RESENHA do livro “O RATO PENSADOR”,
por Maria Sílvia Betti
Que o pensamento seja sempre veículo da liberdade.
O Rato Pensador, de
Agenor Bevilacqua Sobrinho.
Resenha
de Maria Sílvia Betti – FFLCH-USP
RESENHA
SOBRE “O RATO PENSADOR”, de Agenor Bevilacqua Sobrinho.
SOBRE “O RATO PENSADOR”, de Agenor Bevilacqua Sobrinho.
Cia. Fagulha, Coleção Teatro na Escola.
Maria Sílvia Betti - Professora da FFLCH/USP -
Universidade de São Paulo
"O RATO PENSADOR"
e seu percurso de descobertas e reflexões.
"O Rato Pensador", fábula
teatralizada por Agenor Bevilacqua Sobrinho, é a recriação de uma narrativa
popular da Sardegna relatada pelo pensador Antonio Gramsci (1891-1937) em uma
das cartas que escreveu do cárcere a Giulia, sua mulher. Desenvolvendo o enredo
a partir da narrativa evocada por Gramsci, Agenor presta homenagem ao filósofo
ao mesmo tempo em que traz ao público brasileiro a oportuna reflexão acerca da
responsabilidade social presente na fábula sarda.
O vasto material epistolar deixado por Antonio
Gramsci é rico em referências à importância do ato de narrar, assim como em
reminiscências de infância impregnadas de menções a historietas correntes no
contexto sardo do início do século.
Sendo a Sardegna contemporânea a Gramsci uma
região pobre e marcada por problemas socioeconômicos, o paralelo estabelecido
por Agenor com o contexto brasileiro do Nordeste e de regiões de baixa renda
torna-se extremamente significativo. Esse é um dos aspectos centrais da fábula
recriada e de sua encenação.
Um rato toma o leite que uma mulher, pobre e
desempregada, estava reservando para o filho. O choro do menino e a frustração
da mãe enchem o rato de remorsos. Disposto a reparar o erro, ele tenta
proporcionar ao garoto o leite de que o havia privado, e acaba chegando a uma
série de constatações que transformam seu olhar a respeito das relações sociais
e do impacto delas sobre a natureza.
No percurso que assim se inicia, o rato é
acompanhado por duas pequenas palhacinhas com as quais dialoga e com as quais
comenta as dificuldades que encontra ao longo do caminho.
Um enredo simples e desenvolvido a partir de
uma situação aparentemente desprovida de aventura leva a surpreendentes
desdobramentos: ao contrário do que julga o rato, sua boa vontade individual
não é suficiente para sanar o problema, cujas raízes são mais profundas do que
ele supunha: a cabra, desnutrida, não tem pastagens para se alimentar, e
portanto não pode lhe dar o leite desejado; o capim seco que cresce no campo
devastado precisa de água que possa revitalizá-lo a fim de alimentar a cabra e
dar-lhe forças para produzir o leite; a fonte, destruída pela guerra, deixa
escorrer e perder-se a água que poderia irrigar o campo e fazer crescer o
capim; o pedreiro, que não dispõe de pedras, não pode consertar a fonte, e a
montanha onde se encontram as pedras sofreu o desmatamento e a erosão
resultantes da ação dos especuladores, cujo interesse único é o lucro.
Toda uma conjuntura ampla e complexa vai sendo
pouco a pouco desvendada pelo ratinho pensante. Em sua trajetória não faltam os
atropelos motivados por encontros com representantes do saber acadêmico
(personificado no autoritário Professor Atrapalhão), do tempo expropriado pelo
mundo competitivo do trabalho (simbolizado na corrida desenfreada do personagem
Atrasildo em sua maratona de compromissos e nas dezenas de relógios que leva
consigo) e da incapacidade de transformação (associada ao personagem Apavorado,
que nutre um medo supersticioso e apocalíptico de tudo à sua volta).
Ironicamente, a chave para lidar com esse
conjunto intrincado de situações acaba sendo fornecida pela Bruxa, figura a
quem o rato havia relutado em recorrer, a despeito dos conselhos recorrentes
das palhacinhas. A imagem de uma feiticeira perversa e cheia de artimanhas cai
por terra quando, vencendo o preconceito, o rato se dispõe a ouvi-la, e descobre
nela uma mulher do povo, cuja sensatez e sensibilidade serão decisivas para
levá-lo a encontrar a melhor forma de agir diante das situações que se
apresentam.
