The very heart of my life: algumas considerações de análise sobre The two-character play, de Tennessee Williams. Por Maria Sílvia Betti

 

The very heart of my life: algumas considerações de análise sobre

The two-character play, de Tennessee Williams. Por Maria Sílvia Betti (1)

 

The very heart of my life: some analytic considerations about

The two-character play, by Tennessee Williams, By Maria Sílvia Betti

 

 

Resumo:

Depois de empreender uma breve visão do conjunto do percurso de criação de Tennessee Williams como dramaturgo, este artigo faz uma breve análise de The two-character play como trabalho em que Tennessee propositalmente expressa a exaustão dos padrões que o haviam notabilizado.

Palavras-chave: Dramaturgia; Periodização; Crítica; Metateatro.

 

 

Abstract:

After undertaking an overview of Tennessee Williams’ career as a playwright, this article briefly analyzes The two-character play as a work in which Williams purposely expresses the exhaustion of the standards that had made him famous.

Keywords: Dramaturgy; Periodization; Criticism; Metatheater.

 

 

The two–character play, de Tennessee Williams

 

I

            Pesquisar é investigar e inventariar, de forma ordenada e sistemática, todos os elementos da configuração concreta de um objeto em suas manifestações, relações e projeções objetivas e subjetivas. Analisar é examinar com questões, e sob a luz de critérios teóricos, metodológicos e interpretativos, tudo o que emergiu com o material pesquisado.

A pesquisa e a análise, nesta era de conteúdos midiáticos em que estamos, dependem, cada vez mais, de buscas exaustivas de referências intertextuais. Dentro desse contexto, a vasta produção dramatúrgica de Tennessee Williams é desafiadora ao extremo para os que tentam apreendê-la em sua totalidade e com a expectativa de aprofundamento. O trabalho do dramaturgo estende-se por quase cinco décadas e abrange um repertório extenso de temas, técnicas e estilos. Suas peças ganharam reconhecimento no segundo pós-guerra a partir de montagens na Broadway e de adaptações fílmicas em Hollywood. A crítica entusiasmou-se com o uso que ele fazia do lirismo, da projeção simbólica da memória, e de elementos de inspiração autobiográfica. Aspectos centralmente presentes de figuração de personagens à margem das relações de produção na sociedade capitalista estadunidense receberam sempre menor atenção. Tennessee tornou-se um nome de referência dentro da modernização do teatro e da dramaturgia nos Estados Unidos e no contexto internacional.

Quando, do início dos anos 1960 em diante, os pequenos teatros e cafés alternativos de Nova Iorque expandiram-se para além das áreas adjacentes à Broadway, estéticas dramatúrgicas e cênicas enraizadas nos movimentos contraculturais passaram a atrair outras faixas de público, e isso trouxe alterações consideráveis para o padrão antes existente de recepção dos trabalhos do autor. Diante do vigor experimental da chamada off-off-Broadway, o teatro de Tennessee passou cada vez mais a ser visto como um clássico moderno já consolidado e reverenciado dentro do establishment. Pouco mais de uma década e meia havia decorrido de sua ascensão à fama, e ele já havia passado a ser associado ao mainstream cultural e artístico do teatro e da indústria cultural de massas.

Inúmeras foram as tentativas do autor de se renovar como dramaturgo e de incorporar outros processos compositivos às suas peças. Pressionado por compromissos contratuais com editoras e estúdios e abalado pela desolação existencial e afetiva em que, por inúmeros motivos pessoais passou a se ver, Tennessee buscou ousadias dramatúrgicas e cênicas, mas estas desagradaram a crítica sem terem conseguido cativar plenamente os públicos dos novos circuitos.

Outros modernizadores estadunidenses da dramaturgia como Arthur Miller e Edward Albee também foram alvos de críticas negativas quando procuraram utilizar padrões diferentes dos empregados nas peças que os haviam celebrizado. No caso de Tennessee, porém, as manifestações de desaprovação passaram a incidir recorrentemente sobre a maioria das peças que ele escreveu a partir da segunda metade dos anos 1960 e boa parte dos anos 1970, o período de sua vida que ele próprio apelidaria de stoned age, um amargo e intraduzível trocadilho alusivo à dependência química que desenvolveu na tentativa de combater depressão, alcoolismo e ansiedade.

O prestígio internacional sem precedentes, assim como o volume crescente de traduções e adaptações em todo o mundo, passara a coexistir com os diagnósticos críticos de declínio da qualidade dos trabalhos mais recentes e com o sistemático repúdio dos expedientes dramatúrgicos e cênicos utilizados neles.

