Teatro
e movimentos sociais na cidade de São Paulo:
um recorte comentado
Maria
Sílvia Betti [1]
Grupo Forja – Teatro operário
*
"Este artigo é a versão revista do texto originalmente publicado em NOSELLA,
B. L. D.; MOREIRA, C. M. G.; BETTI, Maria Sílvia. Teatro e movimentos sociais.
In: Berilo Luigi Deirò Nosella; Carina Maria Guimarães Moreira. (Org.). Cadernos
Monográficos. 1 ed. Vitória: Editora Cousa, 2017, v. 1, p. 14-21.
Resumo - Este artigo comenta e
resssalta a importância de alguns trabalhos que, em diferentes momentos,
trataram da relação entre o teatro operário e seu papel social e político na
cidade de São Paulo.
Palavras-chave: teatro operário;
movimentos sociais.
Abstract - This article comments on and
emphasizes the importance of some researches that, at different moments, dealt
with the relationship between the workers’ theater and its social and political
role in the city of São Paulo.
Keywords: workers’ theater; social movements.
Em 1980 foi publicado o estudo “Teatro Operário
na cidade de São Paulo” [2], apoiado
em pesquisa documental realizada por Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de
Lima dentro do Núcleo de Artes Cênicas do Idart, órgão da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo. O trabalho foi desenvolvido dentro de um projeto mais
amplo e que havia encampado vários outros aspectos e temas. Vasculhando publicações
diversas, jornais e documentos das primeiras décadas do século XX, as
pesquisadoras organizaram o registro de um teatro realizado por trabalhadores e
dirigido a plateias ligadas ao operariado em São Paulo. Embora fosse desconhecido
por boa parte dos especialistas e historiadores até então, esse teatro, realizado
desde a década de 1910 até aproximadamente 1945, havia sido parte integrante do
movimento cultural da classe e da vida política e cultural da cidade:
Em
São Paulo o teatro feito por operários desde o início do século XX mantém um
ciclo evolutivo paralelo aos movimentos de participação da classe na história
política do país. Há uma progressão do movimento teatral até 1930, momento em
que os trabalhadores são obrigados a revisar suas posições diante de uma nova
realidade do país. Até 1937 esse teatro continua existindo com menos
regularidade, minimizado pelas cisões ideológicas no seio da própria classe. De
1937 a 1945 a predominância do sindicato corporativista na regulamentação da
atividade operária e a repressão concreta desencadeada sobre as Organizações
independentes aniquilam, junto com a movimentação política, o movimento
cultural da classe [3].
Em sua expressão dramatúrgica, o teatro desses encenadores
operários era caracteristicamente europeu, pois respondia às necessidades
humanas e sociais de operários recém-imigrados, provindos do imenso fluxo
imigratório observado na cidade de São Paulo entre 1887 e 1902 [4]. Para
Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima o lazer proporcionado ao público
por esse teatro não se separava da expressão das aspirações ligadas ao
proletariado, o que lhe dava um papel nitidamente político [5]. Intérpretes
e plateias tinham em comum não só as vivências anteriores no contexto de
origem, mas a situação de classe compartilhada no cotidiano de trabalho. Em
consequência, o teatro que praticavam distinguia-se do realizado no âmbito
comercial do teatro paulista nesse mesmo período, uma vez que era fruto de um
mundo diametralmente oposto fosse como ideologia, fosse como modo de produção
artística. Encenadores e autores trabalhavam em diferentes ofícios (eram vidreiros,
alfaiates, sapateiros), as plateias eram constituídas majoritariamente por
proletários, e todo o contingente humano mobilizado em torno dos espetáculos
era composto por imigrantes de origem europeia, oriundos principalmente da
Itália.
Em 2009, quase trinta anos após o lançamento
desse estudo, uma compilação organizada por Maria Thereza Vargas trouxe a
público três peças de operários militantes do movimento anarquista da década de
1920 reunidas numa antologia [6].
