Cartaz da encenação de Papa Highirte, peça do dramaturgo
Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), no Teatro dos 4 (Rio de Janeiro), em 1979, sob
a direção de Nelson Xavier. Elenco: Sérgio Britto, Tonico Pereira, Ângela Leal,
Nildo Parente, Carlos Alberto Baía, Dinorah Brillanti, Hélio Guerra, Paulo
Barros e Miguel Rosenberg.
Resumo – Este artigo analisa alguns dos
expedientes dramatúrgicos utilizados na peça “Papa Highirte”, de Oduvaldo
Vianna Filho.
Palavras-chave: dramaturgia brasileira; teatro
brasileiro; obra de Oduvaldo Vianna Filho
Abstract – This article examines some of the
dramaturgical techniques used in the play “Papa Highirte”, by Oduvaldo Vianna
Filho
Keywords: Brazilian drama; Brazilian Theater;
Oduvaldo Vianna Filho’s works
“Papa Highirte”, peça de Oduvaldo Vianna Filho
escrita em 1968, trata de uma questão desafiadora sob o ponto de vista de sua
figuração dramatúrgica: a tentativa de retomada do poder pelo ex-ditador
deposto da fictícia república latino-americana de Alhambra, exilado há já
alguns anos na também fictícia Montalva. A deposição de Highirte, supostamente
exigida em nome de liberdades democráticas, tinha sido, de fato, agenciada pelas
cúpulas militares a serviço dos interesses de uma “potência estrangeira”
hegemônica. Construída a partir dessa situação de exílio e da contradição a que
ela remete, a peça tem seu foco crítico voltado para a dependência da ditadura
em relação a essa potência, e para sua subserviência quanto às demandas
impostas por ela.
O ex-ditador, cognominado Papa
Highirte (Juan Maria Guzamon Highirte), está confinado em um bunker em Montalva e procura
angariar apoios a seu plano. Ao situar o núcleo dramático no exílio, e,
portanto, fora do período ditatorial em Alhambra, a peça não desvia a atenção
de seu leitor e espectador sobre esse contexto político e histórico: pelo
contrário, exacerba-a alternando cenas do passado sob a ditadura, e do
presente, em que as articulações conspiratórias estão em andamento.
Highirte, no exílio, está na mira do
jovem Mariz, militante de uma organização de esquerda armada que pretende
vingar o assassinato do companheiro e líder revolucionário Manito, vítima da
tortura sob o governo sanguinário do ex-ditador. Manito era o sobrinho querido
de Grissa, criada de Highirte que o acompanha em Montalva, mas que carrega
consigo a dolorosa inconformidade com a explicação dada para a morte do rapaz.
Mariz, no presente, tem um estratégico relacionamento clandestino com Graziela,
jovem amante do ex-ditador graças à qual consegue, logo no início, ser
contratado como seu novo motorista, posição que deverá lhe dar a chance de executar
o plano de vingança.
O passado de cada uma dessas
personagens contém em si o germe de desdobramentos elucidadores. A alternância
cênica com o presente, diferenciada no palco por modulações de luz, vai aos
poucos ressaltando as contradições entre a realidade dos fatos sob a ditadura
de Highirte e as justificativas oficiais a respeito deles, dando margem a
várias sequências reveladoras de cenas.
Em cena do passado em Alhambra, por
exemplo, Grissa pede ao ditador pela vida de Manito, que foi preso sob a
acusação de assalto ao quartel da Terceira Divisão. No presente, em diálogo com
ela, Highirte alude com impaciência à explicação que alega ter-lhe dado já
várias vezes relatando que Manito morreu numa tentativa de fuga, e não em
decorrência de tortura. Novamente volta-se o foco cênico para o passado, e nele
vemos o próprio ditador perguntar ao General Perez y Mejia sobre a prática de
tortura em Alhambra. Denúncias haviam sido feitas pelo jornal de oposição El Clarin, cujo fechamento foi
sintomaticamente exigido por Mejia.
Ao colocar em foco o contraste entre
passado e presente, essa sequência evidencia o falseamento dos fatos pelo
governo de Highirte e pelo generalato que o apoiava. O passado trazido à cena
intercala-se ao presente, produzindo elucidações a seu respeito. A supressão da
verdade é exposta estruturalmente por meio da alternância entre os tempos,
desvelando assim ao espectador e ao leitor o contexto real dos acontecimentos
ocultados.
