A Morte do Leiteiro, baseado no poema Morte do leiteiro, de Carlos Drummond de Andrade - VÍDEO


A Morte do Leiteiro, baseado no poema Morte do leiteiro

de Carlos Drummond de Andrade - VÍDEO


Carlos Drummond de Andrade





A Morte do Leiteiro




Trecho do Roteiro de Danielle Rezera

LEITEIRO

O quê?... Não entendo... O que aconteceu? (PAUSA LONGA) Saí às 3h da manhã de casa para trabalhar... Às 4h, já estava na bicicleta entregando o leite na casa de gente bacana que pode pagar... Com tanto trabalho, não consegui estudar para a prova de ontem... Estou exausto... (Pensa na mãe) Minha mãe, será que ela vai saber que não fiz nada?... Quem vai saber, se eu mesmo nem sei o que aconteceu aqui?


Morte do leiteiro [Carlos Drummond de Andrade]

 

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

 

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

 

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

 

Meu leiteiro tão sutil,
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

 

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

 

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.

Quem quiser que chame médico,
Polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

 

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 1945.

 

 

 

NOTA

Curta-metragem de até 3 minutos.

Trabalho apresentado à disciplina de Prática de Fotografia, como requisito parcial de avaliação, sob orientação do professor Fábio Tanaka, do CAV – Centro de Audiovisual de São Bernardo do Campo.



FICHA TÉCNICA

Roteiro                           Danielle Rezera

Direção                          Agenor Bevilacqua

Direção de Fotografia   Diego Fernandes

 

Elenco

Leiteiro                          Alegretti

Leiteiro substituto         Alegretti

Proprietário                   João Miguel

Policial                          Vlademir Gomes

Pastor                            Cassiano Basaglia

 

Assistente de Direção   Isadora Cavalcante

                                      Isabel Peron

Direção de Arte             Izabella Gonçalves

Assistente de Arte         Danielle Rezera

Fotografia                      Cindy Lima

Assistente de Câmera   Isabel Peron

Gaffer                            Victor Douglas

                                      Gabriela Castioni

Som direto                     Isadora Teixeira

                                      Victor Douglas

                                      Verônyca Letícia Souto Martins

Maquiagem e Figurino Larissa Duarte

Logger                           Cindy Lima

Edição                           Diego Fernandes

                                      Agenor Bevilacqua

                                      Isabel Peron

 

Músicas                         A Internacional

                                      Letra: Eugène Pottier

                                      Melodia: Pierre De Geyter

 

                                      Bella Ciao

                                      Autoria anônima

 


Confira também:

Proposta de releitura de O três de maio de 1808 em Madrid, de Francisco de Goya. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho




Proposta de releitura de O três de maio de 1808 em Madrid, de Francisco de Goya. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


Proposta de releitura de O três de maio de 1808 em Madrid, de Francisco de Goya.

Por Agenor Bevilacqua Sobrinho

 

O três de maio de 1808 em Madrid, de Francisco de Goya.


Guide de Fotografia

e/ou

Guide de Vídeo


 

 

Proposta de releitura

Fuzilamento midiático

 

1.   Introdução 

Imagens e filmes podem ser reproduzidos, com grau maior ou menor de fidelidade. Também podemos realizar releituras deles das mais distintas formas, em diferentes espaços/tempos.

No presente trabalho, propomos uma releitura de O três de maio de 1808 em Madrid [título original: Ejecución de los Defensores de Madrid, 03 de maio 1808], de Francisco de Goya, em sua fase de Romantismo, enveredando por temas sociais, políticos e históricos, a saber: a guerra, a violência, a insanidade e o sofrimento decorrente delas. Ademais, do referido estilo, a obra aqui estudada salienta, entre outras características, o contraste de luz e sombras.

No quadro original, a rebelião contra as elites retrógradas é intensamente reprimida.

Em nossa releitura, a não submissão aos ditames da “imprensa livre” — controlada pelas oligarquias da comunicação — é, da mesma maneira, intensamente alvo de perseguições (assassinato de reputações, cancelamentos, deturpações, fake news e uma série de expedientes utilizados para controlar vozes dissidentes).

 

 

2.   Fundamentos

Partindo da imagem icônica O três de maio de 1808 em Madrid (1814), do pintor espanhol Francisco de Goya (1746-1828) — óleo sobre tela, dimensão 266 x 345 centímetros, cujo original encontra-se no Museu do Prado, em Madrid —, propomos realizar uma releitura ambientada no momento atual em que atiradores são as corporações oligopolizadas dos meios de comunicação, que muitas vezes são produtoras e/ou patrocinadoras de fake news, criando narrativas descompromissadas com o factual para endossar seus interesses ideológicos/políticos. Ao produzir desinformação, o pelotão midiático vitima a verdade, o relato factual, e cria confusão na cabeça das pessoas, induzindo-as a agir, paradoxalmente, contra os próprios interesses.

Na Espanha de três de maio de 1808 a revolta popular, motivada pela invasão da Espanha pelos exércitos de Napoleão e também pelo acumpliciamento da realeza espanhola, demonstrava, por um lado, a repulsa à elite local submissa a interesses estrangeiros, e, por outro lado, a necessidade de um governo soberano e ligado aos interesses nacionais e populares.

  À época, a resposta francesa e das elites locais submissas foi a repressão brutal aos protestos, vitimando centenas de populares, além de 44 revolucionários fuzilados entre 2 e 3 de maio de 1808. Desse modo, afora o quadro abordado no presente trabalho, Goya ainda produziu O dois de maio de 1808 em Madrid (1814).