Além dos textos propriamente ditos (“O semeador”, de Avelino Fóscolo, “A bandeira
proletária”, de Marino Spagnolo, e “Uma mulher diferente”, de Pedro Catallo), o
volume incluía uma Cronologia de 1867 a 1967, e nela situava as práticas
teatrais e dramatúrgicas ligadas ao movimento anarquista, apontava as datas da
fundação de grupos de teatro, Centros de Cultura e apresentações teatrais, e mais
uma vez evidenciava a existência, nas primeiras décadas do século XX, de um
florescente teatro de operários realizado com continuidade e dotado de
especificidade cultural e artística.
As peças reunidas tratavam, à luz do pensamento
anarquista, de questões ligadas à luta e à necessidade de conscientização dos
trabalhadores: a primeira, “O semeador”, empreendia uma crítica contundente à
ideia de propriedade e denunciava a exploração do trabalho e a opressão da
mulher. A segunda, “A bandeira proletária”, apresentava um libelo em defesa do
proletário que, dentro do processo de exploração, cedia à depressão e fragilizava-se
pelos vícios. O sangue derramado era tratado nela como bandeira simbólica e
política de luta. A terceira empreendia a crítica ao casamento como instituição
e fazia a apologia do ideal anarquista das formas de convívio não constituídas
com base na família nuclear burguesa.
Três importantes estudos haviam precedido,
cronologicamente, a publicação da antologia de peças na abordagem da cultura militante
do proletariado anarquista no contexto brasileiro: Nem pátria nem patrão (Vida operária e cultura anarquista no Brasil),
de Francisco Foot Hardman, havia sido lançado em 1983, Contos anarquistas. Antologia da prosa libertária no Brasil (1901-1935),
de Hardman em conjunto com Antonio Arnoni Prado, havia sido publicado em
1985, e Trincheira, palco e letras.
Crítica, literatura e utopia no Brasil, de Antonio Arnoni Prado, em 2004.
Nem pátria
nem patrão empreendia um mapeamento das instituições,
representações culturais e impasses da classe operária anarquista no início do
século XX. Longe de abstrair o fato de ter diante de si, no momento da realização
da pesquisa, o ascenso das lutas sindicais do operariado no ABC paulista, a
escrita ensaística e reflexiva do pesquisador procurava estabelecer e explicitar
um nexo entre essas lutas e a cultura participativa e militante do início do
século:
E
assim, como hoje a palavra “greve operária” soa com um sentido muito mais denso
e vivo do que em 75 [...], espero que também outras palavras e temas possam se
movimentar cada vez mais entre o discurso do escritor e a cultura e cotidiano
destes herdeiros contemporâneos da memória operária, reunidos no ABC ou
espalhados em tantos mais espaços do país, tornando sua própria tradição fonte
inesgotável e elo permanente da política atual [7].
Contos
anarquistas. Antologia da prosa libertária no Brasil (1901-1935), por sua vez, era
um trabalho derivado de “Sinais do vulcão extinto”, um dos ensaios incluídos no
volume Nem pátria nem patrão. Foi desse
ensaio em particular que proveio o inventário inicial de contos e também a constatação
de que era possível detectar-se, no período a que remetiam, uma assimilação das
teses libertárias por parte de um certo inconformismo pré-modernista que então
se expandia na cena literária brasileira.
Em sua Introdução o texto dos organizadores de Contos anarquistas mostrava que era
possível ler-se o material reunido de duas formas: enquanto sistema autônomo de
militância intelectual, responsável pela mobilização da classe operária em
favor dos ideais libertários, e enquanto contraponto da vanguarda política à
vanguarda estética pela qual havia sido superada em meio à efervescência
modernista da Semana de Arte Moderna [8]. Uma
seção de informações biográficas sucintas de cada um dos contistas foi aposta
ao final do volume, juntamente com uma detalhada Cronologia das ocorrências
dignas de nota no contexto cultural e no movimento social e político de 1899 a
1937.