Em 1983, oito anos após o lançamento de seu livro de memórias, a morte repentina de Tennessee abriu um período de revivals de peças de vários tipos e fases de sua produção. Nos anos que se seguiram, a crítica (principalmente a acadêmica) passou a adotar uma nomenclatura de análise que dividiu a produção do autor em duas fases e estilos de peças: a inicial, de ascensão à fama, foi caracterizada como a das peças ditas canônicas, encenadas na Broadway e adaptadas para roteiros em Hollywood; a fase seguinte, do início dos anos 1960 em diante, caracterizou-se pelas peças que passaram a ser chamadas de pós-canônicas (2), associadas a diversos tipos de experimentalismo. Por terem sido escritas pouco tempo antes do falecimento do autor, essas peças passaram a ser chamadas de “tardias” (late plays). Grande parte delas era de paródias e farsas com farta utilização de recursos do teatro do absurdo, do camp, do humor sombrio (dark humor), do vigoroso e emergente teatro gay, do Nô e do grotesco, e devido à reação de choque e escândalo que causavam por parte do público e dos críticos, várias foram chamadas de “ultrajantes” (outrageous plays).

Nos anos 1980 e 1990, o imenso crescimento dos estudos acadêmicos de cultura voltados às questões de identidade e gênero (queer studies) fez com que as peças pós-canônicas de Tennessee passassem a atrair crescente interesse de pesquisadores e de encenadores. Sua dramaturgia tornou-se objeto de debates no âmbito acadêmico e nos circuitos alternativos de teatro e de performance, com ênfase para o repertório de temas e de técnicas utilizados pelo autor nas peças tardias (late plays). Cada vez mais a atenção de pesquisadores e encenadores voltaram-se às questões homoafetivas e às aproximações temáticas e intertextuais com trabalhos de artistas de destaque no campo da performatividade contracultural e da cultura gay já incorporadas às instituições e códigos socialmente aceitos.

Inevitavelmente, dentro desta linha de abordagem, parte dos pesquisadores e críticos passou a ver nas peças pós-canônicas a materialização mais contundente e plena do teor crítico anti-establishment no trabalho do dramaturgo. Ao mesmo tempo, o sucesso das peças canônicas passou a ser considerado por eles como uma decorrência do fato de serem supostamente palatáveis ao sistema comercial e empresarial da Broadway e ao pensamento dominante, e não do fato de esse sistema e esse pensamento terem conseguido se organizar ideológica e institucionalmente de forma a neutralizá-las, “metabolizá-las” e incorporá-las sem alteração ou exclusão da substância crítica que as compunha.

Um dos elementos que com mais eficiência contribuíram para que isso acontecesse foi, sem dúvida, o uso que Tennessee fez de aspectos autobiográficos dentro das tramas dramatúrgicas e dos mecanismos imagéticos, simbólicos, associativos e psicológicos das personagens. A ampla rede de associações ligadas à memória individual e familiar do autor acabou permitindo que, quer fossem canônicas, quer ultrajantes, as peças desse período final, fossem abordadas predominantemente a partir de perspectivas focadas no âmbito das particularidades identitárias, deixando, assim, de expor na análise os aspectos potencialmente críticos ao pensamento dominante nos Estados Unidos.

Elevado a uma figura pública de grande reconhecimento, Tennessee tornou-se, dessa forma, uma “persona” cuja história pessoal e familiar passou a ser tratada como chave central de compreensão de seu próprio trabalho. Com essa perspectiva devidamente legitimada, a discussão passou a convergir para o indivíduo-autor e seu contexto privado de vida e convívio, evitando que fossem abordadas outras questões presentes em seu trabalho e que diziam respeito às contradições de classe e às relações de alienação, exploração e exclusão dentro da sociedade.

Há ainda outro aspecto a ser lembrado: boa parte das peças ditas pós-canônicas de Tennessee Williams caracterizam-se pelo grande número de remissões a elementos temáticos, estilísticos e formais tomados a fontes extremamente variadas, situadas tanto no âmbito da contracultura estadunidense como no da cultura europeia clássica e moderna, da cultura japonesa, e da indústria cultural de massas. Um grande volume de peças tardias (late plays) ainda não foram (até o momento) organizadas sob a forma de uma versão editorial definitiva. Assim, a identificação e o levantamento analítico dessas remissões passaram a ganhar cada vez mais relevância para os estudos acadêmicos da dramaturgia de Tennessee, seja no que diz respeito aos aspectos do texto, seja no que se refere às possibilidades cênicas.