Igualmente relevante para essa forma
de funcionamento da estrutura é o enquadramento temporal dado às cenas
explícitas da tortura sob o regime ditatorial de Highirte. Embora situadas no
passado, essas cenas materializam-se no palco em paralelo com diferentes
momentos do presente, colocando em foco a presença concreta de torturadores em
ação. Trata-se de uma simultaneidade que, em sua intermitência ao longo da
peça, dá materialidade cênica ao contexto de autoritarismo e aos mecanismos por
meio dos quais se impunha a ditadura de Highirte em Alhambra.
Uma ocorrência importante desse
recurso se dá quando Mariz, no bunker,
passa pela entrevista de admissão para o emprego de motorista enquanto,
paralelamente, em cena do passado, dois encapuçados torturam um rapaz visto de
costas e que tem exatamente a sua estatura e aspecto físico. O nexo associativo
entre essas duas imagens, contrapostas por meio de simultaneidade cênica,
ressalta o sentido político da motivação do rapaz e ao mesmo tempo a denúncia
implícita dos expedientes da tortura sob a ditadura de Highirte.
Todas as cenas de Mariz no bunker, no presente, já como motorista
de Highirte, mostram-no sob o impacto de projeções rememoradas de seu passado
militante em diálogos com Manito, contrapostas ao presente por simultaneidade
cênica. Trata-se de um recurso por meio do qual ganham relevo os debates
internos da organização de luta armada, com a defesa da ação de vanguardas
revolucionárias por Manito e da organização coletiva da luta por Mariz. Nas
rememorações, Manito aparece sempre ensaguentado e com as marcas da tortura que
viria a sofrer, recurso que frisa, a cada ocorrência, a indissociabilidade
entre seu assassinato sob tortura e a determinação vingadora de Mariz no
presente.
Também Highirte é tomado por
rememorações quando, dançando a chula e bebendo pulque numa cena do presente em
Montalva, a rememoração indesejada das duras palavras de crítica de Mejia sobre
seu governo levam-no a arremessar com força a garrafa contra a parede, como que
no desejo de dissipar a lembrança e o sentido do que Mejia lhe disse.
Ao
desmentir o passado e expô-lo em suas contradições, a peça emprega
consistentemente um recurso que, em sua funcionalidade, exerce de forma econômica
e sugestiva o papel que narrativas e comentários teriam, conseguindo assim
intensificar ao máximo o impacto exercido sobre espectador e leitor. Exemplo
disso é a cena em que Highirte, no passado, diz a Mejia que sabe ser amado pelo
povo, enquanto no presente, logo a seguir, leva um susto que o faz ter uma
reação patética e ao mesmo tempo brutal ao ser surpreendido por uma brincadeira
de Graziela, que chega sem ser pressentida e brinca de vendar-lhe os olhos com
as mãos. A reação histérica é sintoma de sua fragilidade e de seu medo pânico,
e é prontamente traduzida em violência extrema ao desferir um tapa na face da
moça, desmentindo assim a autoconfiança que ostentava quanto ao sentimento que
lhe era dedicado pelo povo de Alhambra.
Presente
e passado compõem nessa cena uma configuração de síntese que se repete em outra
igualmente digna de nota: Highirte tem Graziela nos braços, no presente,
enquanto simultaneamente, no passado, rebate as pressões por democratização que
lhe são feitas por Mejia. O sentido implícito de síntese se caracteriza
fortemente porque todos os fios dramáticos encontram-se representados de
alguma forma: a essa altura espectador e leitor já sabem que a moça introduziu no
bunker aquele que planeja executar o ex-ditador,
e sabem também que Mejia, que havia assegurado pela força a implantação da
ditadura de Highirte, seria também agente das pressões por suposta
redemocratização que acarretariam a derrubada do ditador e o seu banimento de
Alhambra.
Os nexos de contraste subentendidos
entre os tempos são recursos estruturantes que não se restringem, porém, a
cenas consecutivas ou simultâneas: também cenas que ocorrem separadas entre si
constroem, por meio de seus conteúdos, nexos implícitos de contraste entre
passado e presente. É o caso, por exemplo, das interações entre Highirte e
Perez y Mejia, seu principal assessor no passado em Alhambra e seu principal
interlocutor no exílio no presente. Mejia, que antes cobrava de Highirte o
acirramento do autoritarismo, passa a partir de um certo momento a exigir-lhe a
renúncia e a priorizar o restabelecimento da democracia em Alhambra, já que
essa é a linha que se tornou conveniente à hegemonia da potência estrangeira.