No Brasil, a imprensa, cujo trabalho seria informar, com frequência labora em sentido contrário, servindo na promoção de golpes de Estado (1964, 2016); tentativas de golpes (2005 e 2023); e na elaboração de realidades de um Brasil paralelo sem vínculos com o que de fato ocorre efetivamente no país.

Agora, os executores das ordens de fuzilamento são os prepostos das oligarquias midiáticas no país. Estas empresas pertencem a famílias bilionárias e instituições financeiras que se arrogam o direito de determinar quais devam ser os rumos do país, mesmo que essa elite antipopular e predatória não tenha legitimidade, porque destituída de votos e, como tal, sem representatividade da delegação popular.

 


3.   Composição

Na obra de Goya, os soldados — de costas e sem identificação individual — defendem e representam a vontade da opressão. No muro, claramente identificáveis, estão perfilados os revolucionários aprisionados que serão sumariamente eliminados. Em destaque, de joelhos, um deles está de camisa branca, com as mãos para o alto e indefeso, e tem em suas mãos estigmas, aludindo à figura de Cristo e indicando a qualidade de mártires dos que no momento tombam pela repressão. Ademais, em virtude do fechamento de conventos e da extinção da Inquisição naquelas circunstâncias, a Igreja voltou-se contra Napoleão e, em alguma medida, apoiou dos púlpitos os insurgentes. Daí, temos no quadro, na primeira fileira dos alvos, um freire ajoelhado e, no breu do fundo, uma igreja.

A luz do quadro de Goya é quase natural, representando o 3 de maio de 1808 à noite para conferir-lhe maior dramaticidade com os contrastes de luz e sombras, embora o fato ocorrera durante o dia.

Em nossa releitura, os soldados/prepostos são identificados não de forma individual, mas institucionalmente pelos logotipos da grande imprensa. Em pé, um ativista social, vestido de camiseta branca com a inscrição “Pela regulação das mídias”, empunha em sua mão esquerda um celular filmando a barbárie de que ele e seus companheiros são vítimas. Espalmada para baixo, a outra mão aponta indignada para os já tombados, sinalizando a necessidade de frear o massacre midiático. Diferentemente da ligação religiosa no quadro de Goya, nossa poética da imagem fotográfica tem um conteúdo laico, que expõe a brutalidade do ataque em curso sem recorrer a metáforas metafísicas.

Os demais revolucionários, igualmente alvos de forças assimétricas, carregam celulares e máquinas fotográficas que também registram as atrocidades em tempo real. Dos insurretos em pé, nota-se a determinação, a consciência social e política de sempre lutar pelas liberdades. Jazem no chão os primeiros fuzilados; eles também enfrentaram com destemor o mesmo pelotão midiático, tendo sofrido ações de cancelamento impiedosas, calúnias e difamações de toda natureza.

O fundo da fotografia, atrás dos revolucionários, é o de uma avenida de uma grande cidade, com prédios estilizados nas sombras. No fundo central, no breu, uma banca de jornais — em substituição à igreja da imagem original —, iluminada por uma lamparina revela os jornais dependurados que ostentam manchetes não do linchamento midiático diuturnamente operado pelos diferentes canais dos mesmos donos, mas a reafirmação de falsificações da realidade. Em 1964 e durante o regime imposto pelo golpe de 1964: “Mar de lama.” Agora: “Mar de lama.” A diferença é a fonte tipográfica.


 

4.   Luz

A luz de nossa poética fotográfica é composta por um tom amarelado (com um Fresnel direto e outro rebatido no teto — caso a foto/vídeo seja em estúdio — para subexposição, além de uso de filtros, denotando a recorrência aos mesmos expedientes ardilosos das classes dominantes contra os interesses das classes populares.

O personagem rebelde de camiseta branca está destacado pela intensidade adicional de luz sobre ele, com um monoled. Utiliza-se, ainda, uma lamparina direcionada a ele e visível no solo, ou seja, como objeto de cena.

Evocando a pintura original de Goya, a cena é construída numa paleta que expressa a situação sombria e evidencia os contrastes dos dois grupos com contornos de luz e sombras.

Nossa releitura homenageia a emblemática luta pela liberdade no século XIX, criada por Goya, e, ao mesmo tempo, recontextualiza a mesma peleja que trabalhadores constantemente são obrigados a enfrentar nas disputas com aqueles que se comportam como os donos do mundo.


 

5.   Paleta de cores



Tons bege e branco: rebelde em destaque — remetem à transparência, à pureza; servem para iluminar e destacar o personagem e seus ideais.

Cinza, marrom e preto - intensifica a sensação de obscuridade, medo, tristeza. Cor contrastante ao personagem em destaque de luz, que se mostra de cara aberta, criando antagonismo em relação aos soldados sem faces, executores de ordens vis de seus patrões.

A escuridão do céu acentua a cena cruel e perturbadora. 

 


6.   Enquadramento das personagens e ângulo de câmera

Plano geral a partir de um ângulo normal, ou seja, o observador está posicionado de acordo com as balizas e delineamentos das personagens do quadro original de Goya. O personagem rebelde, de camiseta branca, está destacado na primeira fileira, no grupo à esquerda.