De modo geral, o que se conclui é que as peças dessa fase final, tardias e/ou ultrajantes, escritas por um Tennessee empenhado em desenvolver seu trabalho fora dos parâmetros do mainstream (Broadway e Hollywood), passaram a ser recorrentemente analisadas e discutidas no campo de estudos identitários e das abordagens queer, linhas hegemônicas, atualmente, dentro do mundo contemporâneo da pesquisa em artes cênicas.

Cabem a esta altura algumas perguntas incontornáveis de pesquisa: do ponto de vista de quem estuda o papel histórico da dramaturgia de Tennessee diante de seu tempo, como se colocam as peças da fase pós-canônica em relação às peças da fase de ascensão à fama e vice-versa? O trabalho de Tennessee foi inexoravelmente “partido ao meio” e dividido para sempre em duas etapas que se repudiam entre si? Se a ascensão à celebridade na primeira fase representou um processo de atrelamento de seu trabalho à máquina do establishment, até que ponto as análises identitárias e de gênero, dominantes no mundo acadêmico contemporâneo, o liberaram para uma condição diferente no que diz respeito às peças da fase final?

São perguntas que ainda não chegaram a ser colocadas, e que, portanto, não serão objeto de debate tão cedo. Por isso, repetindo o que foi dito no início, a vasta produção dramatúrgica de Tennessee Williams é desafiadora ao extremo para os que tentam apreendê-la em sua totalidade e com a expectativa de aprofundamento.

 

II

 

Uma peça escrita por Tennessee já na segunda fase de sua produção é digna de nota por se distinguir de todas as que a precederam e de todas as que se seguiram a ela. Não é uma peça ultrajante e caracteriza-se por se distinguir bastante de sua produção dita tardia: trata-se de The two-character play, escrita inicialmente em 1966 e reescrita em 1969 com o título de Out cry. Essa nova versão foi publicada em 1973, mas em 1975 Tennessee revisou o texto e retomou o título anterior, publicando o que veio a ser considerada a sua versão definitiva.

Era um hábito seu fazer alterações e revisões constantes em suas peças, mesmo que já tivessem sido publicadas, mas The two-character play parece ter sido uma das mais obsessivamente revistas e reelaboradas por ele, como se algo na escritura lhe tivesse escapado ou tivesse deixado a desejar. Foram necessários quase dez anos para que a peça chegasse a essa última versão, um tempo mais longo do que o demandado por qualquer outro de seus trabalhos. Suas próprias palavras sobre a peça mostram seu apreço especial por ela: “my most beautiful play since Streetcar, the very heart of my life” (Williams, 1979; Galton, 2021; Hampstead, 2021).

Outro dado digno de nota relacionado a The two-character play é o fato de sua versão inicial ter sido mais bem recebida pelo público e pela crítica do que a sua reelaboração. Tennessee parecia querer ostentar um afastamento deliberado do naturalismo poético ao qual sua dramaturgia havia sido identificada, e a exacerbação dessa característica pode ser observada na comparação das duas versões.

Apesar desse desejo de diferenciá-la tanto quanto possível de sua produção anterior, a peça foi considerada parcialmente autobiográfica por revisitar dois aspectos marcantes das peças da primeira fase: a figuração de questões intrafamiliares e a presença das fantasmagorias do passado projetadas por meio de fragmentos narrados de lembranças, tal como em The glass menagerie.

A grande marca distintiva de The two-character play é o uso da metateatralidade, assinalada pela própria característica do espaço descrito na rubrica inicial: tudo se passa no palco de um velho teatro localizado em alguma parte não especificada do interior dos Estados Unidos. Vários cenários parcialmente montados recriam o interior de uma velha casa de estilo vitoriano situada no Sul do país. Há pedaços de cenários de outras produções também à vista, e por uma janela pode-se ver um campo de girassóis. O centro do palco é ocupado por uma estátua gigantesca de aparência sinistra fixada sobre um pedestal. As personagens são os irmãos Felice e Clare, os dois artistas principais de uma companhia teatral cujos demais integrantes desertaram em plena noite de estreia da temporada que fariam.

Premidos pela situação angustiante em que se veem, só resta a Felice e Clare ensaiar “uma peça de dois personagens” na esperança de terem algo para apresentar ao público. Configura-se assim uma estrutura de “peça dentro da peça” em que a matéria ficcional do texto sendo ensaiado compõe-se, justamente, de fragmentos da memória do passado familiar dos dois irmãos. A situação vivida é de confinamento, abandono e perplexidade. Não há mais ninguém no teatro além deles próprios, e o texto que ensaiam faz aflorarem lembranças traumáticas do passado relacionadas à morte dos pais envolvendo suicídio e crime dos quais os irmãos foram testemunhas.

