Zé Celso, Aracy e Aderbal. Por Maria Sílvia Betti

 

Zé Celso, Aracy e Aderbal. Por Maria Sílvia Betti


Zé Celso, Aracy Balabanian e Aderbal Freire Filho


 

I

ZÉ CELSO

 

Em 1961 o Oficina estava se profissionalizando e Zé Celso, preocupado em aprofundar o estudo das técnicas stanislavskianas de interpretação com os atores e atrizes do grupo, rascunhou uma carta dirigida a Lee Strasberg, diretor do Actors’ Studio, o famoso centro novaiorquino de aperfeiçoamento de atores e atrizes profissionais. O parágrafo inicial dizia o seguinte:

Tenho lido suas obras que puderam chegar até minhas mãos, conhecido o magnífico resultado do seu trabalho prático (indiretamente, através do cinema), tendo estudado Stanislavski e seus seguidores e estando enfim tentando aplicar o Método na minha primeira direção profissional, encontro-me numa situação de crise. Com grande esforço tenho procurado vencer a angústia e os erros do autodidatismo, mas minha crise atingiu quase o ponto de clímax, uma vez que no Brasil não existem escolas ou teatros formados dentro de métodos modernos.

Em seguida Zé Celso explicava que o Oficina era formado por jovens universitários dentro de um movimento de renovação artística que se congregava na União Paulista das Companhias Teatrais, e que tinha como princípio fundamental a racionalização dos processos teatrais. A motivação era desenvolver um teatro que, por meio de textos e interpretações, refletisse as contradições do país e dialogasse com um público popular distante dos padrões então vigentes de gosto da burguesia.

“Nosso velho teatro”, continuava ele, “é um amontoado de clichês importados de uma Europa que não é a de Brecht, mas uma negação da vida brasileira e do homem inteiramente ausente dos nossos palcos: um outsider.”

A peça que estava sendo ensaiada para montagem era “Awake and Sing” (“A vida impressa em dólar”, na tradução de Elizabeth Kander), e o autor era Clifford Odets, nome de referência da dramaturgia social dos Estados Unidos nos anos 30, época da Depressão Econômica. Zé Celso pretendia aplicar na montagem os princípios stanislavskianos de interpretação:

Tenho aplicado o Método, analisando a Ideia Geral da peça: ‘acordar e cantar’; e a Ideia Oposta: “viver no pó’. Desta Ideia Geral extraí uma primeira ideia geral dos personagens, correspondente a seus comportamentos perante o “precisar acordar e cantar” e o “pó”, descobrindo em cada personagem uma duplicidade. Tendo em vista essa duplicidade, analisei as circunstâncias propostas em cada cena, descobrindo uma vontade e uma contravontade do personagem. Analisei depois a peça toda e encontrei a Vontade Geral do personagem e sua Contravontade (processo dialético: o ator funcionando com duas vontades opostas para vencer seus obstáculos). (Gostaria de saber como a Contra-Ação aparece nas cenas, se podemos chegar ao ponto de racionalizá-la na vontade do personagem e numa possível contravontade em cada cena.) Feita essa análise, passamos a peça toda com o subtexto construído pelo ator, correspondente à análise das vontades das cenas. Estou na fase das marcações primárias, das improvisações, dos laboratórios de emoção. Pretendo posteriormente fazer ensaios de relação com objetos, caracterização, etc.

A carta escrita por Zé Celso foi posteriormente publicada no livro “Primeiro Ato. Cadernos. Depoimentos. Entrevistas (1958-1974)”, com seleção, organização e notas de Ana Helena Camargo de Staal. Lida à luz dos tempos que se seguiram, trata-se de um documento revelador não só do desejo de aprendizado e amadurecimento, como das questões de ordem prática que se apresentavam:

O Método apresenta possibilidades imensas de invenção e de prática, mas como saber se estou certo, como conseguir um processo mais rápido e eficaz de passar das análises de vontade ao trabalho do ator no texto, como chegar à certeza desse processo dialético de Vontade e Contravontade? Pelos resultados, poder-se-ia argumentar. Mas como sabemos se os resultados encaminham-se para uma solução ideal e não para uma nova forma de clichés racionais, emocionais? Perguntas, milhares e milhares, que gostaria e precisaria ver respondidas. A razão de minha carta é essa, de me encontrar necessitado de sua orientação.

