Publicado
originalmente em:
Rasga Coração: a
melhor obra do maior dramaturgo brasileiro do século XX.
Assistimos
ao filme Rasga Coração (2018), de
Jorge Furtado, roteirizado por este, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno.
Os
eixos temporal e espacial são deslocados de 1900-1970, na peça, para 1970-2015,
aproximadamente, no filme.
Em
repetidas entrevistas a rádios, blogs, sites etc., o diretor do filme insiste
em afirmar a “fidelidade ao texto da peça” (escrita entre 1972 e 1974) homônima
de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1974).
Entretanto,
acreditamos que a fidelidade, apresentada no plano retórico nas entrevistas,
não está figurada concretamente no filme. E isso não se deve apenas à
“atualização” pretendida na obra cinematográfica até muito próximo de nossos
dias.
Há
vários pontos de dissonância, mas abordaremos quatro deles, a saber:
1. Na peça, Luca (Luís Carlos),
o filho de Custódio Manhaes Jr. (na juventude, Manguari Pistolão), protesta,
durante a vigência da ditadura civil-militar de 1964, na porta do colégio, no
processo inicial de ocupação da escola, e toma um soco do segurança, sendo
abatido e sangrando bastante devido ao corte produzido pela agressão.
Paralelamente, no passado, nos damos conta da tortura a que são submetidos
Manguari, Camargo Velho e Lorde Bundinha (Luís Campofiorito), na tentativa
brutal dos agentes repressivos recolherem informações de nomes de
adeptos/partidários do movimento que se opunha à ditadura do Estado Novo.
No
filme, o sangramento copioso de Lucas (Chay Suede) é mostrado como mais grave,
comparativamente aos três no passado, cujos tímidos gemidos e dificuldades para
andar parecem ser de menor dimensão do que a gravidade “visual” da profusão de
sangue em Luca dá a entender.
Aqui,
há um menoscabo crítico sobre a prática da tortura, ao negligenciar as sequelas
imediatas e tardias dos espancamentos a que prisioneiros políticos eram
submetidos.
2. Na peça, a ocupação da escola
tem caráter político. Ao subtrair as provas do colégio, os estudantes ativistas
se insurgiam contra um instrumento pedagógico que fora convertido em pretexto
para punir Luca, cujos cabelos compridos desrespeitavam as regras repressivas
do estabelecimento de ensino de propriedade de Castro Cott, arquiconservador e
adepto do integralismo em sua mocidade. Ao proibir o acesso ao colégio de
rapazes portadores de cabelos longos e, consequentemente, a realização de
exames por parte dos “indesejáveis”, frustra-se a conclusão do curso de ensino
médio que habilitaria esses candidatos para os vestibulares. Assim, Cott
expressa, de forma ostensiva, a censura e perseguição ideológicas levada a
efeito seletivamente pelos “cidadãos de bem”.
No
filme, a repressão é determinada pelo uso de saia e esmalte de Luca (campo das
identidades de gêneros), como álibi para o impedimento das provas. Entretanto,
de forma despolitizada e ecoando narrativa conservadora a respeito da natureza
da iniciativa do movimento estudantil, ocorre a depredação de porta de vidro de
área administrativa do colégio, perdendo-se por completo o objetivo político
residente no texto da peça. Em outras palavras, a ação política é esterilizada
ao ser rebaixada no estreito compartimento da visão de classe média sobre o que
seriam manifestações (atos irresponsáveis e sem discernimento).
3. Na peça, temos Camargo Moço —
sobrinho de Camargo Velho (antigo militante disciplinado do PCB e camarada de
Manguari, na juventude) — encontrando-se e participando com Luca no movimento
que protesta contra a exclusão deste e de outros da escola pela mentalidade
repressiva da época. Milena, a namorada de Luca, defende a ação direta, a luta
armada contra a ditadura (1970).
No
filme, Camargo Moço é substituído por Talita (Cinândrea Guterrez), uma jovem
negra (identitarismo, ausente na peça) e filha de Camargo Velho. Milena (Luísa
Arraes), que no filme se veste com roupas masculinas (questão de gênero,
ausente na peça), advoga a ação direta, mas na película esta é depreciada,
estereotipada e inconsequente, resumindo-se à depredação na escola. Sem amparo
no texto de Vianinha, Jorge Furtado, adicionalmente, dá um viés preconceituoso
a Milena, ao fazê-la, em uma assembleia estudantil, atropelar e desvalorizar a
fala de Talita. Esta transmite a Luca a admiração, que aprendera de Camargo
Velho, pela história de militância do pai de Luca.
4. Na peça, o cabelo comprido
está ligado à rebeldia do movimento hippie,
ao passo que, no filme, a saia e o esmalte de Luca remetem, como apontamos, a
pautas identitárias, inserindo a leitura da peça em paradigmas e prismas
claramente distintos de Vianinha. Hoje, os defensores expoentes destas pautas
(gênero e outras) demandam paridade de importância ou até mesmo prevalência em
relação às reivindicações político-econômicas.
Todavia,
na peça o período de três gerações (reduzido a duas no filme, por razões de
extensão da obra fílmica e de custos, segundo o diretor) produz um painel épico
que recobre um período de aproximadamente 70 anos — com as diversas iniciativas
das classes trabalhadoras no processo de luta de classes — sob a perspectiva
popular.