A condição psicológica de Felice e de Clare é de fragilidade extrema e o duplo fio ficcional (o da situação presente do ensaio e o do passado rememorado na encenação) vai pouco a pouco se confundindo com as sombrias lembranças familiares narradas.

À medida que decorre o tempo de apresentação da peça dentro da peça sendo ensaiada, trechos de que os dois irmãos não se lembram devidamente vão tendo que ser substituídos por falas improvisadas, e com isso vai se tornando mais e mais difícil, para o leitor e para o espectador, distinguir com clareza os personagens do texto ficcional, dos atores Felice e Clare que o apresentam no palco. A partir de um certo ponto, deixa de ser possível discernir em que medida as próprias cenas improvisadas foram em algum momento reais (ou seja, se de fato aconteceram no passado) e em que medida são projeções de medos e fantasmagorias introjetadas. Clare e Felice já nada têm de si próprios senão aquilo que puderem fazer para ensaiarem / rememorarem / improvisarem / apresentarem de seu próprio passado, agora transformado num tecido esfarrapado de lembranças incongruentes e num ato derradeiro ao qual nenhuma alternativa se apresenta.

Com isso, o confinamento vivido é duplicado: no passado, o lar da família, espaço de suicídio e de crime, é o espaço aprisionante de que os irmãos não conseguem sair; no presente, o confinamento resulta do isolamento em que se veem ensaiando sozinhos no teatro vazio à espera do empresário que não virá e de uma improvável temporada. A situação psicológica de alienação mental dos dois irmãos vai, assim, atingindo seu grau máximo. Enquanto em The glass menagerie a relação entre os irmãos Tom e Laura é evocada com delicado lirismo voltado ao passado, aqui a relação entre Felice e Clare vai ganhando contornos cada vez mais sombrios que evidenciam o estado de perturbação psíquica diante das lembranças aterradoras da vida familiar desintegrada.

The two-character play é repleta de elementos sugestivos de associações simbólicas latentes. Um pesquisador afoito e desejoso de mergulhar nela a partir das primeiras impressões poderia até mesmo correr o risco de ceder à tentação de enxergar Felice e Clare apenas como projeções autobiográficas de Tennessee e Rose Williams, e de ver a peça como uma figuração simbólica da “existência humana” ou do enclausuramento inevitável da consciência diante da impossibilidade de enfrentar ou transcender a loucura e a morte.

Essa perspectiva deixaria de considerar, porém, que em The two-character play a relação entre Felice e Clare não está configurada apenas a partir do vínculo familiar, mas também e principalmente a partir do papel que exercem dentro da companhia teatral em que são respectivamente primeiro ator/dramaturgo (Felice) e primeira atriz (Clare). Ao mesmo tempo, entre os inúmeros elementos simbólicos utilizados na peça, temos inúmeras remissões inegavelmente concretas associadas ao próprio fazer teatral e à própria dramaturgia moderna do século XX.

Felice e Clare estabelecem, desde o início da peça, uma relação repleta de tensões e discordâncias. Os pontos de divergência dizem respeito à situação imediata e concreta do espetáculo que deverão encenar: Clare deseja receber a imprensa antes da apresentação, pois considera-se hábil nessa tarefa. Felice a proíbe por constatar que ela está alcoolizada e porque em entrevistas anteriores desse tipo ela se punha a falar contra o fascismo, assunto que ele considera inconveniente. Clare deseja que Felice se ocupe das questões específicas da encenação, e Felice afirma que, se não se saírem bem nessa noite, a temporada acabará não se realizando.

A discordância degenera em uma troca violenta de insultos. Clare confessa que deseja voltar para casa, mas Felice a lembra de que a casa deles é o teatro, e que não terão outro lugar para onde ir. Em meio à altercação, Felice acaba contando a Clare que os demais membros do elenco haviam enviado um telegrama demitindo-se da companhia, e que, portanto, não seria mais possível realizar a temporada. Clare sente-se cansada e pede para ir para o quarto do hotel, ao que Felice lhe responde que eles não dispõem de nenhum quarto de hotel à disposição, e que por isso o espetáculo precisa ser encenado, já que não resta nenhuma outra perspectiva. Fox, o empresário, teria pagamentos a fazer aos dois irmãos por espetáculos anteriores, mas nada indica que virá ou que fará contato. O mecanismo situacional que engendra esses diálogos configura uma circularidade sem saída e sem solução possível, em que tudo gira em falso e parece ter raízes nos embates entre Vladimir e Estragon no Waiting for Godot (Esperando Godot) de Beckett.