Ao invés de mágicas e sortilégios, o rato
encontra nas sugestões da mulher uma perspectiva de ação sobre a realidade à
sua volta. As palavras dela apontam para um processo longo, e não para uma
solução imediata, e a transformação produzida virá apenas com o tempo: para que
o menino tenha o leite, é preciso que a consciência interfira na sociedade e na
natureza. A imagem do dominó, sugestivamente presente na brincadeira das
crianças no início do espetáculo, funciona como metáfora de toda a cadeia
causal de circunstâncias com as quais o rato irá se defrontar e que irão
desencadear o seu processo de reflexão e aprendizado.
A fábula de Agenor incorpora à matéria-prima da
narrativa de Gramsci um importante elemento de reforço de seu sentido crítico,
que é a presença constante do ato de narrar: o rato relata os acontecimentos às
duas palhacinhas que o acompanham, e, ao fazê-lo, constrói um olhar sobre eles,
permitindo que sejam postos em discussão.
As meninas, que veem de fora a sequência dos
fatos, interagem e opinam; o rato, colocado diante de suas interlocutoras,
critica-as na mesma medida em que compartilha com elas toda a sua aflição.
Também as figuras de Atrapalhão, Atrasildo e
Apavorado funcionam como elementos emblemáticos inseridos por Agenor na
estrutura da fábula sarda, e permitem uma referência crítica ao mundo da
escola, do trabalho e das relações sociais, respectivamente.
A questão ecológica, que perpassa todo o texto,
é indissociável da existência da guerra e da exploração da natureza e do
trabalho, aspectos que conferem ao espetáculo uma grande riqueza de
possibilidades sob o ponto de vista pedagógico.
Gramsci, aprisionado em 1927 e morto dez anos
depois, passou sua última década de vida entre o cárcere e as clínicas de
saúde, sempre em regime de liberdade vigiada. Na época de sua prisão, seu filho
mais velho, Delio, a quem ele não tornaria a ver após ser preso, tinha então
três anos de idade, e o mais novo, Giuliano, que ele só conheceu por fotos e
cartas, ainda não era nascido.
O desejo de transmitir a eles afeto e
experiência foi avidamente canalizado por Gramsci através das cartas, e
encontrou em lembranças de infância e em narrativas folclóricas um importante
veículo de comunicação com os meninos. Vem daí o cuidado didático e afetuoso
com que o filósofo instrui Giulia a recontar a fábula aos garotos:
"gostaria de contar agora a Delio uma história da minha terra que me
parece interessante. Vou resumi-la para você e você a desenvolverá para ele e
para Giuliano".
O resumo feito pelo filósofo não edulcora os
elementos originais da narrativa popular, como acontece, via de regra, em
narrativas contemporâneas de contos infantis tradicionais. Gramsci preocupa-se
em transmitir a Giulia o arcabouço de fatos de forma objetiva e despojada. Isso
comprova a eficácia do material narrativo contido no enredo da fábula, que se
apresenta rica de elementos a serem, tal como ele recomendou à esposa,
desenvolvidos no relato aos meninos.
Ao contrário do que ocorre nos contos de fadas
convencionais e nas histórias de aventuras, a riqueza da fábula não está
contida nas ações praticadas, mas no conjunto de relações que elas desvelam e
na presença implícita daquilo a que Gramsci se refere, em sua carta, como
"um verdadeiro plano próprio de trabalho, orgânico e adaptado a um país
arruinado pelo desmatamento". Nada mais adequado, portanto, do que o
título "O Rato Pensador", referência a um itinerário de descobertas
que levam à construção de um pensamento crítico.
A concepção essencial da fábula recriada por
Agenor se faz presente na concretização de um preceito essencial que remete não
apenas ao pensamento de Gramsci mas também ao do dramaturgo e pensador teatral
Bertolt Brecht (1898-1956): as coisas e as conexões mais triviais devem ser
examinadas atentamente e discutidas, pois em sua forma e nas relações que
constroem existem aspectos importantes a serem conhecidos e dominados. "Em
tempo de desordem sangrenta," diz Brecht, "de confusão organizada, de
arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer
natural, nada deve parecer impossível de mudar." Esse é, justamente, o
espírito do trabalho desenvolvido por Agenor Bevilacqua Sobrinho em seu
espetáculo "O Rato Pensador".
Maria Sílvia Betti
Professora
da FFLCH/USP – Universidade de São Paulo
Serviço:
O Rato Pensador
Autor: Agenor Bevilacqua Sobrinho
Editora: Cia. Fagulha
ISBN
10: 85-902373-1-1
ISBN 13: 978-85-902373-1-0
Páginas: 60
WhatsApp:
(011) 95119-8357
O Rato Pensador – Agenor Bevilacqua Sobrinho
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