 

 

7.   Adereços/objetos de cena 

a)    Figurinos de soldados/prepostos da imprensa oligárquica: uniformes corporativos e identificados com as logomarcas das empresas;

b)   Adereços empunhados pelos prepostos: jornais com a aparência/feitio de armas, simbolizando o poderio econômico-político dessa imprensa;

c)    Jornais com manchetes distorcidas afixadas no exterior da banca de jornal;

d)    Os mesmos jornais, agora reescritos pelos rebeldes, espalhados pelo chão;

e)  Figurinos de rebeldes contra a imprensa oligárquica: camisetas e calça jeans, sapatos esportivos e tênis;

f)     Adereços dos rebeldes: faixas, cartazes, celulares, tablets.

 

 

8.   Equipamentos necessários

a) Câmera Canon SL3

b) Tripé de câmera

c) Cartão de memória de 64gb

d) 2 Bateria da câmera

e) Lente Série L 24/70

f) Lente Série L Prime Fixa 50mm

g) 2 difusores de luz

h) 3 tripés de luz

i) 2 spots Fresnel (sendo 1 com temperatura de 3200K e o outro com 5200k)

j) 1 monoled 200W

k) 3 Bandoor

l) 1 lamparina

m) Cabos

n) 4 Extensões

 

9.    Especificações técnicas

Setup da câmera:

Diafragma 5.6

ISO 400

Frame rate 30 fps

Shutter speed 1/60

Balanço de branco: de 3200 a 5200k (testar)

Estilo de imagem: Neutro

Na pós-produção, editar a imagem e inserir miniaturas de jornais afixados nas bancas

Composição a partir de releitura.

Fotografia em cores e em preto e branco.

Vídeo de 30 segundos.

1080p, 25fps, obturado em 1/50, Pal, Neutro, iluminação 3200 a 5200k

 


10.    Planta baixa




 

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Fagulha Entrevista - Maria Aparecida de Aquino – Golpes de Estado no Brasil

  

Fagulha Entrevista - Maria Aparecida de Aquino

Golpes de Estado no Brasil



Entrevista ao vivo - 09/05/2025, sexta-feira, às 17h

 

Fagulha Entrevista - Política Nacional

 

 

 

Fagulha Entrevista

Maria Aparecida de Aquino

Golpes de Estado no Brasil

 

Entrevista Maria Aparecida de Aquino (Historiadora-USP)

para dialogar sobre as principais questões da Política Nacional.

 

TEMAS

·       Golpes de Estado: 

1.     Conjuntura de 1964 e os antecedentes do golpe; base de apoio político, econômico, social e militar (de João Goulart e dos golpistas); as promessas dos golpistas e a realidade de 21 anos de ditadura; a oposição à ditadura civil-militar;

 

2.      2005. AP-470, vulgo mensalão. Tentativa de golpe?

 

3.      O golpe de 2016 (semelhanças e diferenças do golpe de 1964); o alcance e os limites do golpe de 2016; 

 

4.      A tentativa de golpe de 08/01/2023 (motivações, já acabou?, porque fracassou?);

 

5.      Conceitos de Democracia e Ditadura.


E demais questões enviadas pelos/as internautas.

 

 

*Maria Aparecida de Aquino, historiadora, é professora titular aposentada da Faculdade de História da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

 

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A Europa entra numa montanha russa. Por Flávio Aguiar

 

A Europa entra numa montanha russa. Por Flávio Aguiar

Tarifaço de Trump: europeus morderão a isca?

 

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, jogou a Europa numa montanha russa. Ao dizer isto não estou me referindo ao fato dele propor-se a negociar a situação da Ucrânia diretamente com Moscou. Refiro-me, isto sim, ao sobe-desce e aos solavancos em que ele atirou o continente com seu tarifaço da semana passada e seu recuo parcial na sequência.

Digo “recuo parcial” porque ele apenas suspendeu a sua aplicação aos países europeus por noventa dias, ao invés de revogar o tarifaço. Ao mesmo tempo, num primeiro momento manteve sua aplicação e elevou-o a 145% para a China. Depois recuou de novo, isentando do tarifaço produtos eletrônicos chineses importados pelas big techs dos Estados Unidos. Fica a dúvida sobre o porquê deste último recuo: se foi a pressão das empresas norte-americanas, ou o contra-tarifaço chinês, taxando em 125% produtos dos Estados Unidos.

A presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que anunciara a adoção de tarifas suplementares sobre produtos norte-americanos em retaliação, voltou atrás, também suspendendo sua aplicação imediata, embora as taxas extras sobre alumínio, aço e veículos europeus estejam mantidas. Complementando o vaivém, disse que a Europa está pronta para negociar as medidas com os Estados Unidos, mas também está pronta para “defender seus interesses”. Ou seja, deu uma no cravo e outra na ferradura.

No domingo Maros Sefcovic, membro da Comissão Europeia e o seu encarregado da pasta de Comércio e Segurança Econômica, seguiu para Washington a fim de tentar um acordo sobre as tarifas. E von der Leyen acenou com a proposta de reduzir a zero as tarifas mútuas sobre produtos industrializados.

Por outro lado, apesar do esforço por parte dos líderes europeus para demonstrarem unidade, a conjuntura voltou a expor algumas de suas diferenças. Ao invés da cautela demonstrada por von der Leyen, o ainda vice-chanceler e ministro da Economia alemão, Roberto Habeck, do Partido Verde, qualificou as medidas de Trump como “absurdas”. Bernd Lange, presidente do Comitê para o Comércio Internacional do Parlamento Europeu, qualificou as medidas de “injustas” e ironizou a declaração de Trump, para quem o tarifaço era o “dia da libertação” dos Estados Unidos, dizendo que ele era, na verdade, o “dia da inflação” para os consumidores norte-americanos e europeus.