O contraste entre as posições
defendidas pelo General nessas cenas expõe de forma flagrante a incipiência da
estrutura do poder em Alhambra, a fragilidade política de Highirte, e ao mesmo
tempo a deficiente percepção que ele tivera sempre, tanto do contexto em que ganhou
apoio no passado como daquele em que veio a ser derrubado.
Sob o ponto de vista de sua
composição dramatúrgica, pode-se dizer que a peça se desenvolve com base na
progressão de dois fios dramáticos paralelos: um voltado aos empenhos
conspiratórios de Highirte, que deseja angariar apoios para voltar ao poder, e
outro voltado à execução do plano de vingança de Mariz, que deseja executar o ex-ditador.
No caso do primeiro, um desafio
compositivo importante se apresenta: para que as articulações tentadas por Highirte
no presente se configurem em cena, é necessário contextualizar a situação de
Alhambra sob o governo de seu sucessor, Camacho, e definir a posição agora
tomada pelas Forças Armadas e pela “potência estrangeira”. Como o presente
cênico da peça está focado na situação de exílio de Highirte em Montalva, o recurso
utilizado é, primeiramente, o da narração indireta, depreendida de suas
réplicas em ligação telefônica ao General Menandro e num segundo momento o de
um encontro que o General Menandro aceita mediar em Montalva entre o ex-ditador
e o representante diplomático daquela “potência”. Esse expediente permitirá
trazer ao espaço do bunker os
elementos necessários para que os personagens dialoguem e interajam de modo a
dirigir o foco de suas interações sobre o contexto político presente da
Alhambra pós-Highirte.
A cena do encontro tão esperado por
Highirte faz convergirem para o espaço cênico do presente no bunker todos os agentes dramáticos
ligados às questões políticas representadas.
O tom é quase bufonesco: Highirte,
que não fala inglês, destempera-se, pois Menandro, além de se mostrar um
tradutor sofrível, exorbita de sua função de intérprete, e a partir de uma
certa altura passa a encampar em suas falas os argumentos do Estrangeiro. No
que diz respeito à esfera política representada na peça, esta cena empreende a síntese
do contexto de Alhambra e com ele o da América Latina, deixando claro que as
decisões determinantes são aquelas que asseguram o atendimento das demandas e
dos interesses da ‘potência estrangeira”. O resultado tem efeito épico por seu
potencial distanciador: a democratização exigida não assegurará transformação
efetiva e nem avanço das liberdades democráticas, já que a prioridade
continuará a ser a das consequências estratégicas da “potência estrangeira” no
país e no continente.
No caso do segundo fio dramático,
voltado para a execução do plano de Mariz, o desafio compositivo não é menor:
espectador e leitor sabem da motivação do rapaz e presenciam a forma arrogante
e desdenhosa com que o ex-ditador se dirige a ele. A tensão cresce a cada passo
rumo à consecução da vingança, inclusive porque, embora chegue a dizer-se
indiferente à ideia de um possível relacionamento entre Graziela e Mariz,
Highirte provoca-o com insinuações maliciosas sobre a moça e não disfarça o
prazer que sente em expor ao rapaz detalhes torpes de sua intimidade com ela.
O ex-ditador é um protagonista sem
protagonismo, incapaz de se aperceber plenamente do contexto real à sua volta,
seja no âmbito político seja no plano imediato de sua sobrevivência no bunker. Mariz, no entanto, é alguém que
enxerga dolorosamente a verdade dos fatos e que irá até as últimas
consequências para desempenhar a tarefa que passou a representar a prioridade
de sua vida.
O desafio dramatúrgico implícito a este
respeito consiste na necessidade de configurar Mariz com uma estatura dramática
condizente com o relevo político de seu papel. Sempre contido e de poucas
palavras e sempre tomado pelas dolorosas rememorações de Manito em sua
exemplaridade revolucionária, Mariz, como personagem, demanda uma eclosão de voz
e de ímpeto para que o sentido de seu antagonismo se desenhe em cena com o
devido vigor.
