Ruggero Jacobbi e “O último O'Neill”. Por Maria Sílvia Betti

 

Ruggero Jacobbi e “O último O'Neill”. Por Maria Sílvia Betti 



Ruggero Jacobbi e Eugene O'Neill



Parte I

 

Em 22 de fevereiro de 1958 o Suplemento Literário do jornal “O Estado de São Paulo” publicou, em sua seção dedicada ao Teatro, o artigo “O último O’Neill”, do diretor, professor, tradutor, crítico e teórico teatral Ruggero Jacobbi. O tema era a peça “Long day’s journey into night” (“Longa jornada do dia noite adentro”), último trabalho do dramaturgo.

Ruggero Jacobbi, intelectual italiano de múltiplos talentos, tinha chegado ao Brasil em 1946, e tinha já, ao escrever esse artigo, trabalhado com algumas das companhias e das personalidades artísticas mais significativas para a modernização teatral do país.

Seu interesse pela dramaturgia de Eugene O’Neill [1888-1953] vinha de muito antes: em 1950 ele havia dirigido pioneiramente no Brasil a trilogia trágica “Electra e os fantasmas” (“Mourning becomes Electra”, de 1933) com a pequena companhia que tinha criado em São Paulo com a atriz Madalena Nicol.

Em “O último O’Neill”, Jacobbi comenta a primeira encenação de “Long day’s journey into night” realizada na Suécia em 1956, com cinco horas de duração, e cita observações do diretor do espetáculo sobre a afinidade e a admiração que ligavam O’Neill ao dramaturgo August Strindberg.

 

O’Neill desejava que a peça fosse representada vinte e cinco anos depois de sua morte. Mas o diretor sueco Karl Ragnar Gierow entrou em contacto com a viúva do escritor, Carlota Monterrey O’Neill e obteve a autorização para 1956. Os ensaios duraram sessenta dias seguidos. O diretor declarou que, durante todo esse tempo, tinha constantemente nos ouvidos o leit motiv do ‘Sonho’ de Strindberg: Der ar sundo om manniskornal! ‘Que pena tenho dos homens!’ O êxito do espetáculo foi imenso. A peça foi imediatamente traduzida e representada nos principais países europeus, além de merecer uma excelente apresentação do texto original nos Estados Unidos. Hoje, a maior parte dos críticos considera ‘A Long Day’s Journey’ um dos pontos mais altos jamais atingidos por O’Neill. Os poucos que fazem ressalvas do ponto de vista rigorosamente estético, encontram porém nesse texto uma chave mestra para a interpretação do mundo moral do escritor e de sua poética trágica. Um documento confessional insubstituível.

 

Além dos traços strindberguianos mencionados, Jacobbi aponta aspectos tchecovianos e gorkianos na peça, e estabelece um paralelo com “The iceman cometh”, última encenada ainda em vida do dramaturgo:

 

Tecnicamente, o drama [‘Longa jornada noite adentro’] repete a fórmula da peça precedente (a última representada durante a vida de “O’Neill) e muito menos feliz, ‘The iceman cometh’. Fórmula que consiste na ausência de toda a fórmula. Guerra à carpintaria, abolição do enredo, confissão perpétua das personagens numa loquacidade sem freio e sem fim, imitação da desordem real, anfiteatro como tentativa de purificação do teatro, como fundação de um teatro absoluto, desligado de todas as estruturas que ficaram em herança para o romance, e que deste passaram, multiplicando-se, ao cinema. A origem desse tipo de dramaturgia livre e extremada, que requer um espectador com nervos de aço e curiosidade psicológica quase mórbida, está nos Kammerspiele [peças camerísticas] do grande sueco e, mais ainda, no teatro russo: a forma de ‘The iceman cometh’ não é senão uma exasperação da linguagem teatral de ‘Ralé’, e a situação histórico-social refletida em todos os últimos dramas de Tchecov. Apenas, em Gorki, sentimos o impulso de uma esperança, em Tchecov uma comovida piedade, a elegia dos sentimentos, o humor e a delicadeza; em O’Neill, nada, não há mais nada, o mundo vai para o inferno, e o teatro junto com ele. À desagregação gorkiana do ‘Iceman’ (dezenas de personagens todos iguais, em situações constantemente idênticas a ‘Long day’s journey’) opõe uma violenta concentração do tema em poucas e gigantescas figuras; por isto a peça, apesar de seu anarquismo externo, acaba por se aproximar, em última instância, de um ideal clássico de teatro: é o Umschlag [invólucro] do naturalismo.

