Curso: Dez vezes Vianinha
Sobre a proposta. Por Maria Sílvia Betti
Curso online gratuito.
Esta série de encontros propõe-se a apresentar
uma visão de conjunto da dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho tomando como
balizas históricas os anos de 1965 (que se seguiu ao do golpe civil-militar) e
1974 (ano de sua prematura morte).
Vianna viveu e escreveu em um período de transformações
socioeconômicas aceleradas e de grandes desafios para as classes trabalhadoras.
Desde o início de seu trabalho como dramaturgo, no Teatro de Arena de São Paulo
na segunda metade da década de 1950, o teatro foi tratado por ele como parte
inseparável do aparelhamento de percepção, conhecimento e intervenção diante da
realidade.
Em 1960, Vianna desligou-se do Arena disposto a
transpor a barreira de classe que lá se apresentava quanto ao público, uma vez
que operários e trabalhadores de baixa renda acabavam não tendo acesso aos
espetáculos. Sua recém escrita peça “A mais valia vai acabar, seu Edgar”,
encenada por Chico de Assis com um grupo amador num espaço aberto da Faculdade
de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, acabou
desencadeando a organização do Centro Popular de Cultura (o CPC), um grande e
abrangente projeto voltado à horizontalização da produção cultural, com setores
de trabalho voltados não só ao teatro, mas também ao cinema, à música popular,
à poesia e à produção e circulação de estudos críticos que analisavam, de forma
didática e investigativa, os grandes temas da pauta política do país. Em 1962 o
CPC foi encampado pela União Nacional dos Estudantes, tornando-se seu braço
cultural: o CPC da UNE.
Dentro do CPC Vianna passou a trabalhar
febrilmente no setor de teatro, participando como escritor na criação de autos
(esquetes satíricos e críticos de teatro de rua) sobre assuntos candentes das
lutas do operariado, e, como ator, da apresentação deles em portas de fábrica,
em favelas e em centrais sindicais. Paralelamente ele continuou a escrever peças
longas voltadas às questões políticas cruciais do país (petróleo, reforma
agrária e problemas inerentes à aliança de classes).
As condições materiais e humanas que
caracterizaram esse período de trabalho cultural foram brutalmente abortadas
com o golpe de 1964. A UNE foi posta na clandestinidade, e seu prédio, cercado
por forças policiais, foi metralhado e destruído. Líderes sindicais, militantes
de partidos de esquerda e ativistas do CPC e de outras organizações passaram a
ser perseguidos, e muitos tiveram que deixar o país. Todos os principais elos
entre o proletariado e os artistas e intelectuais de esquerda foram sumariamente
cortados.
Diante dessas circunstâncias, Vianna e alguns
companheiros criaram o grupo teatral Opinião, no Rio de Janeiro. Tratava-se da retomada
forçada do teatro profissional e, ao mesmo tempo, da tentativa estratégica de realização
de um trabalho que expressasse resistência e crítica, ainda que indiretamente,
por meio de alusões, em espetáculos com uso de humor, música e metáforas sobre
a situação do país.
Em 1968, com a instauração do Ato Institucional
número 5, as já difíceis condições de trabalho sob o autoritarismo tornaram-se
ainda piores, com a implantação da censura prévia aos meios de comunicação e
com a crescente perseguição, prisão, tortura e desaparecimento de militantes de
esquerda.
Com a recorrente proibição da maioria de suas
peças pela censura, Vianna passou a ter que realizar trabalhos para a televisão,
campo em que teve acolhida de público e reconhecimento pela crítica tanto com os
textos teledramatúrgicos escritos para o programa “Caso Especial”, da TV Globo,
como, principalmente, com os roteiros que criou em conjunto com Armando Costa,
amigo e companheiro do CPC, para o seriado “A grande família” na mesma emissora.
Como dramaturgo e como pensador do teatro e da
cultura, a perspectiva de Vianna foi sempre a de quem se apoiou na materialidade
das condições objetivas da existência:
Partir
daquilo que existe, que é visível, partir daquilo que compõe o homem no mundo
em que vivemos.
Parece residir aí, nessa perspectiva
materialista de entendimento, o principal desafio que se apresenta, nos tempos
atuais, para o estudo e discussão de sua dramaturgia, particularmente a
referente a esse período que se estendeu do golpe até sua prematura morte. A
universidade atual tem sido um campo formador norteado predominantemente pela
necessidade de gerar diagnósticos de análise apoiados em formulações teóricas
mais do que no entendimento das condições históricas que se apresentam. Nada
poderia ser mais adverso à discussão da dramaturgia de Vianna, e particularmente
da dramaturgia produzida por ele nesse período, diante de circunstâncias de tão
grande cerceamento.
Na consciência do povo, ao longo da História, de tal modo se imprimem os valores da submissão e da prostração, as condutas de aceitação e omissão, de tal modo a consciência popular é impregnada de ideias sobre a existência natural de “superiores” e “inferiores” que mesmo nos momentos em que o povo desperta, em que o povo toma para si sua força, estes valores permanecem, dificultando sua ação organizada, entravando a luta popular. [1]
Tornar mais agudos e complexos os recursos de expressão dramatúrgica e cênica foi sempre o empenho principal envidado por Vianna em tudo o que escreveu, e liga-se a seu esforço no sentido de tornar mais eficaz o mergulho crítico na realidade, por mais adversa que esta seja. Trata-se, portanto, de algo que se coloca a serviço da análise e da reflexão necessárias à luta e que se constitui em elemento inseparável dela. Em breves palavras, esta é a perspectiva a partir da qual foi proposta esta série de conversas.
[1] VIANNA FILHO, Oduvaldo. Uma entrevista sobre “Quatro Quadras de Terra”. In _______. Teatro de Oduvaldo Vianna Filho, v. 1. Organização de Yan Michalski. Rio de Janeiro: Ilha, 1981, p. 289.
Material do Curso:
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