Ai de ti, 64. Por Flávio Aguiar

 Ai de ti, 64. Por Flávio Aguiar

 

Homenagem ao tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, que ajudou a salvar a cidade de Porto Alegre de um bombardeio aéreo em 1961 e foi assassinado na Base Aérea de Canoas em 4 de abril de 1964.


A Malena Monteiro. A Alfeu de Alcântara Monteiro, in memoriam.

 

 

1. Há uma praça de menos em Porto Alegre. Essa praça deveria se chamar “Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro. Alfeu de Alcântara Monteiro nasceu em Itaqui, Rio Grande do Sul, em 31 de março de 1922. A Semana de Arte Moderna tinha um mês e meio de realização. Naquele ano também seria fundado o Partido Comunista do Brasil. O menino Alfeu tinha três meses e meio de vida quando do episódio dos 18 do Forte, em Copacabana.

Tinha dois anos mais ou menos quando o capitão Luís Carlos Prestes começou a marcha de sua coluna, naquela região mesma em que nascera Alfeu, nas Missões. Tinha oito anos na Revolução de 1930, dez na revolta de 32, 20 quando o Brasil entrou na Segunda Guerra, ao lado dos aliados e da União Soviética, contra os nazifascistas e o Eixo. Teria 44 anos recém- completos ao morrer, em 4 de abril de 1964, em consequência do golpe dado três dias antes.

Em 1941 ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, e em 1942 passou para a Escola da Aeronáutica, onde se formou como aspirante em 1943, designado para servir na base aérea de Fortaleza.

Fez uma carreira bastante protocolar e rápida, marcada por elogios oficiais. Recebeu louvores individuais em diversas ocasiões. Em 1946 já era tenente aviador e estava na Base Aérea de São Paulo. Em 1947 estava de volta na Escola de Aeronáutica, no Rio de Janeiro, onde recebeu louvor, destacando “suas qualidades de caráter e esmerada educação, aliadas à correta noção de disciplina e dos assuntos profissionais, que o fazem despontar entre os oficiais de escol da FAB”. Serviu ainda em Natal nesse período.

Por seus méritos integrou a equipe de oficiais aviadores que em 1948 foi buscar os aviões de combate Gloster Meteor adquiridos nos Estados Unidos. Nos dez anos seguintes serviu em Natal, Rio de Janeiro, São Paulo e na Base Aérea de Canoas, município da Grande Porto Alegre. Recebeu vários elogios em sua folha de serviço por participação em eventos esportivos e em manobras de campo, simulando combates.

Muitos desses elogios ressaltam sua capacidade de superar dificuldades e precariedades provocadas por falta de suprimentos ou aparelhos adequados.

Em 1957 recebeu um elogio por escrito do brigadeiro do ar Nelson Freire Lavanère Wanderely, do Comando da Primeira Zona Aérea. Em 1964 o já tenente-coronel Alfeu Alcântara Monteiro seria acusado de tentar assassinar o brigadeiro Lavanère Wanderley na Base Aérea de Canoas.

Em 1958 fez o curso do Estado Maior da Aeronáutica no Rio de Janeiro. Em 1959 passou a integrá-lo, e em dezembro desse ano estava servindo na Sub-Seção do Exterior do Comando de Segurança Nacional. Nos elogios recebidos em sua folha de serviço nesta função, destacam-se os seguintes termos e expressões: “personalidade marcante”, “destacado piloto da FAB”, “impecável apresentação”, “correção e franqueza de atitudes”, “discreto, trabalhador e inteligente”, “espírito de cooperação”. Diz o elogio de 27 de julho de 1960: “Embora constantemente solicitado para cumprir seus deveres como piloto da FAB, tem em dia seus encargos”.

Em 31 de janeiro de 1964 recebeu o que provavelmente foi seu último elogio oficial, da parte do General de Divisão Ernestino Gomes de Oliveira, diretor geral de Saúde do Exército, nos seguintes termos: “Tenente Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, oficial disciplinado, competente e proficiente, comandou com destreza e perfeição o transporte de que me utilizei. Sempre pronto para o serviço, o Ten. Cel. Alfeu deu demonstração cabal de pontualidade e de espírito militar Louvo pois o Ten. Cel. Alfeu e auguro-lhe o melhor êxito em sua brilhante carreira”.

Tudo isso consta de cópia autenticada da folha corrida do tenente-coronel, que lhe foi passada em 23 de março de 1964, na Base Aérea de Canoas, de que tenho reprodução.

2. Aqui vale a pena transcrever trecho do seu obituário, publicado em 5 de abril daquele ano, no Diário de Notícias de Porto Alegre: “[serviu] no Comando de Segurança Nacional até fevereiro de 1961. Foi exonerado nesse mês daquele órgão, ficando 90 dias sem função e sem vencimentos, ao que dizem por ser antijanista. Ao terceiro mês de afastamento foi classificado em Recife. Este fato levou-o a dirigir carta a um oficial do Ministério da Aeronáutica, dizendo-lhe que só lhe servia Porto Alegre, pretensão que lhe foi satisfeita um pouco mais tarde. Quando da renúncia do senhor Jânio Quadros e com a ida do brigadeiro Aureliano Passos para o Rio, Alfeu Monteiro assumiu o comando da Quinta Zona Aérea, em face de sua ligação com o esquema organizado pelo senhor Leonel Brizola”.

O “esquema organizado pelo Sr. Leonel Brizola” era a Rede da Legalidade, para garantir a posse de João Goulart na Presidência da República em agosto/setembro de 1961, diante da disposição golpista dos ministros militares Odylio Denis (do Exército, então dito da Guerra), Sílvio Heck (Marinha) e Grum Moss (Aeronáutica) para impedi-la. De fato, o tenente-coronel acabou tendo participação decisiva nos acontecimentos.

No torvelinho político que se seguiu à inesperada renúncia de Jânio, a obstinação do governador do Rio Grande do Sul em não se dobrar diante da tentativa de golpe exasperou o comando militar em Brasília. Forçado pelas circunstâncias e por vários de seus comandados, entre eles os generais Pery Bevilacqua e Oromar Osório, o comandante do IIIº Exército, general Machado Lopes, decidiu também se insurgir contra o golpe.

Nesse momento, o gabinete do Ministério da Guerra transmitiu ao general Machado Lopes a seguinte mensagem, às 6h 28 de agosto: “O IIIº Exército deve compelir imediatamente o sr.

Leonel Brizola a pôr termo à ação subversiva que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e concentração de tropas (…) Faça convergir sobre Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente, inclusive a 5ª DI, se necessário. Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário (…)”. (5a. DI, Divisão de Infantaria, assim chamada então, com sede em Curitiba, hoje integrando a 5a. Divisão do Exército).