No
filme, o épico é substituído pelo drama intersubjetivo, no qual é dado relevo
aos conflitos familiares, que acabam por eclipsar as determinações econômicas
que presidem a sociedade. Não por acaso, a Globo é produtora do filme, e a
estética de suas novelas é inserida e imediatamente reconhecível na obra de
Furtado.
Por
exemplo, no filme temos a naturalização das manifestações de 2013, sob o filtro
da TV, durante brevíssimos segundos (essa falta de profundidade para abordar também
é sintomática). Sabemos que as mídias corporativas, e as Organizações Globo, em
particular, impuseram uma narrativa sobre o desenrolar dos acontecimentos,
convocando as “famílias” para participarem dos protestos e incitando, com suas
câmeras, black-blocs e outros
supostos “revolucionários” (cujos agrupamentos estavam coalhados de X-9 e
assemelhados) a depredarem e exercerem a destruição de lojas e estabelecimentos
comerciais (supostamente em “atitude antissistema”) sob a complacência da
polícia, que esporadicamente agia para camuflar a deliberada produção do caos
como um dos episódios do golpe de Estado que se consumou em uma de suas etapas
(a parlamentar) em 2016.
Luca,
na peça, raciocina com descortino sobre os malefícios da alimentação
industrializada e repleta de conservantes químicos e agrotóxicos, mas não
consegue estabelecer a ligação entre a cadeia dessa indústria e o sistema
econômico que o sustenta. Com seu voluntarismo, propõe que a solução seria os
operários e trabalhadores abandonarem seus postos de trabalho e deixarem de se
comprometer com os males de um negócio altamente tóxico. Ademais, com o
agravante de suas próprias contradições de viver como adolescente desvinculado
da produção usufruindo de recursos patrocinados pelo pai, que também precisa
lidar com diversas incoerências, mas se mantém fiel a suas crenças da
importância de exercer a militância política em contato direto com a base de
trabalhadores de diversas categorias profissionais.
Portanto,
a análise capenga de Luca o impede de reconhecer os liames estruturais da
injustiça em diversos quadrantes.
No
filme, a menção “neutra” a 2013, deixa sem questionamento os promotores e reais
beneficiários do golpe de Estado (que já se engendrara há anos), cuja doce
ilusão do “não é por R$ 0,20” demonstrou-se literalmente: afinal, são trilhões
de dólares representados no saque colonial das imensas reservas do Pré-sal, da
Eletrobras, da Amazônia, do Aquífero Guarani, dos bancos públicos, das
privatizações selvagens, da impiedosa revogação de direitos trabalhistas,
sociais, previdenciários etc.
Sabemos
que a Rede Globo tolera atitudes comportamentais desviantes dos padrões médios em
suas novelas, mas não suporta minimamente que sejam arranhadas as estruturas
que perpetuam as desigualdades no Brasil. Mesmo as iniciativas tímidas no
sentido de amenizar a escandalosa concentração de renda reinante no país são
tipificadas como obras de “esquerdistas”, “bolivarianos” conspurcadores “da
moral e dos bons costumes”.
Com a
destruição reiterada do sistema político — orquestrada pela mídia hegemônica, o
aparato repressivo do Estado e o capital nacional, associados subalternamente
aos interesses forâneos dos grandes e reais favorecidos —, desembocamos no
fascismo bolsonariano, cujo berço foi embalado e acalentado pelos delírios
antipetistas (de todos os matizes).
Nosso
breve texto é uma iniciativa (esperemos que acompanhada de outras) no sentido
de questionar as possíveis sedimentações interpretativas ao abonar “novas
leituras” por aqueles que sequer tiveram contato com o texto original de
Vianinha, especialmente o público mais jovem.
Assim,
convidamos a todxs para a leitura de Rasga
Coração, edição competentemente organizada pela professora Maria Sílvia
Betti (FFLCH-USP), autora de Oduvaldo
Vianna Filho (Edusp/Fapesp, 1977) e Dramaturgia
Comparada Estados Unidos/Brasil. Três
estudos (Cia. Fagulha, 2017, https://www.ciafagulha.com.br/
).
Serviço:
Rasga Coração
Autor: Oduvaldo Vianna Filho
(Organização: Maria Sílvia Betti)
Editora: Temporal, 2018
ISBN 13: 978-85-53092-00-0
(Peça)
ISBN 13: 978-85-53092-01-7
(Dossiê de Pesquisa)
Páginas: 184
(Peça)
Páginas: 316
(Dossiê de Pesquisa)
(dois volumes: peça e dossiê de pesquisa)
Rasga
Coração –
Oduvaldo Vianna Filho
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp: (011) 95119-8357
Conheça
também:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil:
Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
Dramaturgia
Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp: (011) 95119-8357
[1] Agenor Bevilacqua
Sobrinho é doutor em Artes Cênicas pelo CAC/ECA-USP e Mestre em Artes pelo Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-UNESP). É pesquisador do Grupo
de Pesquisa “Estudos histórico-críticos e dialéticos de teatro estadunidense e
brasileiro” (CNPq). Editor, dramaturgo e escritor, é autor de Atualidade/utilidade
do trabalho de Brecht. Uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens
femininas, A Lente, A Guerra de Yuan, O Rato Pensador (todos
pela Editora Cia. Fagulha: www.ciafagulha.com.br ) e de
vários artigos publicados em revistas especializadas. E-mail: editora@ciafagulha.com.br
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