Um conceito que pode ajudar a entender o que está acontecendo é o de “estado de exceção”, estudado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben a partir de sua formulação pelo jurista alemão Carl Schmitt, simpático aos nazistas, nos anos 20 e 30 do século passado.

O conceito qualifica o comportamento de um governante que chega ao poder obedecendo as regras de um sistema político, mas a seguir as afronta ou suspende, mergulhando a sociedade primeiro num estado caótico de anomia e depois numa situação em que ele dita e aplica novas regras, como fizeram Hitler e Mussolini.

De certo modo, é o que Trump está tentando fazer dentro e fora dos Estados Unidos. O governante do estado de exceção não tem propriamente aliados. Em seu lugar, acolhe vassalos, que trata bem se lhe obedecem ou agride e descarta se a ele se opõem.

É como Trump e sua equipe vem tratando a Europa e outros países, querendo mantê-los ou reconduzi-los ao aprisco hegemônico dos Estados Unidos, cujo vetor principal, no momento, é o de conter e reverter a presença chinesa no comércio e na geopolítica internacionais. Também está claro o objetivo de atrair a Rússia, afastando-a da aliança com a China.

O anúncio e o recuo parcial do tarifaço em relação à Europa cumpre este objetivo: a mão que ameaça é a mesma que acena com a promessa de recompensa por um bom comportamento.

Fica por ver se os europeus, com suas convergências e divergências, morderão a isca.


*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

 

 

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Ai de ti, 64. Por Flávio Aguiar

 Ai de ti, 64. Por Flávio Aguiar

 

Homenagem ao tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, que ajudou a salvar a cidade de Porto Alegre de um bombardeio aéreo em 1961 e foi assassinado na Base Aérea de Canoas em 4 de abril de 1964.


A Malena Monteiro. A Alfeu de Alcântara Monteiro, in memoriam.

 

 

1. Há uma praça de menos em Porto Alegre. Essa praça deveria se chamar “Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro. Alfeu de Alcântara Monteiro nasceu em Itaqui, Rio Grande do Sul, em 31 de março de 1922. A Semana de Arte Moderna tinha um mês e meio de realização. Naquele ano também seria fundado o Partido Comunista do Brasil. O menino Alfeu tinha três meses e meio de vida quando do episódio dos 18 do Forte, em Copacabana.

Tinha dois anos mais ou menos quando o capitão Luís Carlos Prestes começou a marcha de sua coluna, naquela região mesma em que nascera Alfeu, nas Missões. Tinha oito anos na Revolução de 1930, dez na revolta de 32, 20 quando o Brasil entrou na Segunda Guerra, ao lado dos aliados e da União Soviética, contra os nazifascistas e o Eixo. Teria 44 anos recém- completos ao morrer, em 4 de abril de 1964, em consequência do golpe dado três dias antes.

Em 1941 ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, e em 1942 passou para a Escola da Aeronáutica, onde se formou como aspirante em 1943, designado para servir na base aérea de Fortaleza.

Fez uma carreira bastante protocolar e rápida, marcada por elogios oficiais. Recebeu louvores individuais em diversas ocasiões. Em 1946 já era tenente aviador e estava na Base Aérea de São Paulo. Em 1947 estava de volta na Escola de Aeronáutica, no Rio de Janeiro, onde recebeu louvor, destacando “suas qualidades de caráter e esmerada educação, aliadas à correta noção de disciplina e dos assuntos profissionais, que o fazem despontar entre os oficiais de escol da FAB”. Serviu ainda em Natal nesse período.

Por seus méritos integrou a equipe de oficiais aviadores que em 1948 foi buscar os aviões de combate Gloster Meteor adquiridos nos Estados Unidos. Nos dez anos seguintes serviu em Natal, Rio de Janeiro, São Paulo e na Base Aérea de Canoas, município da Grande Porto Alegre. Recebeu vários elogios em sua folha de serviço por participação em eventos esportivos e em manobras de campo, simulando combates.

Muitos desses elogios ressaltam sua capacidade de superar dificuldades e precariedades provocadas por falta de suprimentos ou aparelhos adequados.

Em 1957 recebeu um elogio por escrito do brigadeiro do ar Nelson Freire Lavanère Wanderely, do Comando da Primeira Zona Aérea. Em 1964 o já tenente-coronel Alfeu Alcântara Monteiro seria acusado de tentar assassinar o brigadeiro Lavanère Wanderley na Base Aérea de Canoas.

Em 1958 fez o curso do Estado Maior da Aeronáutica no Rio de Janeiro. Em 1959 passou a integrá-lo, e em dezembro desse ano estava servindo na Sub-Seção do Exterior do Comando de Segurança Nacional. Nos elogios recebidos em sua folha de serviço nesta função, destacam-se os seguintes termos e expressões: “personalidade marcante”, “destacado piloto da FAB”, “impecável apresentação”, “correção e franqueza de atitudes”, “discreto, trabalhador e inteligente”, “espírito de cooperação”. Diz o elogio de 27 de julho de 1960: “Embora constantemente solicitado para cumprir seus deveres como piloto da FAB, tem em dia seus encargos”.

Em 31 de janeiro de 1964 recebeu o que provavelmente foi seu último elogio oficial, da parte do General de Divisão Ernestino Gomes de Oliveira, diretor geral de Saúde do Exército, nos seguintes termos: “Tenente Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, oficial disciplinado, competente e proficiente, comandou com destreza e perfeição o transporte de que me utilizei. Sempre pronto para o serviço, o Ten. Cel. Alfeu deu demonstração cabal de pontualidade e de espírito militar Louvo pois o Ten. Cel. Alfeu e auguro-lhe o melhor êxito em sua brilhante carreira”.