“A vida impressa em dólar” foi a primeira montagem profissional do Oficina, e estreou em 16 de agosto de 1961 sob a direção de Zé Celso. De seu elenco participava o mestre Eugênio Kusnet no papel de Jacob, o avô marxista, idealista e amante de óperas.

Sobre Kusnet, Zé Celso comentaria, muitos anos depois, referindo-se ao trabalho “Ator e Método”:

Kusnet fez uma boa cartilha de interpretação, no melhor sentido da palavra cartilha. Como essa pecinha do Brecht que alfabetiza em teatro épico. São cartilhas indispensáveis, eu acho. Sou cem por cento a favor da retomada da objetividade do trabalho do ator.

Eu sinto muita falta do Kusnet. Muita falta! Ele valorizava a palavra e o amor ao detalhe, o capricho da pequena... como ele chamava?... “a pequena maravilha”:

— O ator fez pequena maravilha!

“Pequena maravilha”: ele estava no detalhe, nas pequenas coisas, era fantástico!

A carta dirigida a Strasberg não chegou a ser enviada, mas em suas linhas ficaram registradas considerações que mostram a intensa batalha das dúvidas e das reflexões nesse começo da longa e transformadora jornada de Zé Celso no teatro brasileiro à frente do teatro Oficina.

 

 

II

ARACY

 

Sou uma atriz stanislavskyana. Apesar de todos os outros métodos que surgiram depois, e que aprendi, sempre o meu trabalho passa pelos ensinamentos de Stanislavsky e a memória afetiva. Mesmo que não tenha vivido todas as experiências da minha personagem, tento me aproximar o máximo possível dela, conhecê-la a fundo. E assim vou entrando no ser humano que vou conhecendo. Imaginando a sua vida, como ela se veste, o que ela sente, até me fundir com a personagem. Nesse momento, eu encontro dentro de mim a personagem. Não é que fique possuída, que baixe um santo, sou totalmente consciente quando estou representando, mas estou de tal maneira envolvida com aquela pessoa, que já penso, sinto e ajo como ela.

Com essas palavras Aracy Balabanian se autodefiniu como atriz para Tania Carvalho, autora do livro biográfico Nunca fui santa, de 2005. Sua formação tinha se iniciado em 1954 no Teatro Paulista de Estudantes sob a orientação de Beatriz Segall, que havia então passado a atuar na direção do grupo. Aracy tinha afinidade com o pensamento de Vianinha e Guarnieri, responsáveis pela proposta de criação do Teatro Paulista de Estudantes, e também com o trabalho de Augusto Boal, que a dirigiu em 1957 e que a aconselhou procurar aprofundamento de estudos na EAD, a Escola de Arte Dramática. Esse foi o começo de sua prolífica carreira, que se estenderia de 1957 a 2019, com atuações no teatro (inicialmente amador e depois profissional), na televisão e no cinema.

No teatro, o que chama a atenção no histórico de atuações de Aracy são os inúmeros espetáculos que em alguma medida registravam transformações importantes nas estéticas dramatúrgicas e cênicas no século XX. Aracy foi dirigida por Augusto Boal em “Juno e o pavão”, de Sean O’Casey (1957), por Maurice Vaneau em “Os ossos do barão”, de Jorge Andrade (1963), por Antunes Filho em “Vereda da Salvação”, também de Jorge Andrade (1964), por Flávio Rangel em “Depois da queda”, de Arthur Miller (1965), novamente por Augusto Boal na “Feira Paulista de Opinião”, com textos de Lauro César Muniz, Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri e do próprio Boal(1968), por Ademar Guerra em “Oh, que delícia de guerra”, de Joan Littlewood (1966), em “Marat Sade”, de Peter Weiss (1967), em “ Hair”, de James Rado, Gerome Ragni e Galt McDermot(1969), em “Brecht segundo Brecht”, de Oswaldo Mendes (1977), e em “Boa noite, mãe”, de Marsha Norman (1984), e por Eduardo Tolentino de Araújo em “O tempo e os Conways”, de J. B. Priestley (1985).

A linha do tempo das atuações teatrais de Aracy se estende paralelamente aos anos da ditadura, implantada em 1964, ao período de censura e perseguições iniciado com o AI-5 em 1968, à resistência ao regime autoritário, e à fase de transição para a chamada abertura democrática, indo até o final da década de 90, quando se deu o crescimento da indústria de telecomunicações e a implantação de um modelo econômico neoliberal para o país.

