Ingrid, Brueghel e o teatro de figuras alegóricas. Por Maria Sílvia Betti


Ingrid, Brueghel e o teatro de figuras alegóricas [1]. Por Maria Sílvia Betti [2]


Landscape with the fall of Icarus.

Paisagem com a queda de Ícaro.



De acordo com Brueghel
quando Ícaro caiu
era primavera

um fazendeiro arava
seu campo
o esplendor inteiro

do ano
acordara formigando
perto

da beira do mar
concentrado
em si mesmo

suando ao sol
que derreteu
a cera das asas

desapercebido
perto da orla
deu-se

um inaudível mergulho
era Ícaro
se afogando 

(Paisagem com a queda de Ícaro, tradução da autora) [3]




Em 1962 o poeta estadunidense William Carlos Williams [1883-1963] publicou o poema acima, Landscape with the fall of Icarus, que originalmente integrava uma série intitulada Pictures from Brueghel and Other Poems [4]. No texto Williams evocava o quadro de Brueghel [5] de título homônimo, assinalando a continuidade imperturbável e ininterrupta da vida, que não se crispava e nem se suspendia diante da queda de Ícaro [6]. Dele, na tela, apenas as pernas podiam ser vislumbradas num pequeno e quase imperceptível mergulho no canto direito inferior.

Ao contrário da composição pictórica de outros pintores, que antes e depois de Brueghel também trataram do tema, o mestre flamengo configurou seu quadro como um desafio ao olhar de quem o observa: a menção ao personagem mítico e sua queda condiciona o olhar a percorrer a tela ponto a ponto à procura da imagem. Esta é laboriosamente localizada, por fim, em posição secundária e sem destaque. Não há nela qualquer grandiosidade ou centralidade: a queda, na verdade, já ocorreu, e apenas o perscrutador atento conseguirá se dar conta de que, em meio ao esplendor da natureza e à continuidade da labuta do lavrador, o personagem lendário caiu sem impacto heroico e já foi parcialmente engolido pelo mar. A materialidade da subsistência prevalece e a pujança cromática da cena, num grande plano aberto, permite que se veja não só o camponês com seu arado, mas também o mar, barcos navegando e o horizonte em que o céu e as águas se encontram. Ícaro está sendo tragado pelas ondas, mas esse é apenas um flash momentâneo, pois tudo o mais, na sequência, seguirá seu rumo, numa celebração implícita e processual de tudo o que, ao contrário de Ícaro, permanece e vive.

A pintura de Brueghel é referência conceitual importante dentro do trabalho artístico e pedagógico de Ingrid Dormien Koudela. Poucos outros pesquisadores e formadores na área de estudos de teatro terão conseguido fazer uso tão consistente e tão funcional de uma referência como ela nas sucessivas abordagens que faz, em seus escritos teóricos e suas práticas pedagógicas, do repertório de procedimentos compositivos e de imagens do pintor.

Ingrid interessa-se por Brueghel por encontrar em seus quadros e gravuras elementos condizentes com o uso teatral de figuras alegóricas, não psicologizadas e não inseridas em narrativas apoiadas em relações de causa e efeito. Interessam-lhe os processos associativos sugeridos a partir de imagens, e interessa-lhe criar uma motivação lúdica que articule as camadas de imagens represadas no consciente e no subconsciente de quem as contempla. Brueghel proporciona a Ingrid estímulos significativos para ativar todos estes elementos de percepção, e estes são o fundamento do teatro de figuras alegóricas que tanto a apaixona. Tal como na pintura do artista, os elementos figurados devem, para ela, ser desierarquizados entre si: o procedimento narrativo é inerente ao próprio ato da perscrutação e inseparável dele. Como no quadro ao qual alude o poeta Williams, é a percepção que irá atuar como desencadeadora potencial dos mecanismos associativos.

O papel das imagens dentro da concepção bruegheliana de Ingrid é central, e a decifração delas pode trazer potencialmente consigo a possibilidade brechtiana do estranhamento. Estranhar liga-se estreitamente a historicizar, e é do estudo brechtiano intitulado O efeito de estranhamento nas pinturas narrativas de Peter Brüghel [7], o Velho, que Ingrid extrai a ideia da transitoriedade das pessoas e dos processos como elementos capazes de induzir percepções historicizadoras dentro desse teatro de figuras alegóricas que preconiza. Esse mesmo estudo de Brecht fornece-lhe, como ela própria ressalta, elementos capazes de alimentar a invenção pantomímica, inspiradora em potencial do gestus e elemento imprescindível da poética cênica brechtiana.