 

É indiscutível sua familiaridade com a dramaturgia de O’Neill e com a estrutura dramática de “Long day’s journey”. “Pouco ou nada acontece na sucessão unitária, aristotélica do drama”, escreve o crítico. “Os quatro personagens, ligados aparentemente, no início, pela mais humana condição de intimidade, em poucas horas se desencadeiam como fúrias, como animais, insultam-se, censuram-se, acusam-se mutuamente.”

Particularmente digno de nota, porém, é o seu entendimento de que “Long day’s journey”, peça sabidamente terminal, representava uma superação autoconsciente do autor em relação a contradições que haviam marcado sua carreira:

 

Quando O’Neill sentiu próxima a morte, quis que sua franqueza triunfasse sobre as duvidosas origens de grande parte do seu êxito: a teatralidade brutal e a pretensão ideológica. Neste último ponto foi coerente com sua mais profunda historicidade, pois o último escritor do século XIX, de um tempo que assistiu ao malogro de toda a sua concepção do mundo, não podia deixar ilusões; devia confiar à sua tumba a dignidade de uma recusa, a austeridade do Nada.

 

Na apreciação elogiosa que faz da dramaturgia de “O’Neill, Jacobbi mostra que o valor que detecta nas peças independe do êxito autoral atingido pelo dramaturgo. Deixa subentendida, ainda, sua preferência pela escrita dramatúrgica que O’Neill passou a perseguir a partir da trilogia trágica de 1933, numa obstinada procura que se estende ao longo de toda a fase final de seu trabalho.

 


Parte II


Nesse mesmo ano de 1958 Cacilda Becker, Walmor Chagas, Fredi Kleeman e Zbigniev Ziembinsky levariam ao palco do Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, a montagem de “Jornada de um longo dia para dentro da noite”, título traduzido de “Long day’s journey into night” em sua estreia no Brasil. Paralelamente, em São Paulo, o Teatro de Arena apresentava “Eles não usam black tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, e o Teatro Maria della Costa preparava-se para estrear “A alma boa de Se Tsuan”, primeira montagem profissional de um texto de Bertolt Brecht no Brasil, dirigida pelo italiano Flamínio Bollini Cerri.

Estava-se então atravessando uma era de transformações e de possibilidades. Todos esses trabalhos, de diversas maneiras, colocavam perspectivas novas para a dramaturgia e para a interpretação, e o percurso de Ruggero Jacobbi no Brasil tinha com eles importantes pontos em comum.

Intelectual de esquerda de sólida formação cultural e com histórico de participação na luta antifascista, na Itália, Jacobbi tinha chegado ao Brasil em 1946 acompanhando uma turnê da companhia teatral de Diana Torrieri, da qual era diretor artístico. Em 1949 foi contratado pelo TBC, onde realizou três direções competentes e bem sucedidas de comédias de diferentes gêneros e com significativo êxito de bilheteria.

No ano seguinte foi surpreendido pela reação de desagrado extremo da direção da companhia ao teor político dado por ele à recém estreada encenação de “The beggar’s opera” (“A ronda dos malandros”), do inglês John Gay [1685-1732], na qual Brecht havia se apoiado para escrever a “Ópera dos três vinténs”. Segundo a pesquisadora Berenice Raulino, o espetáculo dirigido por Jacobbi mesclava trechos de Gay e de Brecht e utilizava recursos de distanciamento épico tendo a realidade brasileira como referencial:

 

O texto original indica tratar-se de uma tradução do texto de John Gay. Na realidade os textos de Gay e de Brecht foram mesclados. E se Gay localizou a ação do texto em um ambiente teatral, a adaptação brasileira a transportou para o antro dos bandidos londrinos, a exemplo do que fizeram Brecht e Weill. Havia também procedimentos anti-ilusionistas brechtianos: os cartazes, as mudanças de cena diante do espectador, as falas dirigidas diretamente à plateia etc.