Essa eclosão acontece na segunda
parte da peça quando ele se sente provocado pela desconcertante ingenuidade de
Graziela, que num encontro clandestino tenta proporcionar-lhe as mesmas
carícias que lhe eram exigidas por Highirte. Tomado pela revolta, Mariz irrompe
num longo e doloroso relato entrecortado por projeções da imagem do
companheiro, e revela que, por ter fraquejado em sessões de tortura a que foi submetido
e por ter nessas circunstâncias denunciado Manito, considera-se o responsável
por sua prisão e morte.
É grande, por isso, o impacto
dramático produzido na cena final da peça quando Mariz, em vias de perpetrar
seu ato final contra Highirte, ouve, no interior de sua consciência, as
palavras que no passado lhe haviam sido dirigidas por Manito a respeito da luta
revolucionária: “você veio até aqui, não pode voltar, não pode voltar!”.
Highirte está só no bunker, pois Grissa
avisou-o que voltará para Alhambra. Ironicamente, Mariz é o único interlocutor
de Highirte nesse momento. É de fundamental importância para o rendimento
crítico da peça, nessa cena final, o fato de a fragilidade de Highirte não o
tornar uma vítima, e de Mariz não ser heroicizado em seu ato derradeiro de vingança
contra o ex-ditador.
Há um sentido de autocondenação na
determinação que propele Mariz à vingança, já que matar Highirte é a única
forma que o resgatará diante da culpa que o faz refém de sua própria
consciência e das próprias consequências que virão. Esse gesto, a essa altura,
terá o papel precípuo de honrar a memória de Manito e sua fé revolucionária,
ainda que não necessariamente reverbere dentro do plano político da luta
propriamente dita.
A
cena final, com Highirte e Mariz colocados um diante do outro, inverte os
papéis que um e outro tinham desempenhado até então: é Highirte, agora, quem
pergunta a Mariz sobre o passado, ou seja, sobre os erros políticos cometidos
em seu governo ditatorial, e é o rapaz que, no jogo lacônico de respostas, vai
pouco a pouco sendo induzido a empreender um retrospecto que será instrumental
no sentido de levá-lo à postura de julgamento e de condenação do ex-ditador.
Se “Moço em Estado de sítio”,
escrita três anos antes, encerrava-se com a evasão autodefensiva do protagonista,
com sua consciência sitiada diante de suas próprias opções políticas e dos
fatos, “Papa Highirte” encerra-se no ato de autoenfrentamento político de Mariz
diante do passado que o aprisionava em suas próprias rememorações. Sob o ponto
de vista de sua escritura, essa opção formal não deixa de representar também um
ato de enfrentamento compositivo do próprio Vianna, já que as questões
figuradas no texto estavam (e em alguma medida estão ainda, de várias formas) historicamente
e politicamente em aberto e em processo.
Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha.
Referências bibliográficas
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Papa
Highirte. In O melhor teatro. Org.
Yan Michalski. São Paulo: Global Editora, 1984.
_______. Papa Highirte. Organização, apresentação e posfácio: Maria Sílvia
Betti. São Paulo: Editora Temporal, 2019.
[1] Trabalho apresentado no
Simpósio América Latina. Entre os anos 60 e 70. Novos olhares (2018), referente
à mesa Artes em transformação, sob a coordenação de Viviana Bosi e organizado pelo
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC-FFLCH/USP).
[2] Maria Sílvia Betti é Professora
Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação
em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de
Artes Cênicas da ECA-USP.
Livros:
Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos
(Cia.Fagulha, 2017), e Oduvaldo Vianna
Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).
Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado
em edição revista com o título Brecht e a
questão do método (Cosac & Naifiy), 2013.
Organizadora, prefaciadora e autora
dos textos de apresentação de Rasga
Coração (Temporal, 2018) e Papa
Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho.
Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas
de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de
Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004).
Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato
(É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams.
Artigos
recentes:
Ingrid, Brueghel e o Teatro de
figuras alegóricas (in Ingrid Koudela: o
Teatro como alegoria. Org. Igor Almeida, SESC, 2018).
Papa
Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica
(em fase de publicação).
*****
SERVIÇO:
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Papa Highirte
Autor: Oduvaldo Vianna Filho - Vianinha
Editora: Temporal
ISBN 13: 978-85-53092-02-4
Páginas: 120
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp.: (011) 95119-8357
Papa Highirte – Oduvaldo Vianna Filho - Vianinha
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp.: (011) 95119-8357
Conheça
também:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de RasgaCoração)
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil:
Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
DramaturgiaComparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp.: (011) 95119-8357
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