Radioamadores captaram a mensagem. A senha definitiva para o ataque aéreo, que também chegou a ser transmitida era: “Tudo azul em Cumbica. Boa viagem”, porque os jatos da Base Aérea de Canoas, depois da missão, deveriam seguir para aquela base em São Paulo.

Em Canoas seguiram-se momentos indescritíveis de tensão. Alertados pelo capitão Alfredo Daudt, os sargentos da base aérea se insurgiram, decididos a impedir que os oficiais levantassem voo. Esses se dirigiram a um dos prédios para vestir os uniformes. A partir daí os relatos são muitos. Uns dizem que os pneus dos jatos foram esvaziados. Outros dão conta que os sargentos cercaram os oficiais no prédio, e que todos, de ambos os lados, dispunham de armamento pesado e estavam dispostos à luta.

Ainda outros que eles deram as mãos formando uma corrente para evitar que os oficiais pudessem embarcar nos jatos.

Os sargentos conseguiram enviar um jipe até o centro de Porto Alegre (naquele tempo o sistema de comunicações era muito precário) para pedir ajuda. O jipe quase foi virado por uma multidão enfurecida pela notícia da ameaça de bombardeio. Consta que um dos sargentos só conseguiu impedir o linchamento gritando que era parente de Brizola, o que não era verdade…

Os emissários conseguiram passar, e o general Machado Lopes enviou uma força-tarefa para assumir o controle da situação na Base Aérea. Foi feito um acordo: o comandante da base, brigadeiro Aureliano Passos, e os oficiais favoráveis ao golpe a abandonaram e foram para Cumbica. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista.

Ao assumir o comando da base, o tenente-coronel deu declarações no sentido de tranquilizar a opinião pública. Anunciou – o que confirmava fatos sabidos da véspera – que o brigadeiro Aureliano deixara a base com mais oficiais levando os jatos que seriam utilizados no bombardeio da cidade, em número de dez

 Alegava que isso afastava o perigo do ataque, e, além disso, negava a existência da ordem que a base, de fato, recebera: “Na realidade os oficiais, inclusive o comandante da Esquadrilha de Caças, estavam contrários à atitude para que a FAB bombardeasse o Palácio de Governo ou qualquer outro local”. Esse “qualquer outro local” seriam pelo menos as torres da Rádio Guaíba, base da Rede da Legalidade que o governo gaúcho já formara em escala nacional.

Li, tempo atrás, um depoimento do escritor mineiro Oswaldo França Júnior (1936-1989), que conheci pessoalmente no restaurante Dona Lucinha, em Belo Horizonte, onde tinha mesa fixa, sobre os acontecimentos na Base Aérea de Canoas, onde ele servia como oficial aviador.

No seu depoimento ele confirmava a ordem de bombardeio. Dizia que houvera uma intensa discussão entre os oficiais se a ordem deveria ser cumprida ou não. A decisão final da maioria dos oficiais foi positiva, e passaram a noite se preparando para o ataque. Este só não aconteceu devido à intervenção dos sargentos e dos oficiais legalistas. Oswaldo França Júnior acabaria cassado e expulso da Aeronáutica em 1964.

Entretanto, alguns dias depois, o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro daria nova entrevista ao mesmo jornal (o Jornal do Dia), em 3 de setembro, em que denunciava manobras dos ministros de Brasília para “desunir” as forças da Legalidade, segundo as quais ele não mais obedeceria à orientação prevalecente no Rio Grande do Sul. Diz o texto: “Trata-se de uma manobra do Ministério para tentar separar as forças do Rio Grande, Terceiro Exército, FAB e governo do Estado. Estamos indissoluvelmente unidos e reina harmonia nas forças da Legalidade”.

Essa harmonia não devia ser tanta assim. A própria notícia, mais adiante, dizia curiosamente que na Base Aérea de Canoas havia 216 sargentos, cabos e soldados prisioneiros de cerca de 30 oficiais. Ou seja, isso mostra que houvera, ao lado da negociação sobre o impedimento do bombardeio do centro de Porto Alegre, uma negociação formal sobre o destino das ordens e contraordens dadas, recebidas e de fato não cumpridas.

Mas de certo modo os aviões tinham cumprido a ordem recebida, ou seja, decolaram de Canoas e pousaram em Cumbica. Se não realizaram o bombardeio é porque não tinham bombas nas asas, impedidas de embarcar pelos suboficiais e pela presença da força-tarefa enviada pelo general Machado Lopes. Ao mesmo tempo, os suboficiais e praças rebelados permaneceram sob a custódia dos oficiais remanescentes.

Mantinha esse delicado equilíbrio a presença e o prestígio do tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro. Não deixava de ser uma saída conciliatória: tudo estava de acordo com os manuais, e dessa forma a carreira de ninguém seria prejudicada, é o que se pode concluir.

O fato é que a ordem de bombardeio houve, e só não se cumpriu graças à decisão contrária dos sargentos, dos suboficiais, e dos oficiais legalistas, logo a seguir amparada pela atitude do tenente-coronel, assumindo o comando da Base Aérea. O cumprimento da ordem teria consequências imprevisíveis: o Palácio Piratini, alvo do bombardeio, fica em local densamente povoado; nesta época já havia até alguns edifícios ao seu redor. A Praça da Matriz (oficialmente Marechal Deodoro), como a população ainda a chama, em frente ao Palácio, estava sempre cheia de povo, naqueles dias de mobilização. Haveria um morticínio, como o que houve em junho de 1955 em Buenos Aires, quando aviões da Marinha e da Aeronáutica bombardearam a Casa Rosada e outros prédios públicos numa tentativa de derrubar Perón.

3. Minha família morava na rua Demétrio Ribeiro, a quatro quadras do Palácio Piratini. Na manhã em que se espalhou a notícia do possível bombardeio presenciei cenas dignas de um documentário sobre a Segunda Guerra Mundial: famílias batendo em retirada pela rua, levando malas com roupas e outros pertences. Na noite que se seguiu, ainda sob a sombra da ameaça, nós mesmos fomos dormir no apartamento de uma amiga da família, muitas quadras mais distante.

A importância dos acontecimentos de Canoas foi atestada pelo fato de que na Base Aérea começaram as comemorações do Sete de Setembro seguinte, quando a crise da posse de Goulart já estava resolvida. Às 9 hs houve um desfile que homenageava as autoridades que para lá se deslocaram: o governador Brizola, o general Machado Lopes, o comandante da Brigada Militar, o arcebispo do Rio Grande do Sul. No fundo, os homenageados por tal deslocamento eram os praças, sargentos, suboficiais e oficiais legalistas da base. Nas fotos publicadas na imprensa, o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro tem lugar de destaque.

