentes da expectativa que um leitor comum tem – porque ele dirige na cabeça
dele e quando vai ver talvez não reconheça – mas o autor reconhece.
Em sua grande
extensão e diversidade de linguagens trabalhadas, o percurso teatral de Aderbal
Freire Filho, deu sempre papel central à função questionadora do teatro, assim
como fazia assim Vianinha. Não poderia ter sido mais significativo, portanto, que
“Vianinha conta a última batalha do homem comum” tenha sido, precisamente, a
última direção de Aderbal encenada em São Paulo.
REFERÊNCIAS
Lee
Strasberg. Um sonho de paixão. O desenvolvimento do método. Rio de
Janeiro. Tradução Ana Zelma Cardoso. Editora Civilização Brasileira. 1990.
Tania Carvalho. Aracy
Balabanian: Nunca Fui
Anjo. Imprensa Oficial do Estado.
1 ed. 2005.
Zé Celso
Martinez Corrêa. Primeiro Ato. Cadernos, depoimentos entrevistas.
Seleção, organização e notas, Ana Helena Camargo de Staal. 1 ed. São Paulo:
Editora 34, 1998.
Aderbal
Freire Filho dirige nova montagem de “Nossa vida em família”. In: O Globo. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/aderbal-freire-filho-dirige-nova-montagem-de-nossa-vida-em-familia-12953804
[Acesso em: 25 ago. 2023]
Márcio
Freitas. A fidelidade do “romance-em-cena” de Aderbal Freire-Filho. Revista Outra
travessia 16. Universidade Federal de Santa Catarina - 2º Semestre de 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/download/2176-8552.2013n16p103/pdf_2/114419 [Acesso em: 25 ago. 2023]
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Maria Sílvia Betti é pesquisadora e docente Sênior
no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCHUSP. Autora
de Dramaturgia comparada Estados Unidos-Brasil. Três estudos. São
Bernardo do Campo-SP: Cia. Fagulha, 2017. Organizadora da Coleção Oduvaldo
Vianna Filho de dramaturgia (Editora Temporal).
NOTA: Texto originalmente publicado no site
Infoteatro.
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