Lélia Abramo [1911-2004] e Dulce Muniz [1947]: questões para o presente.
Maria
Silvia Betti. USP - FFLCH [1]
Embora pertençam a gerações diferentes, os percursos de vida, trabalho e pensamento de Lélia Abramo e de Dulce Muniz convergem em inúmeros aspectos, pois ligam-se ao teatro (e dentro dele à dramaturgia) como campos inseparáveis das lutas sociais e políticas contra a ditadura e em prol das liberdades democráticas.
Lélia e Dulce compartilham
A convicção política de
base trotskista.
A militância política e
artística contra o autoritarismo, a tortura, a exploração do trabalho e a
desigualdade econômica.
A participação em prol do
reflorescimento do sindicato da categoria dos artistas e técnicos em
diversões (o SATED), na década de 1970, num momento de emergência das lutas
sindicais no ABC.
A atuação, por meio da
dramaturgia e do teatro, dentro de importantes campos de luta pela
transformação da sociedade.
Trabalho artístico e político de Lélia e
de Dulce: elos com as lutas do teatro e da cultura
•
Lélia:
Teatro dos imigrantes de origem itálica –I Guitti - Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC)- Teatro de Arena de São Paulo
(1958-1961) - Cinema Novo - Televisão - Lutas sindicais dentro
da categoria dos artistas.
•
Dulce:
Teatro de Arena (já sob o AI-5)- Teatro Jornal - Movimento Arte
contra a Barbárie – Luta pela Lei Municipal de Fomento ao Teatro da
Cidade de São Paulo – Teatro Studio Heleny Guariba: espaço de memória das
lutas de resistência – Dramaturgia feminina (Concurso Feminina Dramaturgia).
Lélia: raízes de seu trabalho e formação
Família de lutadores. Trotskistas,
como seu irmão mais velho, Fúlvio; anarquistas, como seu avô
materno Bortolo; humanistas, como seu pai; artistas, como
seu irmão Lívio.
Década de 1930:
participa da Liga Comunista Internacionalista, liderada por Mário
Pedrosa. Participa da direção do Sindicato dos Comerciários, também na
década de 1930.
Passa os anos da guerra
na Itália.
1950:
entra para o grupo teatral Muse Italiche.
1958:
ingressa no grupo teatral I Guitti, dirigido por seu irmão Athos
Abramo.
Lélia: Arena e TBC
Início dito “tardio”, aos
47 anos, em “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro
de Arena de São Paulo, em 1958.
Participação marcante em
outras montagens ligadas à modernização nacionalista da dramaturgia no
Brasil:
Teatro de Arena, 1961:
“Gente como a Gente”, de Roberto Freire, e “Pintado de alegre”, de
Flávio Migliaccio.
Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC): “Os ossos do Barão” (1963) e “Vereda
da Salvação” (1964)
Lélia: repertório de
papéis em peças de autores consagrados
Clássicos
(Aristófanes, com “Lisístrata”, em 1967, Ésquilo, com “Agamênon”,
em 1968, e Shakespeare, com “Romeu e Julieta” e “Ricardo
III”, respectivamente em 1969 e 1975).
Dramaturgos ligados a
diferentes perspectivas de modernização temática e interpretativa (como
Tennessee Williams, com “À margem da vida”, em 1958, Ionesco,
com “Rinocerontes” e Arnold Wesker com “Raízes”, ambos em
1961, Garcia Lorca, com “Yerma”, em 1962, Ibsen, com “Os
Espectros”, em 1965, e Beckett, com “Esperando Godot”, em
1977).
Lélia: atuações importantes para o aporte
do teatro de Brecht no Brasil
1960:
“Mãe Coragem e seus filhos” (Sociedade Artística Novo Teatro, dir.
Alberto d’Aversa)
1962:
“As visões de Simone Marchard” (Cia Nydia Licia, dir. José Felipe)
1985:
“A mãe” (dir. João das Neves)
Lélia
Aos 47 anos, Lélia
tornou-se atriz profissional. Estreou, em 1958, na peça Eles não usam
black-tie. Ganhou todos os prêmios daquele ano. Exatos 20 anos depois,
assumiu a presidência do Sindicato dos Artistas de São Paulo.”
(Fonte: Rememória.
Entrevistas sobre o Brasil do século XX. Org. Ricardo Azevedo e Flammarion
Maués. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, p. 65.)
“Ao longo de quatro anos,
cumpriu um papel importante junto às greves dos metalúrgicos do ABC, no nascimento
do PT e na organização sindical e política dos artistas. Essa
atuação afetou sua carreira profissional; as emissoras de TV, em
particular, não mais a contrataram. Durante o governo Luiza Erundina, Lélia
participou da equipe da Secretaria de Cultura e deu aulas a um grupo
de teatro comunitário na periferia. Aos 86 anos, concluiu em 1997 seu livro
de memórias.”