No segundo ato, com a sucessão de improvisos inseridos, cresce a indistinção entre o passado ficcional na peça que ensaiam e a situação concreta do presente que vivem. Todas as materialidades desejadas se inviabilizaram: Fox (o empresário) não virá, a temporada não acontecerá, nenhum quarto de hotel os acolherá depois do espetáculo. O espaço ficcional do lar rememorado é o espaço das mortes testemunhadas e da desintegração familiar e existencial, e a peça que agora ensaiam/interpretam/improvisam atualiza o trauma no teatro, também tornado, ele próprio, espaço de confinamento. Leitor, espectador e intérpretes são tirados de qualquer possível zona de conforto. As falas de Clare e Felice basculam entre o tempo encenado e o tempo da encenação sem diferenciações de luz ou de demarcação espacial. O palco está atulhado de objetos cenográficos não relacionados à peça que os dois ensaiam. O centro da área da encenação é ocupado pela enorme estátua de semblante sombrio, um ícone cênico não referenciado por nenhuma das falas ou gestos. Não há certezas, não há percepções claras e não há encadeamento causal possível para as ações desejadas ou tentadas. The two-character play parece, nesse segundo ato, exacerbar a opacidade dos sentidos, das falas e das lembranças dos próprios personagens, que no início haviam oferecido aos leitores e espectadores o conforto efêmero do paralelo com Laura/Rose e com Tom/ Tennessee.

 

III

Diante dessas constatações perturbadoras, algumas hipóteses ocorrem: constata-se que Tennessee efetivamente desconstruiu, em The two-character play, aquilo que público e crítica haviam antes aclamado efusivamente no início de seu trabalho. Agora, porém, nada resta e não há catarse possível para a angústia figurada por Felice e Clare. Há apenas perplexidade, abandono e a dor do enclausuramento final figurado na peça.

Seria lícito, diante desse impressionante apanhado de imagens e sentidos, afirmarmos que The two-character play, escrita e reescrita obsessivamente durante quase dez anos, acabou sintetizando a visão agônica a que Tennessee teria chegado com relação a sua própria obra e ao seu próprio fazer teatral? Se lembrarmos que Clare e Felice, além de irmã e irmão são também atriz e ator/dramaturgo dentro de uma companhia de teatro, seria possível vermos a peça como trabalho que propositalmente ostenta sua própria exaustão diante dos padrões que haviam notabilizado Tennessee? Seria possível, nos fragmentos esparsos de cenários entre os quais ensaiam Felice e Clare, vermos os pedaços fraturados de uma integridade irresgatável para o próprio teatro, tornado aprisionante e aprisionado em sua própria opacidade de sentidos? Seria The two-character play uma espécie de huit clos metateatral?

Que as perguntas sejam deixadas em aberto com a expectativa de que os futuros olhares lançados à peça não esqueçam da definição que lhe foi dada pelo próprio Tennessee ao referir-se a ela como “the very heart of my life”.

 

Referências

 

 

GALTON, Bridget. Tennessee Williams’ experimental late play was 'the heart of my life'. Ham & High,14 jul. 2021. Disponível em: https://www.hamhigh.co.uk/things-to-do/21331679.tennessee-williams-experimentallate-play-the-heart-life/. Acesso em: 19 dez. 2023.

 

HAMPSTEAD THEATRE. The two-character play cast announced. 10 jun. 2021. Disponível em: https://www.hampsteadtheatre.com/news/2021/june/the-twocharacter-play-cast-announced. Acesso em: 19 dez. 2023.

 

TOLEDO, Luis Marcio Arnaut de. Nem loucas, nem reprimidas: o confronto contracultural da mulher com o mainstream nas late plays de Tennessee Williams. São Paulo: Alameda, 2022.

 

WILLIAMS, Tennessee. Tennessee Williams The two-character play (Published in an earlier version as Out Cry). New York: New Directions, 1979. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=fU4mr4_tYYoC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q=most%20beautiful&f=false.  Acesso em: 14 out. 2023.

 

 

 

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(1) Maria Sílvia Betti é pesquisadora e docente Sênior no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCHUSP. Autora de Dramaturgia comparada Estados Unidos-Brasil. Três estudos. São Bernardo do Campo-SP: Cia. Fagulha, 2017. Organizadora da Coleção Oduvaldo Vianna Filho de dramaturgia (Editora Temporal). Colunista do site Infoteatro.

 

(2) A respeito das peças pós-canônicas, consultar Toledo (2022).


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NOTA: Texto originalmente publicado em: Dramaturgia em foco, Petrolina-PE, v. 7, n. 2, p. 416-425, 2023. 


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