Neste momento o vice-presidente João Goulart já embarcara para Brasília, depois de chegar a Porto Alegre ao fim de uma longa viagem a partir da China, onde estava quando da renúncia de Jânio, com escala final em Montevidéu. A ida de João Goulart para a capital da República, depois da sua aceitação da emenda parlamentarista, também teve participação especial da FAB. Partidários do golpe montaram uma operação para derrubar o avião presidencial, a “Operação Mosquito”. Contrária a ela, e com a participação de sargentos e suboficiais de Brasília, montou-se uma “Operação Tática” destinada a impedir que aviadores golpistas pudessem cumprir aquela determinação.

A base da “Operação Tática” foi o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, de onde partiu o avião presidencial. Fizeram parte dela iniciativas como a de impedir que os demais aeroportos do caminho obtivessem informações sobre o plano de voo, e de divulgação de dados meteorológicos enganosos sobre o sul do Brasil, como a de que chuvas torrenciais impediam o sobrevoo de Porto Alegre. O comandante da “Operação Tática” foi o tenente Generoso Resende Lacerda, mas o responsável por todas as ordens, mais as mensagens enganosas para o resto do país, foi o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro.

Essa posição proeminente nos acontecimentos de 1961 valeu a ele algumas promoções a seguir. Duas são muito significativas. Chegou a ser piloto do avião presidencial, depois da posse de João Goulart. E foi nomeado para dirigir a Superintendência da Fronteira Sudoeste, que abrangia os estados sulinos mais o Estado do Mato Grosso (hoje, na região, Mato Grosso do Sul). Mas o tenente-coronel aviador não permaneceu nos cargos. Do primeiro não tenho informação de por que nem quando saiu.

Mas do segundo afastou-se em 20 de janeiro de 1963, enviando o seguinte telegrama às autoridades competentes: “Informo Vossência serei substituído breve Superintendência Fronteira Sudoeste devido imposição governador Leonel Brizola e presidente PTB Rio Grande do Sul o estrangeiro [sic] João Caruso. Motivo real não mencionado presidente Jango é que não sou político e assim jamais permitirei transformar órgão sob minha direção em cabide de emprego para cabos eleitorais que deverão agir próximas eleições para prefeito de Palegre e outros municípios do RGS. Adianto vossência que pessoalmente só tenho prejuízos naquela função. Esses prejuízos estavam sendo compensados tendo em vista possibilidades promover patrioticamente desenvolvimento socioeconômico área Fronteira Sudoeste, no menor espaço de tempo, com máxima economia, contando naturalmente cooperação governo objetivo e profícuo vossência e demais governadores, conforme poderão testemunhar elementos credenciados [n]esse Estado e outros compreendidos fronteira Sudoeste, que lá estiveram e presenciara[m] a minha orientação administrativa imprimida ao órgão. Lamento informar vossência esses fatos mas faço pretendendo ressalvar minha responsabilidade no caso e dar nome aos bois, para que o povo dos quatro estados, que fazem parte da área, não fique às escuras sobre o assunto. Sentindo não mais poder dedicar meus esforços nessa direção, despeço-me atenciosamente. Alfeu de Alcântara Monteiro, tenente-coronel aviador.

4. Pouco depois de deixar a superintendência, o tenente-coronel se envolveu numa luta de rua em Porto Alegre, ao ser interpelado por guardas de trânsito de forma que considerou inadequada. O episódio se passou às 23 h de um sábado, no mês de fevereiro, e acabou na Chefatura de Polícia, além de ser publicado com estardalhaço em jornais do dia seguinte.

Por esse tempo o tenente-coronel havia se separado da esposa e constituído nova família. A primeira foi residir no Rio. Mas ao longo de 1963 ele acabou reconsiderando sua situação.

Reconciliou-se com a primeira esposa, decidindo ambos voltar a morar juntos. Querendo seguir para o Rio, dirigiu-se para a Base Aérea de Canoas a fim de colher documentos e pertences que lá deixara. E foi onde estava quando começou o golpe, na madrugada de 1º de abril, depondo o presidente João Goulart. O comandante da base, brigadeiro Otelo da Rocha Ferraz, deixou o local depois de ser nomeado novo comandante pelos golpistas, o brigadeiro Nelson Lavanère Wanderely. Mas os sargentos e suboficiais, inconformados, se rebelaram. E junto com eles estava o seu antigo Comandante da Legalidade.

É difícil saber exatamente o que aconteceu a seguir. Lavanère Wanderley se apresentou na base acompanhado pelo coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa. Por volta das 21h do sábado, 4 de abril de 1964, reuniram-se numa sala do comando com o tenente-coronel.

Estavam apenas os três. Segundo informações da imprensa, houve um tiroteio. A versão divulgada estabelecia que, ao receber ordem de prisão, ou de se apresentar no Rio de Janeiro, o tenente-coronel Alfeu se insurgiu, sacou da arma, fez cinco disparos contra o brigadeiro, à queima-roupa, acertando um ou dois de raspão. No futuro, ao ser empossado como ministro da Aeronáutica, o brigadeiro tinha, segundo o ministro que lhe transmitia o cargo, a cicatriz de um ferimento de raspão no olho. Uma versão diz que “elementos de segurança” acorreram e alvejaram o tenente-coronel.

Outra, que foi a versão levada a julgamento, estabeleceu que o autor dos disparos contra o tenente-coronel foi o coronel Hipólito. A nota oficial distribuída pela Aeronáutica em 5 de abril dizia que o tenente-coronel fora morto por “circunstante”. De um modo geral, os comentários ressaltavam que o oficial morto era de “tendências brizzolistas” (sic). Numa circunstância, pelo menos, foi chamado de “fanático”.

Tempos depois, o coronel Hipólito foi a julgamento no Rio de Janeiro, sendo absolvido. Segundo o noticiário, a alegação da defesa foi a de legítima defesa de terceiros. O caso é até hoje mencionado em publicações de todos os tipos, impressas ou na internet, desde as que arrolam as vítimas da ditadura àquelas que fazem a apologia do golpe e acusam o tenente-coronel de ter atentado contra a vida do brigadeiro Lavanère. As versões extremas falam em assassinato com 16 tiros de metralhadora, ou com um único tiro, disparado pelo coronel Hipólito em defesa do brigadeiro. Sobre o acontecimento, obtive depoimento da filha do tenente-coronel, Malena Monteiro.