(Fonte: loc. cit)
Lélia no teatro: trabalho com diretores
Diretores consagrados:
Maurice Vaneau, Alberto d’Aversa e Cacilda Becker.
Diretores ligados à
renovação dramatúrgica e cênica no contexto brasileiro: Augusto Boal, José
Renato, Antunes Filho e Antonio Abujamra.
Lélia no cinema: atuações
de destaque
“O caso dos irmãos
Naves”, marco do Cinema Novo sob a direção de Luis Sérgio
Person, em 1967.
“Joana Francesa”, coprodução
franco-brasileira com roteiro escrito e dirigido por Cacá Diegues, em 1973.
“Maldita Coincidência”, de
1974, filme de estreia do diretor Sérgio Bianchi.
“Eles não usam
Black-tie”, de 1981, dir. Leon Hirszman
Na televisão
Lélia atuou em novelas
e em trabalhos teledramatúrgicos, passando por praticamente todas as
emissoras disponíveis na época no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
Sua militância
política e sua atuação sindical custaram-lhe, em 1982, a demissão
dos quadros da Rede Globo.
Política e cultura no trabalho de Lélia
Lélia integrou o grupo
que formulou os subsídios para a plataforma cultural do PT em 1982,
composto por Antonio Cândido, Bete Mendes, Denise del Vecchio, Maria
Esmeralda, Maurício Segall e Roberto Schwarz).
Vida e Arte
Em 1997 é lançada sua
autobiografia, Vida e Arte. Memórias de Lélia Abramo, publicação
conjunta da Editora da Unicamp e da Editora Fundação Perseu Abramo.
Morre em 2004.
Dulce
Muniz: formação sob a ditadura
Formação inicial: milita
no Partido Operário Revolucionário Trotskista - PORT.
Em 1970 participa
de oficinas de interpretação para atores iniciantes abertas no Teatro de Arena,
conduzidas por Heleny Guariba e Cecília Boal.
Com
a prisão de Heleny, e seu desaparecimento dentro dos órgãos de
repressão, Dulce e os demais ingressantes desenvolvem o trabalho que resultaria
no Teatro Jornal, importante frente de trabalho teatral de ativismo
político-cultural que realizaria apresentações em diferentes espaços públicos
da cidade de São Paulo e de sua periferia.
[Obs. Heleny Ferreira
Telles Guariba, Militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR),
foi presa em 12 de julho de 1971. Seu corpo nunca foi encontrado. Seu nome
consta da lista oficialmente reconhecida de desaparecidos políticos, no anexo
I, da lei 9.140/95.]
Em 06 de junho de 2016 Dulce
recebe, na Câmara Municipal de Vereadores de São Paulo, o título de Cidadã
Paulistana.
Dulce: lutas
Participa da articulação
e dos debates realizados dentro do Movimento Arte contra a Barbárie, do
qual resultou a promulgação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro da Cidade
de São Paulo, que estimula o trabalho de pesquisa artística e cultural de
coletivos de teatro em todas as regiões da cidade de São Paulo.
Participa do Movimento
de Teatro de Grupos de São Paulo com o Núcleo do 184.
Dulce e o Teatro Studio Heleny Guariba
•
Em abril de 2013 dá ao seu pequeno teatro,
na Praça Roosevelt 184, em São Paulo, o nome de Teatro Studio Heleny
Guariba.
•
Nesse teatro sedia debates dentro do
Movimento Arte contra a Barbárie, da Cooperativa Paulista de Teatro,
assim como palestras, ciclos de filmes (“Sábados Resistentes”), leituras
dramáticas e apresentações teatrais de textos da dramaturgia brasileira e latino-americana
dos anos de resistência.
Dulce como dramaturga: trilogia de
mulheres revolucionárias
Escreve a trilogia
dramatúrgica ainda inédita em termos de publicação intitulada “A Mulher
na Resistência”, composta por peças dedicadas à representação da luta e do
pensamento de mulheres militantes do socialismo revolucionário:
“Iara, camarada e
amante”, sobre Iara Iavelberg (militante do
Movimento Revolucionário 08 de Outubro e companheira do Capitão Carlos Lamarca,
da Aliança Libertadora Nacional),
“Heleny, Heleny, Doce
Colibri”, sobre a professora e diretora teatral Heleny
Guariba
“Rosa Vermelha.
Concerto Mínimo para a Vida, Obra e Morte de Rosa Luxemburgo,
ativista revolucionária e teórica do socialismo
O contexto atual
•
Dentro de um histórico de cortes e
boicotes, a 34ª Edição do Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo é suspensa por
determinação judicial
•
Desmonte das políticas públicas para
a cultura continuam acelerados
•
Estreitamento de laços entre grupos de
teatro e a universidade: absorção de expedientes acadêmicos de trabalho
formativo.
