Quem tem medo de Virginia Woolf? De Edward Albee. Breves observações de análise. Por Maria Sílvia Betti

 

Quem tem medo de Virginia Woolf? De Edward Albee.

Breves observações de análise. Por Maria Sílvia Betti


Quem tem medo de Virginia Woolf?

Walmor Chagas, Fúlvio Stefanini, Cacilda Becker e Lilian Lemmertz.

Brasil. jun. 1965. Fotógrafo: Maureen Bisilliat

 

Ao escrever Quem tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) em 1962, Edward Albee não deixou pedra sobre pedra no que diz respeito à estrutura dramatúrgica de composição de suas personagens e à abordagem da universidade como campo representativo da ideologia dominante. O título originou-se em um grafitto que Albee teria visto num café do Greenwich Village, em Nova Iorque, na ocasião em que escreveu a peça, à qual havia inicialmente pensado dar o título, igualmente significativo, de O exorcismo (The exorcism).

Desde A história do jardim zoológico (The zoo story), seu primeiro texto teatral, de 1959, Albee vinha representando de forma crítica os fundamentos do assim chamado “sonho americano”, versão idealizada da vida na sociedade estadunidense e ao mesmo tempo epicentro da ideologia do Estado, representado como igualitário e democrático.

Em 1960 essa representação crítica havia sido explicitada por ele numa peça em um ato intitulada, justamente, O sonho americano (The American dream), cujo foco são as distorções assimiladas e reproduzidas dentro da instituição família e da classe média estadunidense.

Em Quem tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) o autor situa seus leitores e espectadores no campus de uma universidade localizada na cidade fictícia de Nova Cartago, na Nova Inglaterra, região nordeste dos Estados Unidos. A localização não poderia ser mais significativa para o papel crítico da peça, pois permite que as associações latentes no texto remetam simbolicamente às raízes da formação histórica e ideológica estadunidense desde a chegada dos colonizadores puritanos (1620), passando pela Guerra de Independência (1776) e consolidando-se por meio de remissões de ironia latente à Antiguidade clássica e ao mundo greco-romano. A Nova Inglaterra é, em larga medida, o nascedouro da cultura capitalista estadunidense, e esta é apresentada na peça em inequívoco processo de desintegração.

Alguns elementos dignos de nota, no que diz respeito à escritura, são a linguagem, com o uso de expressões de relevo crítico algumas vezes intraduzíveis, o uso mordaz e distanciado de remissões a cantigas infantis (nursery rhymes), o uso simbólico e igualmente distanciador e crítico da ideia de jogos (games) e das personagens como jogadores (players), as falas narrativas das personagens George e Nick remetendo a passagens reveladoras de seus respectivos passados, e os títulos dados aos três atos da peça que, numa gradação crescente iniciada em Divertimento e jogos, Ato I (Fun and games), passa pela Noite das bruxarias, Ato II (Walpurgisnacht) e conduz ao desfecho em O exorcismo, Ato III (The exorcism).

Com relação às cantigas infantis (nursery rhymes), é importante observar o uso paródico e distanciado que Albee faz delas na peça, explicitando seu uso pelas personagens com associações implícitas a aspectos sádicos já historicamente presentes em suas origens e exacerbados na forma como se repetem em diversas cenas. Pode-se dizer que o que Albee faz a esse respeito tem analogia com o recurso utilizado pelo poeta T.S.Eliot no poema Os homens ocos (The hollow men).

As quatro personagens da peça são diretamente representativas de pontos nevrálgicos da figuração crítica desse cerne ideológico abordado por Albee: Martha e George, casal de meia idade, respectivamente a filha do presidente da universidade (na nomenclatura estadunidense) e um professor do Departamento de História, residem no campus da universidade, e ao chegarem de uma festa acadêmica do corpo docente (faculty party), aguardam um casal de jovens convidados, Honey e Nick, para um último drinque mais íntimo. Nick é um recém-admitido professor do Departamento de Biologia, que com sua jovem esposa, Honey, provém do Meio Oeste do país, região amplamente associada à representação da mediania e da tipicidade do estilo de vida e pensamento do país no que estes têm de mais centralmente reprodutores do sistema dominante de ideias.