Trincheira,
palco e letras. Crítica, literatura e utopia no Brasil, o volume publicado em 2004, era uma compilação de ensaios de Arnoni Prado, vários dos
quais dedicados ao teatro. Dentre os voltados ao tema do anarquismo e do teatro
libertário, especificamente, há inúmeros destaques que se impõem. “Quando a
Itália era no Braz”, por exemplo, examina com particular interesse analítico a
superação da personagem filodramática pelo tipo ítalo-paulista no contexto da
entrada do imigrante para o teatro anarquista na primeira década do século XX [9], e
paralelamente discute o fato de a figura do italiano pobre, desiludido com as
condições de vida no Brasil e distante do estereótipo do típico e do exótico,
não ter tido lugar nem nos salões filodramáticos e nem no teatro anarquista, mais
voltado para as figurações melodramáticas do bem e do mal e para a valorização
da ação direta contra o Estado e seus representantes [10].
Chama a atenção, neste caso, a forma como
Arnoni Prado discerne valor estético e papel histórico no que diz respeito a
seu objeto: é o que se observa quando ele comenta que o imigrante libertário do
início do século não havia encontrado aqui, até aquele momento, nenhuma forma
de realização literária que o tematizasse à altura do que ele havia
representado para a São Paulo daquele tempo [11]. Uma
das razões apontadas para essa exclusão era a incompatibilidade da figura desse
estrangeiro insubmisso e pobre com a retórica literária parnasiana então
dominante; a outra, na seara política, associava-se à repressão de que poderia
ser alvo um imigrante insubmisso e que de alguma forma resistisse aos códigos
da ordem dominante [12].
Dois outros ensaios do volume de Arnoni Prado,
publicados anteriormente em revistas acadêmicas, tratam do tema da cultura e do
teatro anarquista na São Paulo do início do século de forma digna de nota: “Sobre
as imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani” [13] e
“Elocubrações Dramáticas do professor José Oiticica” [14].
No primeiro, o pesquisador enfoca o pequeno grupo de intelectuais italianos
que, ligados à organização dos primeiros núcleos de ação cultural libertária na
cidade, acabaram retornando à Itália devido ao sofrimento e pessimismo, ou por
terem sido expulsos pelo governo brasileiro. No segundo, o foco recai sobre a
participação de Oiticica no movimento anarquista, apresentando as linhas gerais
de seu pensamento estético e detendo-se com maior vagar sobre o lado teatral de
seu trabalho.
Sem dúvida alguma essa sequência de estudos e
de publicações voltados ao tema do teatro operário, do teatro anarquista e dos
grupos filodramáticos contribuíram decisivamente para que o assunto, pela
primeira vez, viesse a figurar na pauta de conteúdos de uma história do teatro
brasileiro. Isso se deu em 2012 com a publicação da História do Teatro Brasileiro, volume 1: das origens ao
teatro profissional da primeira metade do século XX, organizada por João
Roberto Faria, que incluía, no segmento dedicado ao teatro no pré-modernismo, o
ensaio de Maria Thereza Vargas intitulado “O teatro operário e anarquista,
filodramático e amador” [15]. Longas
décadas de silenciamento haviam precedido essa publicação e as demais
mencionadas, fato que pode ser atribuído a vários fatores de cunho material e
conjuntural: o número insuficiente de acervos documentais de pesquisa, a
precariedade deles, as difíceis condições de trabalho a que pesquisadores
precisam submeter-se para a realização desse tipo de estudo, e por fim a
dificuldade de contar com o devido apoio e interesse no plano editorial.
A pesquisadora Iná Camargo Costa, em livro dedicado
ao teatro estadunidense moderno, abre o volume com um capítulo que trata do pageant encenado em Nova Iorque pelos
trabalhadores da indústria da seda em 1913 sob a organização do jornalista e militante
John Reed: uma monumental apresentação de teatro de agit prop a céu aberto que contou com mais de mil e quinhentos
participantes. O capítulo intitula-se “O enjeitado de 1913” [16], e
seu título alude ao fato de que a historiografia do teatro dos Estados Unidos
nunca havia registrado a realização daquele espetáculo, “enjeitando-o” e evitando,
portanto, que aqueles que se interessavam pelo teatro no país tomassem
conhecimento de sua realização.