Como escreveu Natália Beukers em coluna publicada na Folha de São Paulo em 08 de agosto passado, a carreira de Aracy é antes de mais nada fruto dos palcos, mesmo que o sucesso televisivo tenha se superposto, na memória de várias gerações, ao registro deixado por tantos e tantos espetáculos, e ao valor artístico e humano de suas atuações teatrais.

 

 

III

ADERBAL

 

Uma curtíssima temporada de apenas três dias, em 2019, assinalou a passagem por São Paulo da montagem de “Vianinha conta o último combate do homem comum”, dirigida por Aderbal Freire Filho a partir do texto de “Nossa vida em família”, de Oduvaldo Vianna Filho, escrito no início dos anos 70. O espetáculo tinha estreado com sucesso de público e crítica no Rio de Janeiro em 2014, prosseguindo em cartaz nos anos seguintes com apresentações em inúmeras outras cidades do estado do Rio, de Minas Gerais, do Paraná, e em Brasília.

Por coincidência, na ocasião da estreia, a novela das 21 horas da Rede Globo de Televisão, com trama de Manoel Carlos, chamava-se precisamente “Em família”, e Aderbal, por isso, optou por alterar o título do espetáculo para evitar mal-entendidos.

A inspiração para o novo título foi a peça sinfônica do compositor estadunidense Aaron Copland, “Fanfarra para o homem comum”, composta em 1942 a partir de um famoso discurso do então vice-presidente dos Estados Unidos (Henry Wallace), que se referiu ao século XX como o “o século do homem comum”. A ideia era bastante compatível com o assunto central da peça de Vianna, que tratava do beco sem saída em que se via um casal idoso de trabalhadores da pequena classe média nos anos 70, empobrecida e sem perspectivas, dentro de um contexto familiar em que a sobrevivência material e a afetiva se encontravam em insolúvel contradição.

“Decidi por esse título porque, na peça, o Vianinha faz um recorte da etapa final da vida desse homem, como se fosse a sua última batalha manter ou não o aluguel”, comentou Aderbal em uma entrevista na época da estreia.

No espetáculo as intervenções feitas por ele modulavam a escrita dramatúrgica original de Vianna com recursos de distanciamento, como por exemplo a presença de todos os atores no palco em todas cenas, a transformação de um dos personagens (Beto) em um palhaço-narrador, e o uso de cenário bastante minimalista. Aderbal considerava essa peça o ápice da investigação de Vianna sobre o "homem comum", ou seja, o trabalhador brasileiro, o lutador que empenhara a vida inteira na batalha cotidiana pelo sustento da família.

Aderbal, juntamente com Eduardo Tolentino de Araújo, foi o diretor com maior número de direções de textos de Vianinha, pois já havia anteriormente dirigido “Corpo a corpo”, em 1975, “Moço em estado de sítio”, em 1981, e “Mão na luva”, em 1984.  

A partir da direção de Moço em Estado de Sítio seu trabalho se voltou para uma busca de equilíbrio entre experimentalismo e clareza na exposição dos fatos dramáticos. O texto era tomado por ele como um dos eixos da criação cênica, e o elenco era envolvido ativamente na criação do espetáculo.

Aderbal admirava, na dramaturgia de Vianna, o contraponto entre a leveza do humor e a densidade das questões cruciais ligadas à vida social e política do país. “Mão na luva”, a que Sábato Magaldi tinha se referido como a “enésima prova do talento de Vianinha”, recebeu de Aderbal um tratamento cênico de profundo lirismo na interpretação de Juliana Carneiro da Cunha e Marco Nanini. Por ela Aderbal recebeu os prêmios Mambembe e Golfinho de Ouro de melhor direção.

Um de seus focos constantes de atenção foi sempre a relação entre o texto original e o espetáculo. Numa entrevista de 1978, ele deixou clara sua preocupação com a fidelidade, sem, entretanto, deixar de problematizá-la:

Parece absurdo, mas eu tenho visto montagens tão pouco ‘influenciadas’ pelo texto original... Eu acho que toda montagem deve partir de uma ideia básica de fidelidade. [...] Os críticos me classificam de infiel, mas aí é outra coisa. A minha disposição básica é ser fiel, se o meu espetáculo não corresponde à expectativa de um crítico é porque preferi ser fiel ao autor e à nossa compreensão dele do que ser fiel a outro leitor, geralmente apressado.