Tudo isso consta de cópia autenticada da folha corrida do tenente-coronel, que lhe foi passada em 23 de março de 1964, na Base Aérea de Canoas, de que tenho reprodução.

2. Aqui vale a pena transcrever trecho do seu obituário, publicado em 5 de abril daquele ano, no Diário de Notícias de Porto Alegre: “[serviu] no Comando de Segurança Nacional até fevereiro de 1961. Foi exonerado nesse mês daquele órgão, ficando 90 dias sem função e sem vencimentos, ao que dizem por ser antijanista. Ao terceiro mês de afastamento foi classificado em Recife. Este fato levou-o a dirigir carta a um oficial do Ministério da Aeronáutica, dizendo-lhe que só lhe servia Porto Alegre, pretensão que lhe foi satisfeita um pouco mais tarde. Quando da renúncia do senhor Jânio Quadros e com a ida do brigadeiro Aureliano Passos para o Rio, Alfeu Monteiro assumiu o comando da Quinta Zona Aérea, em face de sua ligação com o esquema organizado pelo senhor Leonel Brizola”.

O “esquema organizado pelo Sr. Leonel Brizola” era a Rede da Legalidade, para garantir a posse de João Goulart na Presidência da República em agosto/setembro de 1961, diante da disposição golpista dos ministros militares Odylio Denis (do Exército, então dito da Guerra), Sílvio Heck (Marinha) e Grum Moss (Aeronáutica) para impedi-la. De fato, o tenente-coronel acabou tendo participação decisiva nos acontecimentos.

No torvelinho político que se seguiu à inesperada renúncia de Jânio, a obstinação do governador do Rio Grande do Sul em não se dobrar diante da tentativa de golpe exasperou o comando militar em Brasília. Forçado pelas circunstâncias e por vários de seus comandados, entre eles os generais Pery Bevilacqua e Oromar Osório, o comandante do IIIº Exército, general Machado Lopes, decidiu também se insurgir contra o golpe.

Nesse momento, o gabinete do Ministério da Guerra transmitiu ao general Machado Lopes a seguinte mensagem, às 6h 28 de agosto: “O IIIº Exército deve compelir imediatamente o sr.

Leonel Brizola a pôr termo à ação subversiva que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e concentração de tropas (…) Faça convergir sobre Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente, inclusive a 5ª DI, se necessário. Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário (…)”. (5a. DI, Divisão de Infantaria, assim chamada então, com sede em Curitiba, hoje integrando a 5a. Divisão do Exército).

Radioamadores captaram a mensagem. A senha definitiva para o ataque aéreo, que também chegou a ser transmitida era: “Tudo azul em Cumbica. Boa viagem”, porque os jatos da Base Aérea de Canoas, depois da missão, deveriam seguir para aquela base em São Paulo.

Em Canoas seguiram-se momentos indescritíveis de tensão. Alertados pelo capitão Alfredo Daudt, os sargentos da base aérea se insurgiram, decididos a impedir que os oficiais levantassem voo. Esses se dirigiram a um dos prédios para vestir os uniformes. A partir daí os relatos são muitos. Uns dizem que os pneus dos jatos foram esvaziados. Outros dão conta que os sargentos cercaram os oficiais no prédio, e que todos, de ambos os lados, dispunham de armamento pesado e estavam dispostos à luta.

Ainda outros que eles deram as mãos formando uma corrente para evitar que os oficiais pudessem embarcar nos jatos.

Os sargentos conseguiram enviar um jipe até o centro de Porto Alegre (naquele tempo o sistema de comunicações era muito precário) para pedir ajuda. O jipe quase foi virado por uma multidão enfurecida pela notícia da ameaça de bombardeio. Consta que um dos sargentos só conseguiu impedir o linchamento gritando que era parente de Brizola, o que não era verdade…

Os emissários conseguiram passar, e o general Machado Lopes enviou uma força-tarefa para assumir o controle da situação na Base Aérea. Foi feito um acordo: o comandante da base, brigadeiro Aureliano Passos, e os oficiais favoráveis ao golpe a abandonaram e foram para Cumbica. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista.

Ao assumir o comando da base, o tenente-coronel deu declarações no sentido de tranquilizar a opinião pública. Anunciou – o que confirmava fatos sabidos da véspera – que o brigadeiro Aureliano deixara a base com mais oficiais levando os jatos que seriam utilizados no bombardeio da cidade, em número de dez

 Alegava que isso afastava o perigo do ataque, e, além disso, negava a existência da ordem que a base, de fato, recebera: “Na realidade os oficiais, inclusive o comandante da Esquadrilha de Caças, estavam contrários à atitude para que a FAB bombardeasse o Palácio de Governo ou qualquer outro local”. Esse “qualquer outro local” seriam pelo menos as torres da Rádio Guaíba, base da Rede da Legalidade que o governo gaúcho já formara em escala nacional.

Li, tempo atrás, um depoimento do escritor mineiro Oswaldo França Júnior (1936-1989), que conheci pessoalmente no restaurante Dona Lucinha, em Belo Horizonte, onde tinha mesa fixa, sobre os acontecimentos na Base Aérea de Canoas, onde ele servia como oficial aviador.