Em alguma medida o teatro operário do início do
século, na cidade de São Paulo, também parece ter sido alvo de um certo tipo de
“enjeitamento” dentro da historiografia teatral brasileira, mesmo que este não tenha
sido exatamente análogo ao estadunidense. No próprio contexto contemporâneo,
com o grande número de coletivos de teatro que atuam nas periferias da cidade e
dialogam com pessoas ligadas à pesquisa acadêmica, o que parece predominar é,
ainda, a falta de contato e também de concernimento com o assunto.
As
perspectivas mais amplamente disseminadas de entendimento do teatro no mundo
contemporâneo apontam, antes de mais nada, para o que se entende ser a
superação de todas as poéticas dispostas a estabelecer conexões, a analisar
perspectivas de conjunto ou a historicizar a relação do teatro com a matéria
sócio-política de sua época e das que a precederam.
Grandes
teorias atualmente hegemônicas, como a do teatro pós-dramático, apontam para um
mundo fragmentado e descontínuo em que as narrativas se fragilizam, em que a
materialidade se apresenta preponderantemente por meio de fantasmagorias
estilhaçadas, e em que os processos de criação operam por meio de projeções
alegorizantes. Ao mesmo tempo, também dentro do momento em que estamos, setores
mais próximos a áreas historicamente ligadas à práxis têm incorporado cada vez mais categorias analíticas voltadas
para as micropolíticas identitárias, em que recortes como etnia, gênero e
sexualidade são centrais, e em que a perspectiva historicizante e ligada às
classes é ignorada.
Diante
de tudo isso, o eixo da historicização e a perspectiva de estudo apoiada na
luta de classes foram sendo secundarizados cada vez mais no mundo da pesquisa
ao longo do tempo. Não é de espantar, portanto, que aqueles que começam a
iniciar-se em projetos de estudo sejam condicionados a não encontrar grande
proveito em ler ou em tomar conhecimento de trabalhos apoiados em perspectivas
historicizantes. É o caso, por exemplo, de peças como as compiladas na
antologia anarquista de Maria Thereza Vargas, ou de textos e documentos como os
abordados por Hardman e por Arnoni Prado. O produtivismo imposto aos que
trabalham na universidade e a corrida contra o tempo para atender às demandas
de execução dos cronogramas de projetos encarregam-se de completar o quadro, e
este irá resultar, ao final, naquilo que Iná Camargo Costa designou como
“enjeitamento” referindo-se ao contexto estadunidense.
No
âmbito dos estudos acadêmicos, as pesquisas relacionadas ao teatro operário concentram-se
em áreas como as de história e geografia humana, nas quais a perspectiva de uma
cultura teatral operária é objeto de interesse e de levantamento documental.
Sintomaticamente elas se mostram praticamente ausentes como objeto de reflexão
e pesquisa no campo do teatro propriamente dito. Algo semelhante pode ser
observado no que se refere a trabalhos teatrais operários posteriores, como os
resultantes da intensa mobilização registrada no ABC paulista no final da década
de 1980, principalmente por meio do grupo teatral Forja.
O
Forja, fundado em 1979, resultou de iniciativa dos próprios trabalhadores, que
constituíram um grupo de artistas-operários integrantes do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e de Diadema.
Em
1986, após a demissão do diretor-fundador Tin Urbinatti, o grupo desliga-se do
Sindicato, continuando em atividade até 1994. Tratava-se, inequivocamente, de
um coletivo que trabalhava o teatro no interior da luta operária, que se
voltava para a abordagem de questões pouco frequentes na campo da dramaturgia e
do teatro convencionais, e que estava disposto a escrever peças como “Pesadelo”
e “Pensão Liberdade”, criações coletivas que registravam as questões cruciais
do mundo do trabalhador.
Em
2011 Tin Urbinatti reuniu, em um volume crítico e antológico, as peças e documentos
relativos ao trabalho do Forja [17], e em entrevista
concedida por ocasião do lançamento, relatou os passos decisivos para o
surgimento do grupo:
Em 1977, quando terminei a
Universidade de São Paulo (USP), eu era articulista do jornal Movimento, que
apoiou as candidaturas populares de Aurélio Peres e de Irma Passoni, candidatos
à época pelo MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Eu fui chamado para ajudar
no comitê, para auxiliar o encaminhamento da campanha. Conheci um grupo de teatro
que ia fazer a campanha de Santo Dias da Silva [o grupo de Santo, a Chapa 3, de
oposição sindical, procurava eleger-se como nova diretoria do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo]. [Como parte da campanha sindical] escrevi um texto,
chamado O Engana Trouxa Tá Caindo, que foi
encenado e apresentado na Vila das Mercês.