Em 2008 ele voltaria a discutir essa questão, ressaltando o fato de ver o texto original como intrinsicamente inacabado:

Eu sempre quero ser muito fiel, e os meus espetáculos são provavelmente muito diferentes da expectativa que um leitor comum tem – porque ele dirige na cabeça dele e quando vai ver talvez não reconheça – mas o autor reconhece.

 Em sua grande extensão e diversidade de linguagens trabalhadas, o percurso teatral de Aderbal Freire Filho, deu sempre papel central à função questionadora do teatro, assim como fazia assim Vianinha. Não poderia ter sido mais significativo, portanto, que “Vianinha conta a última batalha do homem comum” tenha sido, precisamente, a última direção de Aderbal encenada em São Paulo.

 

 

REFERÊNCIAS

 

Lee Strasberg. Um sonho de paixão. O desenvolvimento do método. Rio de Janeiro. Tradução Ana Zelma Cardoso. Editora Civilização Brasileira. 1990.

Tania Carvalho. Aracy Balabanian: Nunca Fui Anjo. Imprensa Oficial do Estado.

1 ed. 2005.

 

Zé Celso Martinez Corrêa. Primeiro Ato. Cadernos, depoimentos entrevistas. Seleção, organização e notas, Ana Helena Camargo de Staal. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 1998.

 

Aderbal Freire Filho dirige nova montagem de “Nossa vida em família”. In: O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/aderbal-freire-filho-dirige-nova-montagem-de-nossa-vida-em-familia-12953804 [Acesso em: 25 ago. 2023]

Márcio Freitas. A fidelidade do “romance-em-cena” de Aderbal Freire-Filho. Revista Outra travessia 16. Universidade Federal de Santa Catarina - 2º Semestre de 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/download/2176-8552.2013n16p103/pdf_2/114419 [Acesso em: 25 ago. 2023]

 

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Maria Sílvia Betti é pesquisadora e docente Sênior no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCHUSP. Autora de Dramaturgia comparada Estados Unidos-Brasil. Três estudos. São Bernardo do Campo-SP: Cia. Fagulha, 2017. Organizadora da Coleção Oduvaldo Vianna Filho de dramaturgia (Editora Temporal).

 

NOTA: Texto originalmente publicado no site Infoteatro.



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Dois ausentes dominaram o Fórum Econômico Mundial em 2024: Trump e Putin. Por Flávio Aguiar

 

Dois ausentes dominaram o Fórum Econômico Mundial em 2024:
Trump e Putin. Por Flávio Aguiar


Seletividade contra inimigos:
Nos corredores do encontro são discutidas propostas de expropriação de capitais russos.

 

Entre os objetivos da ONG está o de promover iniciativas de governança global baseadas em princípios do liberalismo econômico. Para tanto reúne anualmente cerca de 3.000 empresários, governantes, acadêmicos, lideranças globais, jornalistas e demais “influenciadores” (para usar uma palavra da moda) que durante cinco dias debatem temas da atualidade em centenas de mesas.

Com a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991, o Fórum de Davos tornou-se uma "menina dos olhos" do capitalismo triunfante na Guerra Fria. Naquele momento, o cientista político norte-americano Francis Fukuyama chegou a proclamar o “fim da história”, afirmando que o capitalismo liberal do Ocidente e sua forma de democracia eram o estado social definitivo da humanidade.

Ao lado dos entusiastas do Fórum Econômico Mundial cresceram também seus críticos, vendo nele a formação de uma elite “desnacionalizada” sem compromissos sociais que não os de natureza apenas retórica. Fruto destas críticas nasceu seu contraponto, o Fórum Social Mundial, criado em 2001 em Porto Alegre, no Brasil. O FSM reuniu desde sempre um número expressivo de ONGs, sindicalistas, militantes de movimentos sociais e políticos em geral de esquerda. Já na sua primeira edição o FSM reuniu cerca de 20.000 participantes.

Em alguns momentos em que as datas de realização dos dois fóruns coincidiram, chegou a acontecer um diálogo virtual entre os participantes de cada um. Neste ano o FSM se reunirá no Nepal, na Ásia, entre 15 e 19 de fevereiro. Aliás, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, é dos poucos líderes mundiais com presença marcante em ambos os Fóruns, embora estivesse ausente nesta edição do de Davos em 2024.