Conversamos em 22 de maio de 1983, em Brasília, depois de uma correspondência que começou em 1980. Caracterizou seu pai como um homem impulsivo, algo autoritário e ao mesmo tempo carinhoso, dividido em casa entre manter a ordem e cuidar das meias, dos sapatos e das roupas dos filhos. Era nacionalista, não de esquerda. Disse também que por ocasião da morte do pai a família recebeu cinco passagens para ir do Rio a Porto Alegre da Varig, mas chegaram atrasados ao enterro, que se deu no dia 5 de abril, no cemitério de São Miguel e Almas, com honras militares. Depois, no Rio, foram perseguidos e ameaçados por oficiais da Aeronáutica, o que fez sua mãe mudar-se para a Inglaterra.

No dia da morte do pai ela disse terem os três, Lavanère, Alfeu e Hipólito, se dirigido para um gabinete do QG. Fecharam-se lá dentro, e depois de uma discussão ocorreram os disparos.

O tenente-coronel foi atingido por oito disparos, sendo quatro pelas costas e quatro pela frente.

Como os disparos estavam em linha ascendente, suspeitou-se de uma metralhadora, mas é verdade que uma pistola automática faria o mesmo efeito. Supõe-se que ao ser atingido pelas costas ele tenha se virado, e recebido novos disparos pela frente. Um gesto desses levanta a hipótese de que o brigadeiro Lavanère tenha sido atingido de raspão por uma das balas disparadas pelo coronel Hipólito. Neste caso, o tenente-coronel Alfeu não atirou primeiro, e se chegou a sacar a arma foi para se defender, ao contrário da versão oficial, em que ele foi o agressor.

Há uma versão dos acontecimentos que afirma ter o tenente-coronel apenas ameaçado o brigadeiro com sua arma, e que com a chegada do coronel Hipólito e outros assessores começou “uma troca de tiros”.

Mas, segundo Malena, quem acorreu de fora para dentro foi o ajudante de ordens do tenente-coronel. Ele, ao entrar, deparou-se com a cena consumada. Disse-me que este rapaz também foi perseguido pelos vencedores do golpe, bem como vários sargentos e oficiais da base, entre eles o capitão Alfredo Daudt, que estava presente na base no momento do tiroteio.

Seu pai foi levado para o Hospital do Pronto Socorro em Porto Alegre, onde chegou com vida e ainda sobreviveu por meia hora. Não falou sobre os acontecimentos, só sobre os filhos. Ela disse que a família soube de alguns desses fatos por uma freira, que estava presente no hospital, e que o médico que atendeu seu pai resolveu calar-se, por medo das consequências. Na ocasião em que a entrevistei, o coronel Hipólito já tinha morrido. O brigadeiro Lavanère também, ou morreu algum tempo depois. Em nenhum momento, em nenhum documento, encontrei referência a exame de balística nas armas presentes.

O que se passou exatamente naquela sala? Jamais se saberá. Ela virou uma caixa-preta. Só poderia se saber com exames de balística nessa altura impossíveis, com o exame da sala em busca de possíveis vestígios que tenham ficado depois de tantos anos, com a exumação dos restos mortais do tenente-coronel. O depoimento de Malena, a partir do da freira e do ajudante de ordens, é consistente.

A versão de que seu pai disparou cinco tiros a queima-roupa e errou todos é inverossímil.

Também é a de que tenha sido atingido por um único tiro, pois ainda foi transportado para o Hospital do Pronto Socorro em Porto Alegre e lá sobreviveu por meia hora, e falando. É certo mesmo que tenha sido atingido várias vezes e tenha morrido em consequência da hemorragia e da falência de órgãos atingidos.

A versão de que foi atingido por “dezesseis tiros” cabe na de que levou oito, pois como se sabe, um tiro nas condições em que estavam, atravessa o corpo. Se o tenente-coronel foi atingido por oito, teria 16 orifícios pelo corpo. E é possível mesmo que uma das balas disparadas pelo coronel Hipólito tenha ferido o brigadeiro, saindo do corpo do tenente-coronel ou passando-lhe ao lado, enquanto este se virava. As versões divulgadas oficial ou oficiosamente se desmentem na sua multiplicidade.

Mas o importante a ressaltar é que o Golpe de 64 criou esse tipo de caixa-preta na vida de todo mundo. Sempre há algo que é difícil ou mesmo impossível de decifrar completamente. No caso, essa caixa-preta se refere à vida de um homem com quem a cidade e o povo de Porto Alegre têm uma dívida imorredoura. Ele, os oficiais e os sargentos legalistas salvaram a cidade de um bombardeio criminoso.

Em dezembro de 2017 o juiz Fábio Hassan Ismael, da 2a. Vara Federal do município de Canoas, em processo aberto a pedido do Ministério Público, determinou a retirada da expressão “legítima defesa” do obituário do tenente-coronel. Ficou estabelecido que ele foi “executado”, ou seja, assassinado.

Depoimento de outras testemunhas auriculares, presentes perto da sala onde se deu o assassinato, registraram terem ouvido, antes de mais nada, disparos de uma arma pesada, que seria a do coronel Hipólito. O tenente-coronel dispunha de uma pistola de calibre menor, o que corrobora a hipótese de assassinato.

Já em 2015 decisão da Câmara de Vereadores da cidade dera o nome dele a uma praça junto da avenida Getúlio Vargas, com a presença de um busto em sua homenagem. A praça que não há em Porto Alegre acabou sendo criada na vizinha Canoas.

Em seu depoimento, Malena ressaltou que seu pai gostava de voar. Foi daí que pensei ser uma praça homenagem adequada a ele, já que elas costumam abrigar muitos pássaros, e estes também gostam de voar. De resto, só sei dizer que quando pedi a ela que me dissesse como era seu pai, ela teve um olhar que eu gostaria que vissem no rosto de minhas filhas, se a elas um dia lhes perguntarem qualquer coisa sobre mim.


 

Versão corrigida e atualizada de artigo publicado no livro Crónicas do Mundo ao Revés (Boitempo Editorial, 2011), republicado em 02/04/2014, no Blogue do Velho Mundo – Rede Brasil Atual, e no site aterraeredonda, em 29/03/2024.

 

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

 

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Os Estados Unidos, a Europa e o “caso Groenlândia”. Por Flávio Aguiar

 Os Estados Unidos, a Europa e o “caso Groenlândia”. Por Flávio Aguiar



Reação à cobiça do império


Os Estados Unidos, a Europa e o “caso Groenlândia”. Flavio Aguiar “Yankees go home”, dizia a faixa em frente ao consulado dos Estados Unidos. Erguida por um grupo de manifestantes, ela definia o espírito político do evento. O grupo não era muito grande, mas também não era pequeno. E estavam visivelmente irados.