[...] A classe operária de
São Bernardo do Campo estava prenhe de gás, de acúmulo de experiência de lutas
no interior das fábricas. Nesse bojo, surge um grupo de metalúrgicos, ligados à
Comissão de Salário, que já tinham brincado com teatro e viram a encenação de O Engana Trouxa Tá Caindo [18].
E este grupo entrou em contato comigo, solicitando que eu escrevesse um texto
para que eles montassem, por conta da campanha salarial deles; o eixo seria o
contrato coletivo de trabalho. Fui ao sindicato dos metalúrgicos, pedi que convocassem
pessoas que consideravam importantes e fiz uma entrevista com eles sobre o que
significava o contrato coletivo de trabalho. Então escrevi o texto. Chamava-se Contrato Coletivo. Eles encenaram e
me convidaram para a estreia. Fiquei encantado com o trabalho. [...] Em 1979
constitui-se o Forja e a primeira peça que o grupo escreveu coletivamente foi Pensão Liberdade, cujo texto foi encenado no Brasil inteiro [19].
É
singular a trajetória de trabalho teatral e política relatada por Tin Urbinatti:
se o Arena e o CPC na década de 1960 tinham procurado construir relações com o
operariado a partir de processos nascidos respectivamente no teatro e no movimento
estudantil, bem diferente era a experiência estética do Forja:
Em
primeiro lugar estava a necessidade. Cada conjuntura exigiu uma resposta
artística. O primeiro momento foi de conhecimento, reconhecimento e consolidação
do grupo, em 1979. Fizemos a peça Pensão
Liberdade e todos nós conhecemos, discutimos, estudamos política,
economia, antropologia, tudo com textos muito ligados aos estudos da classe
operária, de autores como Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Luís Flávio
Rainho, além de textos de teatro, de autores como Plinio Marcos e Dias Gomes.
Quando ocorreu a prisão da diretoria do sindicato, em 1980, a Lei de Segurança
Nacional virou o grande problema para todo mundo - porque a ditadura se baseava
na Lei de Segurança Nacional para fazer o que fez, como intervir no sindicato e
prender dirigentes. Então nós inventamos de fazer um teatro que colocasse em
xeque essa lei. Criamos um teatro de rua, porque o sindicato estava sob
intervenção; fizemos A Greve de 80 e
o Julgamento Popular da Lei de Segurança Nacional.
Enfrentamos várias dificuldades, porque era teatro de rua e a gente usava
texto; percebemos que texto para 30 mil, 40 mil pessoas, no estádio da Vila
Euclides, não era viável. Então abolimos a palavra e usamos apenas o corpo,
gestos, mímica, cenário e figurino grandiosos para comunicar a ideia à
distância. Foi assim que fizemos O
Robô que Virou Peão, Brasil
S.A., Diretas, volver! e
Boi Constituinte – cada uma
dessas peças de acordo com a
conjuntura econômica e política
que o Brasil atravessava [20].
Parodiando as palavras de Iná
Camargo Costa, que aponta como “enjeitado” o experimento teatral realizado pelos
trabalhadores estadunidenses da indústria da seda em 1913, os pesquisadores de
teatro no Brasil têm encontrado, como se pode constatar, um número nada
desprezível de “enjeitados” das páginas da historiografia teatral do país. Segundo
Tin Urbinatti, a memória do Forja era já tênue na ocasião do lançamento do
livro, tendo sido esta a constatação que o levou a escrevê-lo:
Escrevi o livro justamente
para colocar na pauta do dia que já houve um grupo de operários atores – o que
é muito diferente de um ex-aluno da Escola de Arte Dramática ou da Escola Livre
de Teatro fazer teatro discutindo as causas operárias [21].
