Europa:
50 países em busca de um continente. Por Flávio Aguiar
A vassalagem europeia.
Ao
lado de ser um território com mapa e limites geográficos, durante séculos a
Europa foi a fonte de um discurso múltiplo que se debruçava sobre o mundo e
sobre ou sob o qual o mundo se debruçava.
Um
discurso múltiplo: o significado e alcance desta expressão é, em si mesmo,
múltiplo. Por exemplo, os discursos políticos emanados da “voz europeia”
compreendem desde o absolutismo monárquico dos séculos XVII e XVIII às teorias
e práxis rebeldes do Iluminismo e do Marxismo revolucionários.
Mais
que qualquer outro continente, a Europa disseminou línguas pelo mundo. Graças
às grandes navegações e ao colonialismo, as línguas geograficamente mais
oficialmente espraiadas pelo mundo são de origem europeia: inglês, português,
francês e espanhol.
A
Europa e os europeus não só dialogaram com e pelo mundo; também impuseram o seu
diálogo interno pelo mundo inteiro, durante séculos. E foi o berço clássico de
algo muito complexo, chamado de “Ocidente”, “Cultura ou Civilização Ocidental”.
O último rebento deste autêntico rio de conceitos foi o chamado “Bloco
Ocidental”, nascido logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, ainda que
desta vez sob a liderança dos Estados Unidos. Mas que são estes, senão o
rebento mais poderoso do colonialismo britânico?
Além
disto, a Europa foi a fonte das duas únicas guerras da história humana que
ganharam o adjetivo de “mundiais”. Diante de tal currículo fica ridículo o afã
norte-americano de chamar suas disputas esportivas nacionais de “World Series”,
bem como o de chamar o seu país, por maior e mais poderoso que seja, de “America”.
Ou de criar um “Golfo da América” onde existe um Golfo do México.
O
chamado Bloco Ocidental e seu principal braço armado coletivo, a OTAN, ganharam
a Guerra Fria, derrotando sobretudo a finada União Soviética, que desmoronou. A
OTAN começou a estender seu domínio de ação ao antigo Leste Europeu,
bombardeando forças que considerasse inimigas, no Norte da África e no Oriente
Médio, destruindo governos e países que não fossem de seu agrado.
abriu
caminho para guerras na Geórgia e na Ucrânia, atraindo a Rússia para rinhas que
poderiam tornar-se armadilhas para Moscou. Mas de repente, não mais que de
repente, o Bloco Ocidental tremeu, e visivelmente rachou. Quem conseguiu esta
proeza não foi algum regime comunista. Afinal, o comunismo hoje, além de nos
formigueiros e nas colmeias, sobrevive apenas em verdadeiras reservas
ecológicas, Cuba e a Coreia do Norte. Não me venham dizer que a República
Popular da China ainda é comunista, embora não seja neoliberal nem detenha um
capitalismo clássico.
O
autor desta proeza foi um político norte-americano, o presidente dos Estados
Unidos, espinafrando em pleno Salão Oval da Casa Branca, com ajuda de seu vice,
o antigo aliado preferencial, seu colega da Ucrânia, ao mesmo tempo em que lhe
apresentava a fatura pela ajuda militar prestada sob a forma de cessão das
terras raras daquele país destruído por uma guerra terceirizada.
A
consequência disto foi a constatação de que quem de fato caiu na armadilha da
guerra foi a Europa. Neste continente acelerou-se a corrida armamentista que já
estava em curso e instalou-se a balbúrdia costumeira nos agrupamentos coletivos
que se descobrem isolados, falando uns para os outros, sem audiência no resto
do mundo.