 Não, não se trata dos anos 60 do século passado, nem de uma cidade latino-americana. Os irados manifestantes eram cidadãos dinamarqueses, pertencentes à União Europeia. O local era Nuuk, a capital da Groenlândia, e o grupo protestava contra a futura visita do vice-presidente norte-americano, James David Vance, a uma base militar e aeroespacial dos Estados Unidos em seu território.

A visita, que se realizou na sexta-feira da semana passada, 28 de março, coroou uma série de atritos diplomáticos envolvendo a Washington de Donald Trump, o governo de Copenhague e o governo do território autônomo da Groenlândia, que faz parte da Dinamarca. Durante a estada na base, Vance fez um pronunciamento reafirmando o interesse de Washington na ilha e desqualificando o governo dinamarquês, acusando-o de negligência em relação aos habitantes dela.

Dias antes da visita, o presidente Trump já apimentara os atritos, reiterando mais uma vez que os Estados Unidos “tomarão” a Groenlândia, de um jeito ou de outro.

Afinal, o que é a Groenlândia? Para começo de conversa, ela é uma das maiores ilhas do globo terrestre, e também a mais gelada. Situada entre o círculo polar e o próprio Polo Norte, a maior parte de seu território passa quase o ano inteiro sob temperaturas negativas extremas e por vários meses com direito a meia hora de luz por dia, quando muito. Tem pouco menos de 60 mil habitantes, na maior parte da etnia e cultura Inuite, também chamados de esquimós, palavra que eles consideram pejorativa.

Acontece que a ilha é rica em minérios, gás e petróleo. Tem uma posição estratégica entre os continentes europeu e norte-americano, e o oceano Ártico, sendo que do outro lado deste está nada mais nada menos do que a Rússia, a antiga União Soviética, no passado a arqui-inimiga do capitalismo do Bloco Ocidental liderado pelos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Os Inuites e outros povos da região a ocuparam desde séculos antes da era cristã. A partir do século X desta era ela passou a ser visitada regularmente por europeus, e terminou como posse dos reinos unidos da Noruega e da Dinamarca. Quando estes se separaram, no século XIX, ela ficou com a Dinamarca que, depois da Segunda Guerra, lhe deu o status de território autônomo, embora a sua moeda seja a coroa dinamarquesa e seu rei, o da Dinamarca, hoje o sorridente Frederico X. E tanto no final do século XIX como em meados do século XX os Estados Unidos já pensaram em comprar a ilha. Hoje Trump ameaça ocupá-la, se não conseguir comprá-la.

O fato é que as ameaças de Trump provocaram reações negativas tanto por parte de Copenhague quanto por parte dos groenlandeses, ciosos de sua autonomia.

Vance e sua esposa planejavam fazer uma visita oficial e ampla à ilha, acompanhados por uma comitiva de secretários de estado. Diante da reação negativa e do risco de manifestações hostis nas ruas, o casal encolheu a visita, limitando-a à base norte-americana de Pituffik, no extremo norte da ilha.

O interesse dos Estados Unidos é tanto econômico quanto militar. Consideram a ilha estratégica para detectar ameaças que venham pelo Ártico. O interesse econômico cresce com o aquecimento global, que deve facilitar a navegação com a redução da calota de gelo.

Mas para os groenlandeses uma ocupação sob Trump seria um desastre. Afinal, nos Estados Unidos de hoje eles seriam considerados como “índios”, ao invés de cidadãos como os outros, apesar das promessas de Vance em contrário.

Além disto, a Groenlândia tem uma legislação considerada avançadíssima em matéria de direitos humanos, sobretudo em relação a pessoas não heterossexuais, o que Trump abomina e detesta.

Consta que ao descer na base, Vance declarou algo assim: “God, it’s cold like shit”, o que equivale a dizer “Meu Deus, está um frio do cão”, numa tradução amena. Não se sabe se ele se referia apenas à temperatura ou também à recepção gelada por parte dos cidadãos da Groenlândia.

 

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

 

 

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O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui. Por Flávio Aguiar

 

O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui. Por Flávio Aguiar


"Ainda estou aqui"/ Divulgação

 

Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles

“Nem sempre o que é, parece; mas o que parece seguramente é”. “As aparências enganam”.

(Ditados brasileiros, aparentemente contraditórios).

 

1.

Os dois ditados da epígrafe acima se aplicam ao filme de Walter Salles, e não são contraditórios. Pelo contrário. Como sempre, no mundo dos ditados se encontram tanto uma afirmativa quanto sua negação. “Devagar se vai ao longe”, diz um; “quem espera, desespera”, diz o outro, logo ao lado. A “verdade” não pertence nem a um nem ao outro, separadamente. A sabedoria está em jogar com seu equilíbrio, reconhecendo quando um se aplica, e quando o outro.

Assim acontece com o filme, que faz um jogo alternado ou simultâneo com os claros e os escuros. E como se verá, a clareza oculta e revela seu lado escuro; enquanto o escuro esconde e revela a clareza do que as aparências luminosas ocultam.

Este jogo começa pelo título, tomado do livro de Marcelo Rubens Paiva (que não li, esclareço). O “ainda estou aqui” se refere a quem deixou de estar ali, mas cuja ausência afirma a presença de sua denúncia.

Faço uma anotação prévia. Li muitos comentários – pertinentes e relevantes – sobre o impacto político do filme, tanto como revisão do passado, quanto como intervenção em nosso complexo presente, em que pululam no Brasil e no mundo inteiro os saudosos dos fascismos e das ditaduras. Também li muitos elogios, todos mais que merecidos, à atuação da premiada Fernanda Torres e também a de sua mãe, Fernanda Montenegro, nos momentos finais do filme, como uma Eunice Paiva acometida de Alzheimer. Mas muito pouco – quase nada, na verdade – li sobre o filme em si e sua linguagem cinematográfica. É o que vou abordar aqui, pelo menos em parte.

 

2.

Advirto que só assisti o filme uma única vez. Portanto, tudo aqui está subjudice de minha memória, onde se embaralham as imagens do filme com as lembranças dos tempos que ele evoca, que também vivi dramaticamente.

O que mais me marcou ao ver o filme foi o que lá no título e no começo deste artigo chamei de jogo claro/escuro.