No seu depoimento ele confirmava a ordem de bombardeio. Dizia que houvera uma intensa discussão entre os oficiais se a ordem deveria ser cumprida ou não. A decisão final da maioria dos oficiais foi positiva, e passaram a noite se preparando para o ataque. Este só não aconteceu devido à intervenção dos sargentos e dos oficiais legalistas. Oswaldo França Júnior acabaria cassado e expulso da Aeronáutica em 1964.

Entretanto, alguns dias depois, o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro daria nova entrevista ao mesmo jornal (o Jornal do Dia), em 3 de setembro, em que denunciava manobras dos ministros de Brasília para “desunir” as forças da Legalidade, segundo as quais ele não mais obedeceria à orientação prevalecente no Rio Grande do Sul. Diz o texto: “Trata-se de uma manobra do Ministério para tentar separar as forças do Rio Grande, Terceiro Exército, FAB e governo do Estado. Estamos indissoluvelmente unidos e reina harmonia nas forças da Legalidade”.

Essa harmonia não devia ser tanta assim. A própria notícia, mais adiante, dizia curiosamente que na Base Aérea de Canoas havia 216 sargentos, cabos e soldados prisioneiros de cerca de 30 oficiais. Ou seja, isso mostra que houvera, ao lado da negociação sobre o impedimento do bombardeio do centro de Porto Alegre, uma negociação formal sobre o destino das ordens e contraordens dadas, recebidas e de fato não cumpridas.

Mas de certo modo os aviões tinham cumprido a ordem recebida, ou seja, decolaram de Canoas e pousaram em Cumbica. Se não realizaram o bombardeio é porque não tinham bombas nas asas, impedidas de embarcar pelos suboficiais e pela presença da força-tarefa enviada pelo general Machado Lopes. Ao mesmo tempo, os suboficiais e praças rebelados permaneceram sob a custódia dos oficiais remanescentes.

Mantinha esse delicado equilíbrio a presença e o prestígio do tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro. Não deixava de ser uma saída conciliatória: tudo estava de acordo com os manuais, e dessa forma a carreira de ninguém seria prejudicada, é o que se pode concluir.

O fato é que a ordem de bombardeio houve, e só não se cumpriu graças à decisão contrária dos sargentos, dos suboficiais, e dos oficiais legalistas, logo a seguir amparada pela atitude do tenente-coronel, assumindo o comando da Base Aérea. O cumprimento da ordem teria consequências imprevisíveis: o Palácio Piratini, alvo do bombardeio, fica em local densamente povoado; nesta época já havia até alguns edifícios ao seu redor. A Praça da Matriz (oficialmente Marechal Deodoro), como a população ainda a chama, em frente ao Palácio, estava sempre cheia de povo, naqueles dias de mobilização. Haveria um morticínio, como o que houve em junho de 1955 em Buenos Aires, quando aviões da Marinha e da Aeronáutica bombardearam a Casa Rosada e outros prédios públicos numa tentativa de derrubar Perón.

3. Minha família morava na rua Demétrio Ribeiro, a quatro quadras do Palácio Piratini. Na manhã em que se espalhou a notícia do possível bombardeio presenciei cenas dignas de um documentário sobre a Segunda Guerra Mundial: famílias batendo em retirada pela rua, levando malas com roupas e outros pertences. Na noite que se seguiu, ainda sob a sombra da ameaça, nós mesmos fomos dormir no apartamento de uma amiga da família, muitas quadras mais distante.

A importância dos acontecimentos de Canoas foi atestada pelo fato de que na Base Aérea começaram as comemorações do Sete de Setembro seguinte, quando a crise da posse de Goulart já estava resolvida. Às 9 hs houve um desfile que homenageava as autoridades que para lá se deslocaram: o governador Brizola, o general Machado Lopes, o comandante da Brigada Militar, o arcebispo do Rio Grande do Sul. No fundo, os homenageados por tal deslocamento eram os praças, sargentos, suboficiais e oficiais legalistas da base. Nas fotos publicadas na imprensa, o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro tem lugar de destaque.

Neste momento o vice-presidente João Goulart já embarcara para Brasília, depois de chegar a Porto Alegre ao fim de uma longa viagem a partir da China, onde estava quando da renúncia de Jânio, com escala final em Montevidéu. A ida de João Goulart para a capital da República, depois da sua aceitação da emenda parlamentarista, também teve participação especial da FAB. Partidários do golpe montaram uma operação para derrubar o avião presidencial, a “Operação Mosquito”. Contrária a ela, e com a participação de sargentos e suboficiais de Brasília, montou-se uma “Operação Tática” destinada a impedir que aviadores golpistas pudessem cumprir aquela determinação.

A base da “Operação Tática” foi o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, de onde partiu o avião presidencial. Fizeram parte dela iniciativas como a de impedir que os demais aeroportos do caminho obtivessem informações sobre o plano de voo, e de divulgação de dados meteorológicos enganosos sobre o sul do Brasil, como a de que chuvas torrenciais impediam o sobrevoo de Porto Alegre. O comandante da “Operação Tática” foi o tenente Generoso Resende Lacerda, mas o responsável por todas as ordens, mais as mensagens enganosas para o resto do país, foi o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro.

Essa posição proeminente nos acontecimentos de 1961 valeu a ele algumas promoções a seguir. Duas são muito significativas. Chegou a ser piloto do avião presidencial, depois da posse de João Goulart. E foi nomeado para dirigir a Superintendência da Fronteira Sudoeste, que abrangia os estados sulinos mais o Estado do Mato Grosso (hoje, na região, Mato Grosso do Sul). Mas o tenente-coronel aviador não permaneceu nos cargos. Do primeiro não tenho informação de por que nem quando saiu.