Este
foi o presente que Trump entregou ao continente europeu e sua principal
porta-voz, a União Europeia, bem como a matriz criadora dos Estados Unidos, o
antigo Império Britânico, que tem hoje sua City financeira transformada numa
das maiores agências de lavagem de dinheiro no mundo, tanto que esta tem o
apelido na mídia londrina de “Laundromat”. A Europa, com a exclusão da Rússia
de seu plantel político-geográfico, ficou pendurada no pincel de uma guerra que
poderia ter contribuído para evitar, se permanecesse fiel aos acordos de Minsk
sobre a Ucrânia. Esta Europa, que se encontra carente de lideranças expressivas
no cenário geopolítico, cuja União se vê assediada pelas propostas xenófobas de
suas extremas-direitas, insufladas por assessores do ocupante da Casa Branca e
contaminando as agendas de quase todos os demais partidos, inclusive alguns à
esquerda, como o BSW alemão, ou os Verdes em todo o continente.
Em
todos os recantos europeus ouve-se, ora em surdina, ora em bel-canto, o refrão
de que os países do continente se preparam para uma guerra. Ora se fala numa
“guerra contra a Rússia”, versão perigosa, mas ainda em lá menor, ora da versão
em dó maior que se lança no espaço como a perspectiva de uma “Terceira Guerra
Mundial”.
Houve
até um político alemão, dos do grupo da surdina, que advertiu não ser uma boa
alternativa o rápido fim da guerra na Ucrânia, pois isto liberaria Moscou, na
visão dele, para almejar outros alvos, antes que seu país e os demais do
continente, estivessem preparados para o conflito, o que deveria acontecer lá
por 2030.
Confirmando-se
esta visão, ela comprovaria que a Ucrânia merece o título de “bucha de canhão”
do século XXI, uma espécie de Álamo europeu, segundo a mitologia
norte-americana de que os defensores daquela fortaleza texana se sacrificaram
dando tempo a Sam Houston para se preparar na luta afinal vitoriosa contra
Santa Anna. Um destino glorioso na mitologia e cruel na realidade.
Este
quadro, na verdade soturno e trágico, sugere a ideia de que os líderes europeus
estão forjando nova versão de conhecido ditado brasileiro: estariam na base do
“não vamos ver como é que está para não ver como é que fica”.
Esclareço:
desde a conversa catastrófica no Salão Oval da Casa Branca instalou-se um clima
de franca rebeldia na retórica dos políticos da União Europeia e da Europa de
um modo geral. Vocifera-se uma rebeldia armamentista contra Trump pelo
“abandono” da Ucrânia em favor de uma aproximação com Putin. Promete-se o
rearmamento da Europa, com investimentos da ordem de quase um trilhão de euros
no militarismo continental (150 bilhões de imediato), incluindo a Ucrânia,
transformada em bastião avançado do… bem do quê, mesmo, se já não dia para
falar em Bloco Ocidental, pelo menos do mesmo jeito que se falava antes.
Acontece
que os Estados Unidos são o maior exportador de armamentos do mundo, com uma
quota de 43% do setor entre 2020 e 2024, contra 35% entre 2015 e 2019. Os dados
são de um relatório do Instituto Internacional de Investigação para a Paz. com
sede em Estocolmo. Os dados foram divulgados por reportagem da CNN portuguesa
em 10/03/2025 (“A América é o maior exportad0r de armas do mundo. A Europa
devia saber”).
Ainda
segundo este relatório, nos últimos cinco anos quase dois terços das armas
importadas pelos países europeus vêm dos Estados Unidos, contra pouco mais da
metade entre 2015 e 2019.
Fala-se
em reforçar a produção armamentista da Europa. Entretanto, isto vai levar
tempo. No interregno, a Europa estará, na verdade, sob a cortina de fumaça da
rebeldia, cumprindo as ordens de Trump e ajudando a sua proposta de “Make
America Great Again”. O que comprova que nos diálogos geopolíticos as valsas
vienenses, as lieder alemãs, a chanson francesa, a tarantella
italiana, os madrigais britânicos, etc., estarão de vez sendo encobertos pelo
novo rockão bate-estaca da Casa Branca.
Flávio
Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de
literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas
do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]
Colabore
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