Uma constante no filme é a convivência na tela de imagens claras com imagens escuras. Estas podem estar no pano de fundo daquelas, ou ao lado. Por exemplo, nos muitos closes dos rostos dos personagens, em que ou eles aparecem iluminados contra um fundo escuro ou ao lado de um canto escurecido da tela.

Ou o jogo claro/escuro se dá por alternância. Por exemplo, entre as cenas iluminadas da paisagem carioca e as cenas escuras dos porões da ditadura, isto é, o cárcere dos interrogatórios, com seus sons atrozes das torturas. Neste particular, penso que o filme é muito feliz, denunciando a violência sem recorrer a exageros de ketchup e contusões arroxeadas de um brutalismo exacerbado.

Ou aquele jogo se dá ainda no momento em que os rostos são recobertos pelo escuro dos capuzes e por aí vai.

Ressalto que neste contexto “escuridão” não se refere a uma cor, sequer a uma ausência de cor, na definição clássica. Denota, isto sim, a incapacidade ou a impossibilidade de “ver”, como acontece com as pessoas encapuzadas.

Ocorre que as cenas iluminadas por vezes são repletas de escuros. Enquanto que os escuros revelam algo que se esconde por detrás das iluminações na superfície.

E o filme começa por uma destas superfícies luminosas. Depois de perder seu mandato como deputado, cassado que foi pelo Ato Institucional no. 1, Rubens Paiva tenta reorganizar-se numa vida “normal” com a família, no Rio de Janeiro. Mas como presságios sombrios do que está por vir, caminhões cheios de militares e blindados rondam as ruas e os passos dos personagens.

Estes lampejos luminosos terminam de vez quando os militares/policiais invadem a casa da família. Enquanto alguns levam embora – e para sempre – o ex-deputado, os que ficam na casa, num gesto simbólico, fecham as cortinas das janelas: o lado escuro desce sobre todos.

Eunice e a filha terminam sendo levadas para o calabouço, com a escuridão dos capuzes tapando seus rostos.

E seguem-se os dias no escuro do cárcere, com os interrogatórios repetitivos, extenuantes, humilhantes, desconcertantes, absurdos.

E é nesta sombra escura da prisão que se revela a clareza da ditadura: diante dela, e para ela, não há inocência nem inocentes. Trata-se de extinguir a luz própria das pessoas-alvos, fazendo-as confessar o que sabem e até o que não sabem, obrigando-as a gravitar em torno do luto a que estão condenadas: o luto pela perda da liberdade.

Mas no caso de Eunice Paiva há também o duplo luto pela perda do marido, de que gradualmente toma consciência, e da perda de seu corpo, desaparecido nas entranhas da monstruosidade. E se instala a torpe escuridão da mentira. Paiva “sumiu”, foi “sequestrado por um grupo guerrilheiro”, “nunca passou por aqui”, nas versões oficiais.

Eunice termina por tomar conhecimento também da vida secreta de seu marido, por detrás da luminosa “normalidade” que a ocultava. Ele e alguns amigos ajudavam clandestinamente gente perseguida pela ditadura, levando e trazendo informações, recebendo e distribuindo correspondências, facilitando a fuga de pessoas ou propiciando-lhes esconderijos. Por isto ele foi preso, torturado e assassinado.

Com o passar do tempo, colhendo palavras e impressões aqui e ali, vem-lhe a certeza de que o marido foi morto. Mas a clareza dolorida desta revelação segue turvada pela escura impossibilidade de “ver” o seu corpo, sequestrado novamente pela torpe decisão, por parte de seus algozes, de além de cometer o crime, cometer o segundo crime de impedir o seu reconhecimento.

 

3.

Com este jogo de claro/escuro, o filme adquire uma dimensão metafórica. Quando Eunice e sua filha são encapuzadas, é o Brasil inteiro que é encapuzado. E naquela sala dos interrogatórios o jogo se completa: os interrogadores, com seus álbuns de fotografias, acuam Eunice, que, de fato, nada sabe das atividades de seu marido depois de sua cassação, ressalvando-se que para a ditadura preservar vidas de pessoas perseguidas era um “crime lesa-pátria”.

Mas a câmera do filme, por sua vez, acua o interrogador, com a brilhante atuação do ator, expondo sua arrogância estrutural, o fato de que, como na Inquisição histórica, a ré (porque a delegacia se toga de tribunal e se transubstancia em cadafalso) é julgada de antemão por um crime que não sabe qual foi porque não tem o direito de saber. O único “direito” que lhe resta é o de confessar o crime que não cometeu.

A metáfora do encapuzamento retorna, mutatis mutandis, no final do filme. Eunice/Fernanda Montenegro olha pasma, acometida de Alzheimer, para uma tela de televisão, enquanto o restante da família confraterniza em almoço talvez domingueiro.

Sua imagem, novamente, vale como metáfora do país inteiro, este Brasil opresso por políticas de promoção do esquecimento, patrocinadas por mídias corporativas que conspiraram pela ditadura, a apoiaram e estigmatizaram seus opositores como terroristas, ou de agências repressivas, sejam privadas ou estatais. A reportagem televisiva sobre a ditadura equivale a um mea culpa quae sera tamen, ainda que tardio, embora tenha seus méritos.

Envolta na escuridão do Alzheimer, Eunice/Fernanda reconhece, com um tímido e delicado sorriso (genialidade de direção, interpretação e câmera) , a imagem do marido sequestrado, assassinado e de corpo desaparecido.

Este gestus da imagem contém uma revelação profunda. Promovido pela ditadura e por seus adoradores satânicos de hoje, o esquecimento parece ser uma vocação do Brasil. Não é. A memória resiste, mesmo nos delicados melindres das nebulosidades.

No começo dos anos 1970, quando aconteceram o sequestro e o assassinato de Rubens Paiva, grassavam no Brasil os primeiros momentos do governo do general Emílio Médici, catapultado em sua aceitação por uma burguesia satisfeita com a repressão e uma classe média seduzida pelos acenos da casa própria e do segundo ou terceiro carros, no auto-proclamado “milagre brasileiro”.

Eram tempos  a um tempo eufóricos e sinistros, feéricos e de escuridão total. Acreditavam os ditadores e seus asseclas e acreditávamos nós, da resistência esmagada, torturada, assassinada, exilada ou silenciada, que nada, nunca mais, aconteceria de novo no país. A mesma crença que hoje os adoradores da ditadura e dos fascismos renascentes querem nos impingir.

Felizmente, eles estavam, e nós estávamos, e eles hoje ainda estão completamente errados. E este filme, com sua linguagem sofisticada e transparente, voejando sobre escuridões e apagões da memória, é uma prova disto.