O material pictórico de Brueghel ilumina, paralelamente, uma outra faceta conceitual central do teatro de que trata Ingrid: a do chamado pós-dramático tal como entendido pelo teórico Hans Thies Lehmann [8] e praticado pelo dramaturgo Heiner Müller [9]. Contemplados a partir da perspectiva deles, os quadros e gravuras de Brueghel são compatíveis com a figuração cênica de uma realidade vista como fragmentária, inconclusiva e povoada de impossibilidades.

As cenas pictoricamente retratadas nas telas e gravuras brueghelianas desencadeiam estímulos para a imaginação alegorizante, para mecanismos associativos, para a expressão e a percepção de realidades autônomas dotadas de regularidades espaciais e temporais próprias, e que com isso criam um trânsito lúdico entre as camadas do consciente e do subconsciente. Fragmentos extraídos da cultura popular e do imaginário medievais povoam o espaço cênico com ruínas diversas, com figuras despsicologizadas, com estímulos perceptivos de amplo espectro.

Não se caracteriza com isso nenhuma forma de práxis, como observa Ingrid, e nem se articula uma linha de trabalho disposta a agir sobre as consciências ou a politizá-las: cria-se, porém, um campo diversificado e múltiplo de instauração cênica no plano do subconsciente, flagrado em sua relação com o pensar conceitual. No espaço potencial assim constituído, Ingrid vislumbra a latência de processos de criação e percepção em que o político, em alguma medida, está latente e pode potencialmente encontrar força para se manifestar. É do material pictórico de Brueghel que ela extrai o repertório processual e figurativo com que fundamenta, com tanta paixão e consistência, a proposta de um teatro de figuras alegóricas.



BIBLIOGRAFIA

KOUDELA, Ingrid. A cidade como alegoria. Disponível em: <http://seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/526/468>. Acesso em: 20 nov. 2019.

_______. Leitura das pinturas narrativas de Peter Brüghel, o velho. Ingrid Koudela (ECA/USP) IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. GT: Pedagogia do Teatro & Teatro na Educação.

_______. Teatro de figuras Alegóricas. Universidade de São Paulo/UNISO – Universidade de Sorocaba
Palavras-chave: encenação contemporânea; pedagogia do espectador

WILLIAMS, William Carlos. Collected Poems: 1939-1962, Volume II, New Directions Publishing Corp. 1962.








[1] Este artigo é a versão revista do texto Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (originalmente publicado em Ingrid Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).

[2] Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.


Livros:

Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), Oduvaldo Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).


* Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy), 2013. 
* Organizadora, prefaciadora e autora dos textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018) e Papa Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho. 
* Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004). 
* Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams. 


Artigos recentes:

* Teatro e movimentos sociais na cidade de São Paulo: um recorte comentado. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/>.

* O impulso e o salto: Boal em Nova Iorque (1953-1955). (In Blog da Cia. Fagulha).


* Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.


[3] Texto original disponível em: <http://www.english.emory.edu/classes/paintings&poems/williams.html>. Acesso em: 20 nov. 2019. Landscape with the fall of Icarus:

According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring

a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry

of the year was
awake tingling
with itself

sweating in the sun
that melted
the wings' wax

unsignificantly
off the coast
there was

a splash quite unnoticed
this was
Icarus drowning

[4] Pinturas de Brueghel e outros poemas.

[5] Pieter Brueghel, o Velho. Pintor e gravurista flamengo. [Nascimento entre 1525 e 1530 (data incerta), e falecimento em 1569].

[6] Personagem da mitologia grega conhecido por sua tentativa de deixar a ilha de Creta voando com asas de cera, tentativa que culminou com sua queda e morte nas águas do mar Egeu.

[7] Esta foi a grafia utilizada neste texto.

[8] [1944-]. Crítico e estudioso alemão de Teatro e Dramaturgia, autor de Teatro pós-dramático, publicado na Alemanha em 1999 e no Brasil em 2008: Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. Apresentação de Sérgio de Carvalho. São Paulo: Cosac & Naify.

[9] [1929-1995]. Dramaturgo alemão autor de “Hamletmáquina”, “Medeamaterial”, “A missão” e “Quarteto”, entre outros trabalhos.



*****


Conheça também:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360



Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti



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