O pai de Martha é indiscutivelmente o personagem onipresente na peça, mesmo que não apareça em cena em nenhum momento. Tudo o que rege a vida do casal Martha e George é determinado pelas expectativas institucionais ligadas a ele.

A tensão é o elemento fundamental para a configuração de George como personagem e para sua função de condutor, a partir de certo ponto da peça, dos jogos que culminarão no exorcismo final. Pressionado pelo papel que dele esperava a instituição (o de professor gestor, atuante no sentido de fazer contatos capazes de atrair patrocínios e doações para a universidade) George é alvo de palavras depreciativas de Martha, que o vê como um fracassado. As palavras cáusticas dela, que George revida tanto quanto consegue, vão, pouco a pouco nos levando a inferir, ao longo da peça, que ele havia sempre priorizado o papel de professor pesquisador, preferindo a biblioteca ao gerenciamento de contatos lucrativos para a esfera administrativa da instituição, e vendo-se frustrado inclusive como autor de um romance cuja publicação foi vetada porque seu conteúdo havia sido considerado excessivamente chocante para os valores da universidade tal como entendida e gerida por seu sogro.

Sintomaticamente, o cerne compositivo de Quem tem medo de Virgínia Woolf? converge centralmente para outra figura não materializada em cena: a de um filho único imaginário, produto do pacto afetivo estabelecido entre Martha e George, filho este cuja existência simbólica dependeria do acordo mútuo em não fazer menção dela a quem quer que fosse. É da quebra deste pacto por Martha, e do exorcismo desta figura idealizada do filho, que Albee extrai elementos para levar seus leitores e espectadores ao ritual doloroso realizado por George, levando, ao final, às palavras de Martha em resposta à pergunta do estribilho da canção infantil parodiada.

Honey e Nick, o casal de jovens recém-entronizados nesse mundo acadêmico em clara deterioração intelectual, espelham Martha e George em versão rebaixada: Nick, como personagem, evidencia uma total aceitação de todas as premissas pessoais e institucionais, explícitas ou latentes, necessárias à carreira acadêmica que acaba de iniciar. Ao mesmo tempo, a gravidez histérica de Honey, que no passado recente o havia levado a casar-se com ela, espelha em versão degradada o filho imaginário de Martha e George.

Como se pode constatar por este breve apanhado, a pauta histórica e simbólica figurada na peça de Albee tem grande envergadura, passando por aspectos históricos, políticos, culturais, comportamentais e afetivos que, em seu conjunto, empreendem um painel contundente e denso de representação crítica de aspectos centrais da ideologia dominante estadunidense.

No Brasil a encenação de estreia de Quem tem medo de Virginia Woolf? se deu em 1965, tendo Cacilda Becker, Walmor Chagas, Fulvio Stefanini e Lilian Lemertz nos papéis das quatro personagens sob a direção de Maurice Vaneau. Sobre a encenação e particularmente sobre a interpretação de Cacilda e Walmor, Maria Thereza Vargas afirma: “Quem tem medo de Virgínia Woolf?, a última direção de Maurice Vaneau, com Cacilda no elenco, foi sem dúvida o ponto mais alto a que atingiram Walmor e Cacilda em suas carreiras, ricas na decantada interação interpretativa.”

 

 

Referências bibliográficas

 

 

ALBEE, Edward. Who’s afraid of Virginia Woolf? New York: Atheneum, 1970.

 

_______. Quem tem medo de Virginia Woolf? Tradução de Nice Rossoni. São Paulo: Editora Abril, 1977.

 

ELIOT, T.S. The hollow men. Disponível em: <https://www.lcsnc.org/site/handlers/filedownload.ashx?moduleinstanceid=19495&dataid=32553&FileName=The%20Hollow%20Men%20by%20T.%20S.%20Eliot.pdf>. Acesso em: 03 out. 2020.

 

_______. Os homens ocos. Tradução de Ivan Junqueira. Disponível em: <https://singularidadepoetica.art/2017/04/04/t-s-eliot-os-homens-ocos/>. Acesso em: 03 out. 2020.

 

VARGAS, Maria Thereza. Cacilda Becker. Uma mulher de muita importância. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2013, p. 123-124.

 



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