 

Inteligência Artificial

Desta vez, vários comentaristas concordaram que a grande estrela dos debates foi a Inteligência Artificial, suas vantagens, conquistas e também seus problemas. Ressaltou-se a sua capacidade relâmpago de criar “fake news” e mundos imaginários num ano em que processos eleitorais de grande alcance envolvem 40% da humanidade, em todos os continentes regularmente habitados.

Também foram marcantes as presenças do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como sempre passando seu chapéu em busca de financiamento e mais armas para a guerra de seu país contra a Rússia, e a do recém-empossado presidente da Argentina, o ultra-liberal Javier Milei, propagandeando seu anarco-capitalismo e chegando ao ponto de afirmar que o próprio Fórum de Davos se apresentava contaminado por algo que chamou de “coletivismo” e “socialismo” - coisa que provocou aplausos e risos ao mesmo tempo.

Mas houve duas outras "presenças marcantes" nas mesas, nos corredores e nos encontros sociais do Fórum: os ausentes Donald Trump e Vladimir Putin. 

Trump foi uma espécie de aparição fantasmagórica, com o risco de seu retorno à Casa Branca e seus princípios de “America First” e desprezo por fóruns internacionais - o que, de certo modo, inclui Davos. 

Por outro lado, Putin - que já foi convidado ao Fórum e dirigiu-lhe a palavra em 2009 - foi eleito pelos comentários gerais como o inimigo n* 1 dos princípios de Davos.

Foi tal a hostilidade em relação ao presidente russo que circulou nos corredores, de modo insistente, a proposta de expropriar os 350 bilhões de dólares das reservas internacionais da Rússia para aplicá-los na guerra e na recuperação da Ucrânia.

Uma ideia semelhante já ocorrera antes em relação às reservas em ouro da Venezuela no Banco da Inglaterra, para entregá-las ao então líder oposicionista Juan Guaidó, hoje desacreditado por seus próprios ex-seguidores. 

Tais propostas contêm um paradoxo. Aparentemente a expropriação de capitais, uma prática antes defendida por organizações revolucionárias de esquerda, passou a ser uma bandeira seletiva de lideranças do Ocidente capitalista, para ser aplicada contra quem considerem um inimigo.

 

 

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

 

 

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Greve no setor ferroviário: movimento sindical alemão se reanima.

 

A semana que transcorreu entre 8 e 14 da janeiro tornou-se um símbolo da tensão que cresce na Alemanha.

Dois grandes movimentos marcaram estes dias.

O primeiro foi uma greve clássica, no sistema ferroviário, cuja espinha dorsal é a Deutsche Bahn (DB), uma empresa estatal que além dos trajetos de longa distância opera linhas regionais e parte do metrô da capital, Berlim (o sistema chamado de S-Bahn, onde o “S” significa “Schnell” - rápido).

Os grevistas - maquinistas dos trens de passageiros e de carga - reivindicam melhores salários e uma redução do tempo de trabalho de 38 para 35 horas semanais.

A DB tentou obter uma declaração de ilegalidade da greve junto a um tribunal de Frankfurt, sem sucesso. É a terceira greve temporária dos maquinistas desde novembro. A estimativa da própria empresa é de que desta vez a greve afetou 80% da circulação de trens no país. Coincidindo com uma forte onda de frio neste começo de ano, que mergulhou todo o país em temperaturas negativas por dias inteiros, a greve implicou uma redução notável na capacidade de locomoção dos usuários, afetando outros serviços.

Tempos atrás o governo alemão tentou privatizar a DB, sem sucesso, por falta de comprador interessado. Porém, para preparar a empresa para a venda, adotou uma série de medidas restritivas, “enxugando” pessoal e investimento. O resultado foi uma queda na eficiência das ferrovias alemãs, que deixaram de ter o perfil exemplar de pontualidade e qualidade de que desfrutavam no passado. As idas e vindas da COVID 19 e suas variantes a partir do começo de 2020 só agravou a situação, reduzindo por vezes o pessoal disponível.

O outro grande movimento da semana foi o de agricultores, que ocuparam as estradas e as ruas de cidades com seus tratores, bloqueando-as, em protesto contra os cortes nos subsídios por parte do governo, particularmente no que se refere ao financiamento do óleo diesel para o consumo dos veículos.

