Curso: Dez vezes Vianinha
Sobre Oduvaldo Vianna Filho. Por
Maria Sílvia Betti.
Oduvaldo
Vianna Filho (1936-1974) foi o mais importante dramaturgo do Brasil no século
XX, tanto por ter enfrentado os mais agudos desafios como por ter respondido a
eles de forma tão pertinente e profunda. Ligado à militância política comunista
através de seus pais, cresceu em contato com quadros históricos do PCB, como
Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighela. Participou ativamente das
transformações que o teatro sofreu dentro do processo de modernização e
industrialização do país nas décadas de 1950 e 1960. Participou, também, de
iniciativas fundamentais para a renovação do teatro como veículo de reflexões
estéticas e políticas: juntamente com companheiros do Teatro de Arena de São
Paulo, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes e do grupo
Opinião, no Rio de Janeiro, enfrentou o desafio de redefinir o papel do teatro
dentro da vida social e política do país, procurando sempre, paralelamente,
romper os limites de classe que pesavam sobre a produção cultural e que
separavam o intelectual e o artista da classe trabalhadora.
Entre
o final da década de 1950 e o período pré-golpe de 1964, Vianna criou trabalhos
que avançaram significativamente no sentido de representar as questões
políticas nacionais e os problemas que se apresentavam para a classe
trabalhadora. É o que vemos em peças como Chapetuba
Futebol Clube, de 1958-9, A mais
valia vai acabar, seu Edgar, de 1961, Brasil
versão brasileira e Quatro quadras de
terra, de 1962, e Os Azeredos mais os
Benevides, de 1963.
Mesmo
enfrentando os vetos constantes impostos a seus trabalhos, já sob a ditadura,
Vianna criou alguns dos mais importantes textos teatrais brasileiros do século
XX, como Moço em Estado de sítio e Se correr o Bicho pega, se ficar o Bicho
come, de 1965, Mão na luva, de 1966,
Dura lex sed lex no cabelo só Gumex, de
1967, Papa Highirte, de 1968, Nossa vida em família e A longa noite de Cristal, de 1970, Corpo a Corpo, de 1971, Allegro Desbum, de 1973, e Rasga Coração, sua obra-prima concluída
às vésperas de sua morte prematura em 1974.
Vianna
escreveu, paralelamente, textos teledramatúrgicos dotados de grande poder de
síntese de impasses cruciais que pesavam sobre a classe trabalhadora, como Medeia, em que foi inspirada a peça Gota d´Água, de Paulo Pontes e
Chico Buarque. Foi também, juntamente com Armando Costa, o responsável pelos
roteiros que consagraram o seriado A
Grande Família.
O
trabalho de Oduvaldo Vianna Filho é fundamental não só para quem estuda
dramaturgia, mas também e principalmente para todos os que se interessam pelo
mergulho crítico nos processos históricos do país em sentido amplo, enxergados
sob a perspectiva das classes trabalhadoras e das lutas políticas da esquerda.
Nenhum outro dramaturgo criou um conjunto de trabalhos tão representativos e de
tão rigorosa e intensa procura estética ao tratar dessas questões. Nenhum outro
discutiu de forma tão aguda e autocrítica a necessidade de amadurecimento da
reflexão política e dos expedientes dramatúrgicos utilizados.
Os
dramaturgos e encenadores brasileiros da primeira metade do século XX não
haviam legado à geração que os sucedeu elementos que permitissem avançar
decisivamente no tratamento dramatúrgico e cênico das questões imediatas do
país. A necessidade de enfrentar esse desafio se tornou premente para os que os
sucederam. Dentre eles foi Vianna que se debruçou com mais afinco e
radicalidade sobre essa questão: seus trabalhos teatrais e seus textos
ensaísticos constituem o mais representativo e coeso conjunto de criações e
reflexões produzido por sua geração no teatro brasileiro de sua época.
Outro
aspecto importante a ser ressaltado quanto à obra de Vianna é o fato de ele
pertencer à primeira geração de dramaturgos brasileiros a travar contato com o
teatro brechtiano, e a descobrir nele expedientes de grande pertinência para a
representação dramatúrgica de questões da estrutura material da sociedade, da
exploração do trabalho, da figuração da luta de classes e do próprio papel do
teatro.
Seu
teatro como um todo insere-se num momento em que o país ingressava numa nova
fase de desenvolvimento capitalista sem ter previamente superado as
contradições relativas à sua estrutura econômica e administrativa e ao processo
de industrialização em curso. Vianna recorreu com frequência às ferramentas
épicas de expressão dramatúrgica, que utilizou tanto no CPC, nos esquetes do
teatro de rua, de natureza agitativa, como nas peças mais longas escritas nas
demais fases de seu trabalho.
Dentro
das linhas dominantes de estudo e pesquisa do teatro em geral, no momento em
que agora nos encontramos, há quem pense no teatro de Vianna nos termos
estritos de um registro histórico-documental de sua época. A atualidade de seu
trabalho, porém, é objetivamente constatável pelo modo como seu teatro responde
às necessidades determinadas pela matéria histórica que se propõe a
representar.
Em um
dos escritos ensaísticos que ele escreveu na época de sua participação no Tetro
de Arena, no início de sua carreira, Vianna afirmava:
Quero
fazer um teatro que pretende enriquecer o instrumento do homem, com que ele
enfrenta a realidade, permitindo-lhe uma intervenção direta no seio mesmo das
próprias condições que originam sua trágica existência - necessariamente
trágica pelas condições, não porque suas vontades formam condições, porque as
condições formam vontades. Um teatro que distinga a realidade da representação
e dos valores que o homem dela tira para a modificação destes mesmos valores,
mais aptos para enfrentar as condições que a originaram. [1]
Muitos anos mais tarde, ao escrever um Prólogo originalmente destinado a acompanhar sua última peça, Rasga Coração, ele escreveria:
Há um teatro que exige do espectador
que deixe o ter a psicologia que tem
submete-o a uma extrema tensão psíquica
considera que a psicologia que temos
é uma vontade nossa
somos assim porque queremos ser assim
nós não consideramos a coisa dessa maneira
para nós, a psicologia que existe
é um sistema real para viver neste mundo
não podemos pedir portanto que você abandone
você
o que queremos pedir é que você se divida,
lute consigo mesmo
à sua psicologia de vida presente
queremos apresentar uma psicologia de aspiração
de um mundo melhor
e o queremos dividido, mais dividido,
não o queremos uno, inteiro, soberbo,
nós o queremos dividido. [2]
A ideia do teatro como campo de debate de ideias e de organização
do pensamento, a noção de um mundo historicamente determinado e por isso
passível de transformação, e a busca constante e ininterrupta de aprofundamento
das ferramentas artísticas de expressão foram elementos inerentes à forma pela
qual Vianna pensou o teatro e desenvolveu seu trabalho. Tanto no campo do
fazer teatral como no da construção de um pensamento crítico dentro da criação,
Vianna avançou tão decisivamente porque vinha de uma trajetória ligada ao mesmo
tempo à luta política e à prática artística, e porque ele as tratou como
inseparáveis mesmo quando tensionadas entre si.
Material do Curso:
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