 

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

Referência


Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.

 

 

 

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A Europa se prepara para a guerra. Por Flávio Aguiar

  

A Europa se prepara para a guerra. Por Flávio Aguiar


A guerra como grande negócio.

 

Há sinais de fumaça no horizonte de que os países europeus preparam-se para a guerra. Que guerra? Contra a Rússia.

Tomemos a Alemanha como exemplo.

Primeiro exemplo: a Volkswagen, empresa que há quase um século está vinculada à identidade nacional alemã, vai fechar 3 de suas fábricas, devido à crise econômica que assola o país e o continente. Mas há uma empresa interessada na compra das 3. Qual? a Rheinmetall, uma das principais produtoras de armamentos na Alemanha. Por quê? Porque seus diretores prevêem uma margem de lucro considerável, graças ao anúncio, por parte da presidenta da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, de que a União vai investir 800 bilhões de euros em armamentos para incrementar a defesa do continente.

Exemplo 2: paradoxalmente, o diretor de uma das agências do serviço secreto alemão, Bruno Kahl, do Bundesnachrichtendienst, manifestou, em entrevista à Deutsche Welle, em 03/03/2025, a preocupação com a possibilidade de que a guerra na Ucrânia tenha um “fim rápido”. Por quê? Segundo ele, porque isto liberaria a Rússia para ameaçar o restante da Europa antes de 2029 ou 2030, isto é, antes de que os outros países do continente estejam preparados para enfrentar o “inimigo”. A afirmativa, que provocou indignação em Kiev, mostra que há uma estratégia pensada a respeito da possibilidade e previsão da guerra.

E a indústria da guerra parece ser um dos vetores mais importantes para a recuperação econômica da Alemanha e do continente.

A Alemanha ocupa o quinto lugar entre os maiores exportadores de armas do mundo. São eles, em ordem crescente, segundo o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, sediado em Estocolmo: Israel, Coreia do Sul, Espanha, Reino Unido, Alemanha, China, França e Rússia praticamente empatadas, e Estados Unidos.

Há duas enormes discrepâncias entre estes países. Primeira: de Israel à China, o percentual de participação nas exportações mundiais de armas fica em um dígito, de 1 a 5%. Com Rússia e França, o índice dá um salto, para 10,5 e 10,9%, respectivamente, sendo que a França superou a Rússia porque as exportações desta caíram, graças à guerra com a Ucrânia e os aliados que a apoiam.

Com os Estados Unidos, o salto é maior ainda: o índice de sua participação é de 40% do mercado mundial.

Segunda discrepância: nos últimos dez anos o valor destas exportações caiu, em oito dos dez países. As duas grandes exceções são a França e os Estados Unidos. No caso destes, o aumento foi de 24%.

Das 100 maiores empresas privadas de produção de armamentos, 41 são norte-americanas, e 27 europeias, excluindo-se a Rússia, que tem apenas 2 empresas entre elas. Invertendo-se a perspectiva, verifica-se que o país que mais importa armas no mundo é a Ucrânia, com quase 9% do setor. E seus principais fornecedores são os Estados Unidos, a Alemanha e a Polônia.

Assinale-se uma curiosidade: nenhum país da América Latina figura entre os principais exportadores ou importadores de armas.

Aqueles números acima mostram que, como no passado, infelizmente a guerra ou sua perspectiva permanecem sendo um bom negócio para afastar o fantasma de recessões econômicas para quem produza armas, não para quem suporte seus efeitos.

Como afirmei no começo, há sinais de fumaça no horizonte apontando na direção de uma guerra. Sabe-se que onde há fumaça, há fogo. Sempre que os países da Europa prepararam-se para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”.

 

 

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

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Europa: 50 países em busca de um continente. Por Flávio Aguiar

 

Europa: 50 países em busca de um continente. Por Flávio Aguiar

 

A vassalagem europeia.

 

Ao lado de ser um território com mapa e limites geográficos, durante séculos a Europa foi a fonte de um discurso múltiplo que se debruçava sobre o mundo e sobre ou sob o qual o mundo se debruçava.

Um discurso múltiplo: o significado e alcance desta expressão é, em si mesmo, múltiplo. Por exemplo, os discursos políticos emanados da “voz europeia” compreendem desde o absolutismo monárquico dos séculos XVII e XVIII às teorias e práxis rebeldes do Iluminismo e do Marxismo revolucionários.

Mais que qualquer outro continente, a Europa disseminou línguas pelo mundo. Graças às grandes navegações e ao colonialismo, as línguas geograficamente mais oficialmente espraiadas pelo mundo são de origem europeia: inglês, português, francês e espanhol.

A Europa e os europeus não só dialogaram com e pelo mundo; também impuseram o seu diálogo interno pelo mundo inteiro, durante séculos. E foi o berço clássico de algo muito complexo, chamado de “Ocidente”, “Cultura ou Civilização Ocidental”. O último rebento deste autêntico rio de conceitos foi o chamado “Bloco Ocidental”, nascido logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, ainda que desta vez sob a liderança dos Estados Unidos. Mas que são estes, senão o rebento mais poderoso do colonialismo britânico?

Além disto, a Europa foi a fonte das duas únicas guerras da história humana que ganharam o adjetivo de “mundiais”. Diante de tal currículo fica ridículo o afã norte-americano de chamar suas disputas esportivas nacionais de “World Series”, bem como o de chamar o seu país, por maior e mais poderoso que seja, de “America”. Ou de criar um “Golfo da América” onde existe um Golfo do México.

O chamado Bloco Ocidental e seu principal braço armado coletivo, a OTAN, ganharam a Guerra Fria, derrotando sobretudo a finada União Soviética, que desmoronou. A OTAN começou a estender seu domínio de ação ao antigo Leste Europeu, bombardeando forças que considerasse inimigas, no Norte da África e no Oriente Médio, destruindo governos e países que não fossem de seu agrado.

abriu caminho para guerras na Geórgia e na Ucrânia, atraindo a Rússia para rinhas que poderiam tornar-se armadilhas para Moscou. Mas de repente, não mais que de repente, o Bloco Ocidental tremeu, e visivelmente rachou. Quem conseguiu esta proeza não foi algum regime comunista. Afinal, o comunismo hoje, além de nos formigueiros e nas colmeias, sobrevive apenas em verdadeiras reservas ecológicas, Cuba e a Coreia do Norte. Não me venham dizer que a República Popular da China ainda é comunista, embora não seja neoliberal nem detenha um capitalismo clássico.