Neste caso, o que se observa é uma tentativa por parte de partidos conservadores, incluindo o radical Alternative für Deutschland (AfD), de extrema-direita, para capitalizar politicamente o movimento dos agricultores. Segundo as mais recentes pesquisas de intenção de voto, o AfD já se tornou a segunda força política na Alemanha, atrás apenas da conservadora União Democrata Cristã (CDU) e superando de longe todos os partidos que compõem a atual coligação do governo, o Partido Social Democrata (SPD) do chanceler Olaf Scholz, os Verdes e o liberal FDP. Por sua vez, a esquerda está em crise, com a dissolução da Linke e a formação de um novo partido, BSW, liderado pela deputada Sahra Wagenknecht, que emprestou suas iniciais para a sua sigla.

A situação desta semana mostrou a tensa encruzilhada em que se encontra a Alemanha, premida por uma inflação desestabilizadora que atinge sobretudo setores como agricultura, alimentação, energia e serviços, cujos preços vêm aumentando significativamente mais do que a média anual genérica que fica em torno de 10%. No setor da energia, por exemplo, duramente atingido pela ruptura do fornecimento do gás russo, devido à política de confronto com Moscou por causa da guerra na Ucrânia, a taxa de inflação superou os 40% anuais.

A crise subsequente reanimou o movimento sindical alemão, nos últimos anos amortecido por estratégias mais colaborativas com o capital, apesar dos duros cortes nos investimentos sociais e nos salários provocados pelas políticas de austeridade fiscal que imperam em quase toda a Europa, frequentemente implantadas pelos partidos socialistas ou social-democratas, com ajuda dos Verdes, como foi o caso na Alemanha.

Por outro lado, a mesma crise animou de vez a extrema-direita, que mobiliza corações e mentes com suas bandeiras demagógicas de fácil apelo, como a da xenofobia contra refugiados e imigrantes, particularmente os oriundos da África e do Oriente Médio. Tais bandeiras retrógradas se viram reforçadas pelo crescimento da islamofobia desde o ataque terrorista do Hamas em Israel no 7 de outubro e a brutal retaliação do governo de Benjamin Netanyahu contra toda a população palestina em Gaza e na Cisjordânia que vem matando crianças e mulheres em massa. Em toda a Europa, e a Alemanha não é exceção, a extrema-direita quer esconder seu passado tradicionalmente antissemita através do fomento da islamofobia, no que é ajudada pela política oficial de repressão contra simpatizantes dos Palestinos.

Em suma, o quadro é muito grave para um olhar progressista, pois a tendência atual é de que esta encruzilhada se transforme numa autoestrada para a extrema-direita, com o renascimento de práticas que lembram as do Terceiro Reich.

 

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

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Potsdam e suas conferências. Por Flávio Aguiar

 

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Palácio de Sans Souci - Potsdam

 

A cidade de Potsdam, ao lado de Berlim, é famosa por várias razões. Nela se alberga o Palácio de Sans Souci, onde o rei Frederico II, o Grande, da Prússia, passava seus verões, uma pérola em termos arquitetônicos e históricos.

Hoje nela também se alberga o Museu Barberini, aberto em 2017 no palácio restaurado que também serviu de residência temporária a Frederico II, com suas exposições maravilhosas — no presente com obras do pintor expressionista norueguês Edvard Munch.

Na ponte entre Potsdam e Berlim, durante a Guerra Fria, se realizavam as trocas de prisioneiros entre as potências do Ocidente, a Alemanha Ocidental, e a União Soviética e a Alemanha Oriental. Ver a propósito o filme “Bridge of Spies”, com Tom Hanks e grande elenco.

Potsdam também se tornou conhecida mundialmente por sediar a conferência que, reunindo Joseph Stalin (URSS), Harry Truman (EUA), o conservador Winston Churchill depois substituído pelo trabalhista Clement Atlee (Inglaterra), definiu entre 17 de julho e 02 de agosto de 1945 a divisão da Alemanha, da Áustria, de Viena e de Berlim entre as potências triunfantes da Segunda Guerra Mundial: além daquelas três, a alquebrada mas renascente França de De Gaulle.

Pois neste janeiro de 2024 Potsdam voltou a ganhar notoriedade em escala mundial graças a uma nova conferência, embora não tão retumbante quanto aquela de 1945.