Mas do segundo afastou-se em 20 de janeiro de 1963, enviando o seguinte telegrama às autoridades competentes: “Informo Vossência serei substituído breve Superintendência Fronteira Sudoeste devido imposição governador Leonel Brizola e presidente PTB Rio Grande do Sul o estrangeiro [sic] João Caruso. Motivo real não mencionado presidente Jango é que não sou político e assim jamais permitirei transformar órgão sob minha direção em cabide de emprego para cabos eleitorais que deverão agir próximas eleições para prefeito de Palegre e outros municípios do RGS. Adianto vossência que pessoalmente só tenho prejuízos naquela função. Esses prejuízos estavam sendo compensados tendo em vista possibilidades promover patrioticamente desenvolvimento socioeconômico área Fronteira Sudoeste, no menor espaço de tempo, com máxima economia, contando naturalmente cooperação governo objetivo e profícuo vossência e demais governadores, conforme poderão testemunhar elementos credenciados [n]esse Estado e outros compreendidos fronteira Sudoeste, que lá estiveram e presenciara[m] a minha orientação administrativa imprimida ao órgão. Lamento informar vossência esses fatos mas faço pretendendo ressalvar minha responsabilidade no caso e dar nome aos bois, para que o povo dos quatro estados, que fazem parte da área, não fique às escuras sobre o assunto. Sentindo não mais poder dedicar meus esforços nessa direção, despeço-me atenciosamente. Alfeu de Alcântara Monteiro, tenente-coronel aviador.

4. Pouco depois de deixar a superintendência, o tenente-coronel se envolveu numa luta de rua em Porto Alegre, ao ser interpelado por guardas de trânsito de forma que considerou inadequada. O episódio se passou às 23 h de um sábado, no mês de fevereiro, e acabou na Chefatura de Polícia, além de ser publicado com estardalhaço em jornais do dia seguinte.

Por esse tempo o tenente-coronel havia se separado da esposa e constituído nova família. A primeira foi residir no Rio. Mas ao longo de 1963 ele acabou reconsiderando sua situação.

Reconciliou-se com a primeira esposa, decidindo ambos voltar a morar juntos. Querendo seguir para o Rio, dirigiu-se para a Base Aérea de Canoas a fim de colher documentos e pertences que lá deixara. E foi onde estava quando começou o golpe, na madrugada de 1º de abril, depondo o presidente João Goulart. O comandante da base, brigadeiro Otelo da Rocha Ferraz, deixou o local depois de ser nomeado novo comandante pelos golpistas, o brigadeiro Nelson Lavanère Wanderely. Mas os sargentos e suboficiais, inconformados, se rebelaram. E junto com eles estava o seu antigo Comandante da Legalidade.

É difícil saber exatamente o que aconteceu a seguir. Lavanère Wanderley se apresentou na base acompanhado pelo coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa. Por volta das 21h do sábado, 4 de abril de 1964, reuniram-se numa sala do comando com o tenente-coronel.

Estavam apenas os três. Segundo informações da imprensa, houve um tiroteio. A versão divulgada estabelecia que, ao receber ordem de prisão, ou de se apresentar no Rio de Janeiro, o tenente-coronel Alfeu se insurgiu, sacou da arma, fez cinco disparos contra o brigadeiro, à queima-roupa, acertando um ou dois de raspão. No futuro, ao ser empossado como ministro da Aeronáutica, o brigadeiro tinha, segundo o ministro que lhe transmitia o cargo, a cicatriz de um ferimento de raspão no olho. Uma versão diz que “elementos de segurança” acorreram e alvejaram o tenente-coronel.

Outra, que foi a versão levada a julgamento, estabeleceu que o autor dos disparos contra o tenente-coronel foi o coronel Hipólito. A nota oficial distribuída pela Aeronáutica em 5 de abril dizia que o tenente-coronel fora morto por “circunstante”. De um modo geral, os comentários ressaltavam que o oficial morto era de “tendências brizzolistas” (sic). Numa circunstância, pelo menos, foi chamado de “fanático”.

Tempos depois, o coronel Hipólito foi a julgamento no Rio de Janeiro, sendo absolvido. Segundo o noticiário, a alegação da defesa foi a de legítima defesa de terceiros. O caso é até hoje mencionado em publicações de todos os tipos, impressas ou na internet, desde as que arrolam as vítimas da ditadura àquelas que fazem a apologia do golpe e acusam o tenente-coronel de ter atentado contra a vida do brigadeiro Lavanère. As versões extremas falam em assassinato com 16 tiros de metralhadora, ou com um único tiro, disparado pelo coronel Hipólito em defesa do brigadeiro. Sobre o acontecimento, obtive depoimento da filha do tenente-coronel, Malena Monteiro.

Conversamos em 22 de maio de 1983, em Brasília, depois de uma correspondência que começou em 1980. Caracterizou seu pai como um homem impulsivo, algo autoritário e ao mesmo tempo carinhoso, dividido em casa entre manter a ordem e cuidar das meias, dos sapatos e das roupas dos filhos. Era nacionalista, não de esquerda. Disse também que por ocasião da morte do pai a família recebeu cinco passagens para ir do Rio a Porto Alegre da Varig, mas chegaram atrasados ao enterro, que se deu no dia 5 de abril, no cemitério de São Miguel e Almas, com honras militares. Depois, no Rio, foram perseguidos e ameaçados por oficiais da Aeronáutica, o que fez sua mãe mudar-se para a Inglaterra.