O autor desta proeza foi um político norte-americano, o presidente dos Estados Unidos, espinafrando em pleno Salão Oval da Casa Branca, com ajuda de seu vice, o antigo aliado preferencial, seu colega da Ucrânia, ao mesmo tempo em que lhe apresentava a fatura pela ajuda militar prestada sob a forma de cessão das terras raras daquele país destruído por uma guerra terceirizada.

A consequência disto foi a constatação de que quem de fato caiu na armadilha da guerra foi a Europa. Neste continente acelerou-se a corrida armamentista que já estava em curso e instalou-se a balbúrdia costumeira nos agrupamentos coletivos que se descobrem isolados, falando uns para os outros, sem audiência no resto do mundo.

Este foi o presente que Trump entregou ao continente europeu e sua principal porta-voz, a União Europeia, bem como a matriz criadora dos Estados Unidos, o antigo Império Britânico, que tem hoje sua City financeira transformada numa das maiores agências de lavagem de dinheiro no mundo, tanto que esta tem o apelido na mídia londrina de “Laundromat”. A Europa, com a exclusão da Rússia de seu plantel político-geográfico, ficou pendurada no pincel de uma guerra que poderia ter contribuído para evitar, se permanecesse fiel aos acordos de Minsk sobre a Ucrânia. Esta Europa, que se encontra carente de lideranças expressivas no cenário geopolítico, cuja União se vê assediada pelas propostas xenófobas de suas extremas-direitas, insufladas por assessores do ocupante da Casa Branca e contaminando as agendas de quase todos os demais partidos, inclusive alguns à esquerda, como o BSW alemão, ou os Verdes em todo o continente.

Em todos os recantos europeus ouve-se, ora em surdina, ora em bel-canto, o refrão de que os países do continente se preparam para uma guerra. Ora se fala numa “guerra contra a Rússia”, versão perigosa, mas ainda em lá menor, ora da versão em dó maior que se lança no espaço como a perspectiva de uma “Terceira Guerra Mundial”.

Houve até um político alemão, dos do grupo da surdina, que advertiu não ser uma boa alternativa o rápido fim da guerra na Ucrânia, pois isto liberaria Moscou, na visão dele, para almejar outros alvos, antes que seu país e os demais do continente, estivessem preparados para o conflito, o que deveria acontecer lá por 2030.

Confirmando-se esta visão, ela comprovaria que a Ucrânia merece o título de “bucha de canhão” do século XXI, uma espécie de Álamo europeu, segundo a mitologia norte-americana de que os defensores daquela fortaleza texana se sacrificaram dando tempo a Sam Houston para se preparar na luta afinal vitoriosa contra Santa Anna. Um destino glorioso na mitologia e cruel na realidade.

Este quadro, na verdade soturno e trágico, sugere a ideia de que os líderes europeus estão forjando nova versão de conhecido ditado brasileiro: estariam na base do “não vamos ver como é que está para não ver como é que fica”.

Esclareço: desde a conversa catastrófica no Salão Oval da Casa Branca instalou-se um clima de franca rebeldia na retórica dos políticos da União Europeia e da Europa de um modo geral. Vocifera-se uma rebeldia armamentista contra Trump pelo “abandono” da Ucrânia em favor de uma aproximação com Putin. Promete-se o rearmamento da Europa, com investimentos da ordem de quase um trilhão de euros no militarismo continental (150 bilhões de imediato), incluindo a Ucrânia, transformada em bastião avançado do… bem do quê, mesmo, se já não dia para falar em Bloco Ocidental, pelo menos do mesmo jeito que se falava antes.

Acontece que os Estados Unidos são o maior exportador de armamentos do mundo, com uma quota de 43% do setor entre 2020 e 2024, contra 35% entre 2015 e 2019. Os dados são de um relatório do Instituto Internacional de Investigação para a Paz. com sede em Estocolmo. Os dados foram divulgados por reportagem da CNN portuguesa em 10/03/2025 (“A América é o maior exportad0r de armas do mundo. A Europa devia saber”).

Ainda segundo este relatório, nos últimos cinco anos quase dois terços das armas importadas pelos países europeus vêm dos Estados Unidos, contra pouco mais da metade entre 2015 e 2019.

Fala-se em reforçar a produção armamentista da Europa. Entretanto, isto vai levar tempo. No interregno, a Europa estará, na verdade, sob a cortina de fumaça da rebeldia, cumprindo as ordens de Trump e ajudando a sua proposta de “Make America Great Again”. O que comprova que nos diálogos geopolíticos as valsas vienenses, as lieder alemãs, a chanson francesa, a tarantella italiana, os madrigais britânicos, etc., estarão de vez sendo encobertos pelo novo rockão bate-estaca da Casa Branca.

 

 

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Fagulha Entrevista – Juliana Cardoso – Deputada Federal - PT-SP

 

Fagulha Entrevista – Juliana Cardoso – Deputada Federal - PT-SP

 

Fagulha Entrevista – Juliana Cardoso

Deputada Federal – PT-SP



Entrevista ao vivo - 07/03/2025, sexta-feira, às 18h

 

Fagulha Entrevista – Os desafios de São Paulo e do Brasil

 

 

Fagulha Entrevista

Juliana Cardoso

Os desafios de São Paulo e do Brasil

 

Entrevista ao vivo - 07/03/2025, sexta-feira, às 18h

 

 

 

 

Fagulha Entrevista - Política nacional

 

Entrevista Juliana Cardoso (Deputada Federal – PT/SP)

para dialogar sobre as principais questões de São Paulo e do Brasil.

 

 

TEMAS

Os desafios de São Paulo e do Brasil: 

Análise geral sobre a situação atual da cidade de São Paulo;

A truculência contra a cultura (demolições e outros absurdos;

Propostas para enfrentar esses retrocessos e um balanço do Seminário sobre Direitos Humanos (encaminhamentos, sugestões elaboradas etc.);

 

E demais questões enviadas pelos/as internautas.

 

 

*Juliana Cardoso é afro-indígena, nasceu, cresceu e mora na periferia da zona Leste da capital paulista. Estudou em escola pública e iniciou sua militância muito jovem, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), junto à Igreja Católica. Formada em gestão pública, foi eleita aos 27 anos para a Câmara Municipal de São Paulo, cargo para o qual foi reconduzida mais três vezes pelo reconhecimento da construção de um mandato popular na luta pela defesa dos Direitos Humanos, das mulheres, do SUS, da Assistência Social, da moradia, do ECA, do movimento LGBTQIA+, da cultura e da educação pública, da igualdade racial e dos imigrantes, além do povo indígena. No pleito de 2022, Juliana Cardoso foi eleita deputada federal com 125.517 votos.

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