 

Inicialmente o espetáculo foi proibido pela censura e inúmeros cortes foram impostos. As ousadas intervenções de Jacobbi no texto não passaram incólumes diante dos dirigentes do TBC, porém, e o espetáculo foi suspenso, levando Jacobbi a demitir-se. Uma retomada parcial e menos envolvida de relações com o TBC ocorreu em 1953, quando criou o Teatro das Segundas-feiras, voltado à montagem de peças de qualidade dramatúrgica comprovada.

De todos os diretores que passaram pelo TBC, Jacobbi foi o mais concernido com as questões políticas e sociais do país. Em 1954, ao ministrar um curso dentro da programação dos festejos do Quarto Centenário da cidade de São Paulo, ele aproximou-se do setor estudantil. Um de seus objetivos nesse momento era discutir os problemas sociais e políticos brasileiros através do teatro, e isso fez que Vianinha e Guarnieri, atuantes na militância cultural e política da União da Juventude Comunista, se sentissem prontamente identificados. O teatro era um elemento importante de motivação para a adesão de novos quadros tanto no movimento secundarista como universitário, e foi nesse contexto que se deu a fundação do TPE, o Teatro Paulista do Estudante, com presença e participação de Jacobbi presidindo a iniciativa. É Deocélia Vianna (mãe de Vianinha e esposa de Oduvaldo Vianna pai) que descreve o ato oficial em seu livro “Companheiros de Viagem”:

 

O grupo de estudantes que se reunia para fazer teatro resolveu criar o Teatro Paulista do Estudante - TPE – com reunião solene e tudo. A ata da fundação dizia assim: ‘Aos cinco dias do mês de abril de 1955 reuniram-se na rua Santa Ifigênia, número 269, apartamento 3, jovens estudantes secundários e universitários, bem como demais interessados, os quais vão abaixo discriminados, com fito de decidirem sobre a fundação do Teatro Paulista do Estudante. Presente à reunião esteve o teatrólogo Ruggero Jacobbi que, por proposta do senhor Oduvaldo Vianna Filho, apoiada por unanimidade, presidiu a reunião. Usando da palavra, o senhor Gianfrancesco Guarnieri disse dos objetivos do TPE, salientando a necessidade de sua imediata fundação O senhor Ruggero Jacobbi esclareceu que tal entidade já estivera em projeto e que também naquela ocasião tivera a oportunidade de interessar-se pelo empreendimento. Frisou-se honrado em presidir a fundação do TPE. Finalizando sua oração, declarou que estava certo do sucesso total do grupo, acreditando-o em ótimas mãos. Os presentes decidiram, por proposta do colega Pedro Paulo de Uzeda Moreira, constituir-se uma comissão para tratar da legalização do grupo. Usando da palavra em nome dos presentes, o senhor Ruggero Jacobbi deu por fundado o TPE.’ Assinaram: Vianinha, Guarnieri, Vera Gertel, Diorandy Vianna, Raimundo Duprat...

 

O convívio e o diálogo efetivo com o encenador acabou sendo abreviado, pouco tempo depois, com sua mudança para o Rio Grande do Sul, onde fundou o Curso de Estudos Teatrais da Universidade Federal, do qual foi diretor e professor.