No dia da morte do pai ela disse terem os três, Lavanère, Alfeu e Hipólito, se dirigido para um gabinete do QG. Fecharam-se lá dentro, e depois de uma discussão ocorreram os disparos.

O tenente-coronel foi atingido por oito disparos, sendo quatro pelas costas e quatro pela frente.

Como os disparos estavam em linha ascendente, suspeitou-se de uma metralhadora, mas é verdade que uma pistola automática faria o mesmo efeito. Supõe-se que ao ser atingido pelas costas ele tenha se virado, e recebido novos disparos pela frente. Um gesto desses levanta a hipótese de que o brigadeiro Lavanère tenha sido atingido de raspão por uma das balas disparadas pelo coronel Hipólito. Neste caso, o tenente-coronel Alfeu não atirou primeiro, e se chegou a sacar a arma foi para se defender, ao contrário da versão oficial, em que ele foi o agressor.

Há uma versão dos acontecimentos que afirma ter o tenente-coronel apenas ameaçado o brigadeiro com sua arma, e que com a chegada do coronel Hipólito e outros assessores começou “uma troca de tiros”.

Mas, segundo Malena, quem acorreu de fora para dentro foi o ajudante de ordens do tenente-coronel. Ele, ao entrar, deparou-se com a cena consumada. Disse-me que este rapaz também foi perseguido pelos vencedores do golpe, bem como vários sargentos e oficiais da base, entre eles o capitão Alfredo Daudt, que estava presente na base no momento do tiroteio.

Seu pai foi levado para o Hospital do Pronto Socorro em Porto Alegre, onde chegou com vida e ainda sobreviveu por meia hora. Não falou sobre os acontecimentos, só sobre os filhos. Ela disse que a família soube de alguns desses fatos por uma freira, que estava presente no hospital, e que o médico que atendeu seu pai resolveu calar-se, por medo das consequências. Na ocasião em que a entrevistei, o coronel Hipólito já tinha morrido. O brigadeiro Lavanère também, ou morreu algum tempo depois. Em nenhum momento, em nenhum documento, encontrei referência a exame de balística nas armas presentes.

O que se passou exatamente naquela sala? Jamais se saberá. Ela virou uma caixa-preta. Só poderia se saber com exames de balística nessa altura impossíveis, com o exame da sala em busca de possíveis vestígios que tenham ficado depois de tantos anos, com a exumação dos restos mortais do tenente-coronel. O depoimento de Malena, a partir do da freira e do ajudante de ordens, é consistente.

A versão de que seu pai disparou cinco tiros a queima-roupa e errou todos é inverossímil.

Também é a de que tenha sido atingido por um único tiro, pois ainda foi transportado para o Hospital do Pronto Socorro em Porto Alegre e lá sobreviveu por meia hora, e falando. É certo mesmo que tenha sido atingido várias vezes e tenha morrido em consequência da hemorragia e da falência de órgãos atingidos.

A versão de que foi atingido por “dezesseis tiros” cabe na de que levou oito, pois como se sabe, um tiro nas condições em que estavam, atravessa o corpo. Se o tenente-coronel foi atingido por oito, teria 16 orifícios pelo corpo. E é possível mesmo que uma das balas disparadas pelo coronel Hipólito tenha ferido o brigadeiro, saindo do corpo do tenente-coronel ou passando-lhe ao lado, enquanto este se virava. As versões divulgadas oficial ou oficiosamente se desmentem na sua multiplicidade.

Mas o importante a ressaltar é que o Golpe de 64 criou esse tipo de caixa-preta na vida de todo mundo. Sempre há algo que é difícil ou mesmo impossível de decifrar completamente. No caso, essa caixa-preta se refere à vida de um homem com quem a cidade e o povo de Porto Alegre têm uma dívida imorredoura. Ele, os oficiais e os sargentos legalistas salvaram a cidade de um bombardeio criminoso.

Em dezembro de 2017 o juiz Fábio Hassan Ismael, da 2a. Vara Federal do município de Canoas, em processo aberto a pedido do Ministério Público, determinou a retirada da expressão “legítima defesa” do obituário do tenente-coronel. Ficou estabelecido que ele foi “executado”, ou seja, assassinado.

Depoimento de outras testemunhas auriculares, presentes perto da sala onde se deu o assassinato, registraram terem ouvido, antes de mais nada, disparos de uma arma pesada, que seria a do coronel Hipólito. O tenente-coronel dispunha de uma pistola de calibre menor, o que corrobora a hipótese de assassinato.

Já em 2015 decisão da Câmara de Vereadores da cidade dera o nome dele a uma praça junto da avenida Getúlio Vargas, com a presença de um busto em sua homenagem. A praça que não há em Porto Alegre acabou sendo criada na vizinha Canoas.

Em seu depoimento, Malena ressaltou que seu pai gostava de voar. Foi daí que pensei ser uma praça homenagem adequada a ele, já que elas costumam abrigar muitos pássaros, e estes também gostam de voar. De resto, só sei dizer que quando pedi a ela que me dissesse como era seu pai, ela teve um olhar que eu gostaria que vissem no rosto de minhas filhas, se a elas um dia lhes perguntarem qualquer coisa sobre mim.


 

Versão corrigida e atualizada de artigo publicado no livro Crónicas do Mundo ao Revés (Boitempo Editorial, 2011), republicado em 02/04/2014, no Blogue do Velho Mundo – Rede Brasil Atual, e no site aterraeredonda, em 29/03/2024.

 

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

 

 

 

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