Em críticas extraídas de jornais locais da
época citados no volume é possível detectar-se o impacto do trabalho realizado:
nas palavras do jornalista Luís Roberto Alves, por exemplo, em artigo extraído
de jornal local de 1982, o Forja, na encenação de “Pesadelo”, traduzia o
desemprego em um conjunto de cenas que empreendiam a revisão do tema básico da
depressão capitalista que afetava indivíduos, famílias e instituições. O
jornalista ressaltava ainda a eficácia simbólica da denúncia operada em cena, e
a oposição entre o giro do peão, na perspectiva do oprimido, e a fixidez do
chefe, na posição do opressor. As cenas simbólicas foram comentadas por ele com
detalhamento, como a da passagem de um robô em cena em paralelo cênico com as
figuras dos chefes de Seção. O jornalista apontou também a complementaridade
entre as falas e os gestos, e a inexistência de meio termo no percurso da
personagem central, o operário Júlio [22].
O tom vigoroso do relato realizado nesse e em
outros artigos do volume dá bem a dimensão do grau de “enjeitamento” que
apontamos. Trata-se de um processo silencioso e arraigado, que ignora tudo o
que não corresponde aos parâmetros identificados como artisticamente
instigantes e dotados de “complexidade”.
Em comentário sobre o contexto do lançamento de Peões em Cena, em 2011, Tin Urbinatti ressaltava
o fato de a discussão sobre as questões políticas e históricas do operário no
Brasil terem sido frutos, no teatro e na cultura em geral, de trabalhos de
artistas e de estudantes da classe média provindos do Teatro Paulista do
Estudante, do Arena e do CPC. A diferença
entre o CPC e o Forja, acrescenta ele, é
que o CPC falava para os operários e, no Forja, era operário falando para
operário [23].
Um
outro aspecto digno de nota se apresenta no trecho final dessa mesma entrevista:
ao reconhecer o mérito e o indiscutível interesse que existe no fato de a
classe média criar para operários, o diretor tece comentários que, tendo sido
feitos em 2011, poderiam ter soado como um profético alerta para o contexto do
teatro e da cultura em que estamos, na cidade de São Paulo em 2017 [24], quando vivemos a
situação de congelamento das verbas destinadas à cultura por parte da
administração municipal e estadual:
Não
que seja algum demérito, ao contrário; esse teatro de classe média de hoje, que
fala sobre questões do trabalhador, é de fundamental importância. Do ano de
2000 para frente, sobretudo nos últimos quatro anos, tem crescido muito essa
discussão. Só espero que o combustível não seja a verba do [Programa Municipal
de] Fomento [ao Teatro, criado em 2002, em São Paulo]. Espero que o combustível seja a
ideologia mesmo [25].
A situação de terrível estrangulamento vivida
pelo país em 1964 e nas décadas seguintes é bastante análoga à da vivida por
todos os setores da sociedade no momento atual: um golpe político foi engendrado
e aplicado, as políticas adotadas em todos os setores da vida pública impuseram
o arrocho salarial, o desemprego, o desmonte da educação, da saúde e da cultura
como direitos públicos, e inviabilizaram projetos apoiados em formas
participativas e voltadas ao coletivo.
Dentro desse contexto, o estudo da relação
entre o teatro e os movimentos sociais ganha um papel de enorme relevância: ele
mostra que é importante e urgente o aprendizado extraído dessas e de outras formas
de trabalho teatral de trabalhadores; mostra, ainda, que o motor propulsor daquilo
que se faz não pode atrelar-se ao âmbito institucional dos órgãos de fomento à
pesquisa ou de captação de verbas, e sim do tecido vivo das lutas sociais em
andamento. Mostra, por fim, que não se deve perder de vista o fio da meada
histórico que liga tais lutas às práticas do presente.
BIBLIOGRAFIA
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HARDMAN, Francisco
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origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. 1. ed. São
Paulo: Perspectiva / Edições SESC-SP, 2012.
[1] Maria Sílvia
Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da
FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Livros:
Autora de Dramaturgia
Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017),
e Oduvaldo Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).