•
Expansão das práticas performativas em
detrimento da pesquisa interpretativa e teórico-crítica voltada à
dramaturgia.
•
Dramaturgia: pouco presente na
formação de atores e atrizes e também nos conteúdos de periódicos acadêmicos
das áreas de Artes Cênicas.
•
Desaparecimento de edições de
peças teatrais em circulação.
•
Crescentes dificuldades de subsistência por
parte de editoras e de livrarias.
•
Enorme dificuldade interpretativa dos
atores e atrizes em formação em relação à dramaturgia propriamente dita.
•
Foco de atenção na dramaturgia tem
sobrevivido, em grande parte, dentro da área de roteiros (criação).
Desafios:
•
Precarização e gradual privatização das
universidades públicas.
•
Desmonte
das agências de subsídio à pesquisa.
•
Crescentes cobranças produtivistas e
burocratizantes nas áreas de pesquisa das Universidades.
•
Expansão das modalidades não
presenciais de ensino.
•
Adoção, como parâmetro de excelência, do modelo
estrangeiro (especialmente estadunidense) de universidade.
•
Apagamento da consciência histórica em
relação às lutas travadas pelo teatro em momentos anteriores.
Lélia e Dulce
•
Ambas trabalharam pelo teatro como
campo de expressão artística de luta e compartilhamento de reflexão crítica
sobre a realidade.
•
Dentro desse trabalho, a dramaturgia
teve papel importante por meio do histórico de criação de autores como Oduvaldo
Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Chico de Assis, João das
Neves, Dias Gomes, Paulo Pontes, Plínio Marcos, Consuelo de Castro, Leilah
Assunção, Carlos Alberto Soffredini, Carlos Queiroz Telles, Lauro César Muniz,
Timochenko Wehbi, José Vicente, Renata Pallotini, e muitos e muitos outros.
Questões
•
A dramaturgia que herdamos desses autores
tem sido frequentemente encarada, em teses, dissertações e obras histórico-críticas,
como mero recuo em relação à criada dentro do teatro político e
militante dos anos pré-golpe de 64. Subscrevemos esse diagnóstico?
•
Essa dramaturgia nos inspira para
algum aprendizado ou reflexão para além do atendimento
ao produtivismo acadêmico na Universidade e à configuração de projetos
para editais no âmbito do teatro da cidade de São Paulo?
Trecho extraído do prefácio de Antonio
Cândido
O nosso mundo é tão cheio
de quebras, capitulações, deserções, omissões e tudo o mais, que conforta ler a
narrativa de uma vida como a de Lélia Abramo, que nunca vergou a espinha, nunca
sacrificou a consciência à conveniência e desde muito jovem se opôs à injustiça
da sociedade. Que sempre rejeitou as vias sinuosas e preferiu perder empregos,
arriscar a segurança, sofrer discriminações para poder dizer a verdade e agir
de acordo com os seus pontos de vista. Por isso, além de um belo texto escrito
com calor e franqueza, este é também lição e exemplo. É muito bom saber que
perto de nós existem pessoas dessa qualidade intelectual, ética e artística.
Bibliografia
Rememória. Entrevistas sobre o Brasil do
século XX. Org. Ricardo Azevedo e Flammarion Maués. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo
Reinaldo Cardenuto. O cinema político de Leon
Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência durante o regime militar
brasileiro. Tese de doutorado, ECA-USP, 2014. p. 353 p. 155, 238, 310, 314,
333, 422.
Rafaela Lunardi. Preparando a tinta, enfeitando a
praça: o papel da MPB na “abertura política” brasileira (1977-1984). FFLCH,
História Social, Marcos Napolitano. p. 304.
Uma chama revolucionária in
Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, p. 11, 17,
19-22.
Gelsom Rozentino de Almeida. História de uma década
quase perdida: PT, CUT, crise e democracia no Brasil: 1979-1989. Editora
Garamond Ltda. Rua da Estrela, 79 - 3º andar - Rio Comprido. Rio de Janeiro -
Brasil - 20.251-021 Tel.: (21) 2504-9211 editora@garamond.com.br.
p. 201.
Hamlet
e o filho do padeiro: Memórias imaginadas
Hamlet and the Baker's Son:
My Life in Theatre and Politics p. 25.
Antunes
Filho e a dimensão utópica -
Page 116
Lembranças
incompletas -
Page 233. Edgar rodrigues, 2007.
Em busca do povo brasileiro: artistas da
revolução, do CPC à era da tv, p. 206, 227, 421
Muitos caminhos, uma estrela: memórias de
militantes do PT, Volume 1 Editora Fundação Perseu Abramo, 2008 - Brazil - 447
pages
A
contribuição italiana ao teatro brasileiro, 1895-1964
[1] Nota da autora:
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