Desde 1955 Jacobbi vinha sendo vítima de perseguições políticas, e chegou a ser preso e interrogado por ter participado de uma Conferência da Paz realizada em Portugal, onde tinha assinado um manifesto contra a ditadura de Salazar. A iminência de sua expulsão do Brasil após ser denunciado como “subversivo” levou à organização de um apoio público de artistas por iniciativa de Cacilda Becker, e o arquivamento do caso acabou sendo decretado por Juscelino Kubitschek. Em 1960, porém, ele opta por deixar definitivamente o Brasil

Apesar de breve, o período de diálogo com Jacobbi teve grande valia para os integrantes do TPE, e particularmente para Guarnieri e Vianinha. É Dênis de Moraes, biógrafo de Oduvaldo Vianna Filho, que observa:

 

O encenador italiano convenceu Vianinha e Guarnieri a retomarem as leituras interrompidas pela militância, enfatizando a necessidade de uma boa formação cultural. ‘A gente lia muito pouco até se profissionalizar’, diz Guarnieri. ‘Depois, percebendo que não sabíamos nada e que havia um buraco deixado pelo nosso imediatismo, foi a fase de sair e comprar aquela pilha de livros, principalmente de literatura brasileira. Compramos tudo de Machado de Assis. Como estudantes, mal conhecíamos Jorge Amado e José Lins do Rego. O pior de tudo é que éramos estudantes que nem íamos à aula...

 

É ainda Dênis de Moraes que resume a importância de Jacobbi nessa fase, que viria a ter tantos e tão importantes desdobramentos:

 

Ruggero Jacobbi influiu pra que o TPE priorizasse um teatro nacional-popular, realista e crítico. Em artigo escrito por ocasião da estreia do grupo, ele fixou as metas a perseguir: ‘Há muitos anos estamos lutando pela constituição do TPE, isto é, um grupo de amadores capazes de realizar um programa não apenas ‘teatral’ (no sentido da descoberta de vocações ou talentos), mas também ‘cultural’ e ‘popular’ apresentando obras literárias dignas de estudo ou de divulgação, e realizando um esforço positivo no sentido de conquistar paulatinamente plateias mais ou menos afastadas do teatro ‘oficial’, começando pelo próprio público estudantil.

 

A grande aspiração do TPE era fazer teatro com um repertório que pudesse ser levado a trabalhadores e a estudantes, ou seja, que pudesse ser apresentado em fábricas e colégios. Esse repertório, no entanto, ainda não existia e era bem diferente do encenado pelos jovens amadores e constituído por peças estrangeiras de caráter leve e descomprometido. Nas palavras de Guarnieri, essa percepção gerou um impasse:

 

GUARNIERI – Mas o que é que vamos fazer? Teatro em colégios? Em fábricas? E a cultura nacional? Não podemos aparecer para os trabalhadores e alunos com uma peça banal da autoria de um francês!

 

 Ainda nesse mesmo ano de 1955 os jovens amadores do TPE, aos quais o Arena cedia espaço de ensaios em troca de figurações em seus espetáculos, optaram por ingressar no Teatro de Arena tornando-se profissionais.

Esse foi o início de uma longa jornada e de um novo período para o teatro, que passaria a assumir novos papéis dentro da cultura e da vida política do país.

 

 

 

Sítios na internet:

 

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/431

Ruggero Jacobbi | Enciclopédia Itaú Cultural (itaucultural.org.br)

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-14072017-144723/publico/SaraMelloNeiva.pdf

 

Referências

 

JACOBBI, Ruggero. Teatro no Brasil. Org., trad. e notas Alessandra Vannucci. São Paulo: Perspectiva, 2012.

KHOURY, Simon. Bastidores. Rio de Janeiro: Letras & Expressões, 2002.

MORAES, Dênis de. Vianinha – Cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, 2000.

RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: Presença Italiana no Teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2002.

VIANNA, Deocélia. Companheiros de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1984.

 

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Maria Sílvia Betti é pesquisadora e docente Sênior no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCHUSP. Autora de Dramaturgia comparada Estados Unidos-Brasil. Três estudos. São Bernardo do Campo-SP: Cia. Fagulha, 2017. Organizadora da Coleção Oduvaldo Vianna Filho de dramaturgia (Editora Temporal).

 

NOTA: Texto originalmente publicado no site Infoteatro.

 

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