Tradutora de O método Brecht,
de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o
título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy),
2013.
Organizadora, prefaciadora e autora
dos textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018)
e Papa Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna
Filho.
Organizadora e prefaciadora de Patriotas
e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação
Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do
Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004).
Prefaciadora de Mr. Paradise
e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de
algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee
Williams.
Artigos recentes:
O impulso e o salto: Boal em Nova Iorque (1953-1955). (In Blog
da Cia. Fagulha).
Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/11/o-impulso-e-o-salto-boal-em-nova-iorque.html>.
Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de
análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha).
Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.
Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (in Ingrid
Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).
[2] Teatro
operário na cidade de São Paulo. Coordenação de Maria Thereza Vargas. / São
Paulo; Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de lnformação e
Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980.
[3] Teatro
operário na cidade de São Paulo. Coordenação de Maria Thereza Vargas. Op.
cit., p. 16.
[4] Ibid., p. 13
[5] Loc. cit.
[6] Avelino Fóscolo, Marino Spagnolo, Pedro
Catallo. Antologia do teatro anarquista.
Maria Thereza Vargas (org.). São Paulo: Martins Fontes, 2009, 316 p.
[7] HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria nem patrão. (Vida operária e
cultura anarquista no Brasil). São Paulo: Brasiliense, 1983.
[8] HARDMAN,
Francisco Foot & ARNONI PRADO, Antonio. (Org.) Contos anarquistas.
Antologia da prosa libertária no Brasil (1901-1935). São Pauklo:
Brasiliense, 1985.
[9] ARNONI PRADO, Antonio. Trincheira, palco e letras. Crítica,
literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 105.
[10] ARNONI PRADO, loc. cit.
[11] Ibid., p. 107
[12] ARNONI PRADO, loc. cit
[13] Idem, “Sobre as imagens da revolução no teatro de Luigi Damiani” . In Travessia. Publicação do Programa de
Pós-Graduação em Literatura, jul-dez. l999; p 39.55 Universidade Federal de
Santa Catarina, Brasil.
[14] Idem, “Elucubrações dramáticas do professor José Oiticica” . In Estudos Avançados vol. 14, n. 40. São
Paulo set-dez. 2000.
[15] VARGAS, Maria Thereza. “O Teatro
Filodramático, Operário e Anarquista”. In: FARIA, J. R. (João Roberto Faria) (Org.) . História do Teatro Brasileiro, volume 1: das
origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. 1. ed. São
Paulo: Perspectiva / Edições SESC-SP, 2012.
[16] CAMARGO COSTA, Iná. Panorama do Rio Vermelho. Ensaios sobre o
teatro norte-americano moderno. São Paulo: Nankin Editorial, 2000.
[17] URBINATTI, Tin. Peões em Cena: o Grupo de Teatro Forja. São Paulo: Hucitec, 2011.
[18] Entrevista concedida por Tin Urbinatti
a Eduardo Campos Lima. Jornal Brasil de
Fato, 15 a 21 de setembro de 2011. Caderno de Cultura, p. 10
[19] URBINATTI, op. cit.
[20] Entrevista concedida por Tin Urbinatti
a Eduardo Campos Lima. Loc. cit.
[21] Loc.
cit.
[22] ALVES, Luís Roberto. Pesadelo: o peso
pesado da memória. Jornal de Rudge Ramos, ano III, número 19, novembro de 1982.
In URBINATTI, Tin. Peões em Cena. O Grupo
de Teatro Forja. São Paulo: Hucitec, 2011.
[23] Entrevista concedida por Tin Urbinatti
a Eduardo Campos Lima. Loc. cit
[24] 2017, data da publicação original deste
artigo. In NOSELLA, B. L. D.; MOREIRA, C. M. G.; BETTI, Maria Sílvia. Teatro e movimentos
sociais. In: Berilo Luigi Deirò Nosella; Carina Maria Guimarães Moreira.
(Org.). Cadernos Monográficos. 1 ed. Vitória: Editora Cousa, 2017, v. 1,
p. 14-21.
[25] Entrevista concedida por Tin Urbinatti
a Eduardo Campos Lima. Loc. cit.
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