Revelou-se no meio da segunda semana do mês que, em novembro do ano passado, realizou-se uma conferência secreta num de seus palácios. Desta vez reuniram-se ali representantes do partido Alternative fúr Deutschland (AfD), de extrema-direita, alguns empresários também adeptos da mesma tendência política, e o convidado especial, o austríaco Martin Sellner, líder do Movimento Identitário da Áustria. Este expôs seu projeto de “repatriamento” de alguns milhões de refugiados e imigrantes, vindos a Alemanha e Europa desde o “sul do mundo”, para fora do continente europeu. Destino: algum lugar do norte da África. “Repatriamento”? Expulsão, deportação, rejeição ou outra palavra menos decorativa. Em suma, para chamar as coisas pelos nomes que lhe são próprios, mais um projeto de “limpeza” étnica e social da Europa “pura” e “ameaçada” pelas “impurezas” d’além mar.

A notícia causou furor na Alemanha e alhures, até no Brasil. O AfD está sob investigação dos órgãos de segurança da Alemanha, suspeito de abrigar neonazismos. Se transformadas em acusações formais, e confirmadas, o partido poderia ser proibido e portanto fechado. Ao mesmo tempo, ele é hoje o segundo colocado em termos de intenções de voto no país, atrás apenas da União Democrata Cristã (CDU) e superando de longe os três partidos que compõem o atual governo, o Partido Social Democrata (SPD) do chanceler Olaf Scholz, os Verdes e o liberal FDP, uma espécie de antigo PFL brasileiro sem o arcaico coronelismo do hoje progressista Nordeste.

A comoção que tomou conta da mídia alemã deixou de lado um aspecto fundamental do acontecimento. Embora original pela sua composição, a tal de conferência em Potsdam segue uma tendência hoje espraiada no continente e a Alemanha não é exceção. Ou ao contrário: a extrema-direita a dita, porque a ela vem pautando, com suas propostas xenófobas, a política europeia como um todo.

Já faz mais de ano que o governo britânico do conservador Rishi Sunak vem tentando montar um programa de envio de refugiados e imigrantes indesejáveis para Ruanda, mediante remuneração. O programa só não foi adiante porque os tribunais britânicos vêm resistindo a aceitar a sua legalidade. Em meados do ano passado a União Europeia, representada pela sua presidente Ursula von der Leyen, acompanhada pela primeira-ministra italiana (de extrema-direita) Georgia Meloni, pelo então primeiro-ministro holandês Mark Rutte, assinaram em Túnis um acordo genérico com o presidente da Tunísia, Kavi Saled, envolvendo um montante de ajuda e investimento no país africano de um bilhão, cento e cinquenta e cinco milhões de euros, que prevê, entre outros dispositivos, uma contenção dos migrantes africanos que tentam por ali e através do Mediterrâneo chegar ao continente europeu. O acordo gerou muita polêmica, mas continua pairando sobre as levas de africanos que tentam fugir das condições duríssimas de vida em seus países para buscar um alívio utópico numa Europa que lhes é cada vez mais hostil ao mesmo tempo em que recebe de braços abertos os refugiados ucranianos porque, no fim de contas, estes são “europeus iguais”.

Para agravar este quadro complicado, a Alemanha e a União Europeia vêm mantendo uma posição complacente diante da contínua e cruel agressão do governo de Benjamin Netanyahu contra a população palestina em Gaza e na Cisjordânia. Ali se fala também na possibilidade de deportação de milhões de palestinos de Gaza para o Egito, em mais uma operação de “limpeza” étnica, social e política.

Para completar este debuxo já condenável, tais atitudes lembram a primeira proposta que circulou entre os governantes do Terceiro Reich para solucionar o “problema judaico”. Conhecida como o “Plano Madagascar”, formulada oficialmente em julho de 1940 por Franz Rademacher, o chefe do Departamento Judaico do Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, ela previa a deportação de um milhão de judeus para aquela ilha do Oceano Índico. O bloqueio naval britânico impediu sua realização. Ela acabou sepultada de vez na conferência de Wannsee, em janeiro de 1942, em que se sacramentou a opção nazista pela “Solução Final” para “resolver” o “problema judaico” e outros (ciganos, “deficientes”, homossexuais, Testemunhas de Jeová, comunistas, prisioneiros de guerra, dissidentes, etc.), ou seja, o Holocausto.

A propósito: o bairro de Wannsee fica em Berlim, mas do outro lado do lago que a une a Potsdam.


Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

 

 

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