Oduvaldo Vianna Filho e a tragédia. Por Maria Sílvia Betti


Oduvaldo Vianna Filho e a tragédia. Por Maria Sílvia Betti


“Gota d’água” é uma adaptação do caso especial “Medeia”, escrito por Oduvaldo Vianna Filho para a TV Globo, em 1972, protagonizado por Fernanda Montenegro.

Em 1973 Oduvaldo Vianna Filho escreveu “Medeia”, texto teledramatúrgico criado para o programa “Caso Especial”, da Rede Globo de Televisão. Nele Vianna contextualizava a tragédia de Eurípides nos morros cariocas e na contemporaneidade do país sob a ditadura. Sua morte prematura não lhe permitiu transpor esse trabalho para o teatro, o que acabou sendo feito por Paulo Pontes, seu ex-companheiro do grupo Opinião, em parceria com o compositor Chico Buarque de Hollanda. Do trabalho televisivo deixado por Vianna nasceria o musical “Gota d´Água”, um dos marcos do teatro brasileiro da década de 1970.
Em uma de suas últimas entrevistas, concedida ao jornalista Ivo Cardoso para a revista Visão, Vianna falou com ênfase sobre o papel político da tragédia. Para ele, nessa terrível fase do país sob a ditadura, a tragédia, por estimular a análise, propiciava uma percepção dos impasses do presente e o enfrentamento deles, passo indispensável para que fossem superados. Olhar nos olhos da tragédia era encará-la de frente para superá-la. Tão incisivas e instigantes foram as suas considerações sobre o assunto, que a matéria sobre a entrevista foi publicada na revista com o título de “Os olhos da tragédia”[1], enfatizando a relevância que o assunto havia assumido em seu trabalho.
Outro texto em que Vianna apresenta considerações importantes indiretamente relacionadas à tragédia viria a ser publicado apenas vários anos após sua morte: tratava-se de um documento inacabado composto por dois esboços originalmente pensados como partes de um Prólogo para “Rasga Coração”, seu último trabalho. Vianna não os utilizou na versão final da peça, mas o documento foi incluído com o título de “Prólogo Inédito para Rasga Coração” na antologia organizada por Fernando Peixoto em 1983.[2]
Texto instigante e denso, repleto de truncamentos e repetições de cunho claramente experimental, esse Prólogo define, logo no início, coordenadas para a relação entre teatro e público, e assim faz remissão à Grécia antiga, contexto de origem da tragédia. [3]
 A ideia de destino, inerente à concepção trágica, é evocada logo no início[4] assim como a própria natureza constitutiva do teatro[5]. Longe de corroborar uma visão universalizante e essencialista, Vianna ressalta seu caráter contingente e determinado: o destino depende da forma como o entendemos, e o entendimento é fruto da contemplação e da gratuidade[6], que permitem flagrar no corriqueiro e no habitual outros significados reveladores.[7] Contemplar desencadeia percepções críticas no que diz respeito ao público, e envolve uma definição de princípios por parte dos artistas[8]. As formas tidas como definitivas, são, na verdade, transitórias e resultantes da ação humana, e não de formulações perenes e inelutáveis.
Sem que a tragédia esteja nominalmente referida, o desvendamento analítico associado a ela está implícito naquilo que Vianna considera o objetivo principal a ser perseguido[9]. O processo artístico visado tem caráter dialético por excelência pois não se legitima por meio de metas predefinidas, e sim por meio do que Vianna denomina gratuidade[10], que poderia ser entendida como uma abertura integral e autoconsciente de espectadores e de artistas à observação do fluxo de circunstâncias do real.[11]
Dentro dessa perspectiva, a ideia de uma condição trágica e aprisionante do ser humano é vista por Vianna como resultado do entendimento comumente aceito de que a assim chamada psicologia de cada indivíduo seria fruto de suas escolhas pessoais, e não de todo um conjunto de determinações históricas e de imposições ideológicas que lhe vão sendo impostas ao longo da vida[12]. Para Vianna, essa psicologia tem o caráter coercitivo e determinante contido na ideia de destino criticada[13]. Enxergá-la de forma crítica é tarefa necessária para a sua superação, processo sintetizado quando ele observa que “olhar nos olhos da tragédia” é fazer que ela seja dominada Pode-se, assim, perceber claramente o quanto a concepção de tragédia inerente ao pensamento de Vianna, por seu cunho dialético e por sua perspectiva historicizada, distingue-se da postulada pela maioria de seu contemporâneos.




[1] Entrevista a Ivo Cardoso. In PEIXOTO, Fernando. Vianinha. Teatro. Televisão. Política. São
Paulo: Brasiliense, 1984.

[2] “Prólogo inédito para Rasga Coração”. In PEIXOTO, Fernando. Vianinha. Teatro. Televisão. Política. Op. cit.

[3] Esperamos que os senhores não se inquietem
com um início de espetáculo tão desavisado
garantimos que não se trata de novidade
os gregos inventaram esses prolegômenos
talvez porque necessitassem prender a atenção
de seu público que vinha das ruas sujas de Atenas,
temendo os deuses e seus obscuros desígnios
perturbados com seus feridos de guerras constantes
com os levantes dos escravos. “Prólogo Inédito”. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Rasga coração. São Paulo: Temporal, 2018, p. 163.

[4] os prólogos geralmente lembravam que só escapa do furor
cego do destino
quem não procura fugir dele. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Rasga coração. Loc. cit. p. 163.

[5] Um teatro é o único lugar em que estamos presentes não
estando
em que participamos dos acontecimentos que entretanto
só acontecem
porque não estamos neles
É uma sensação doce demais, descoberta dos gregos
quando descobriram
que o destino depende da maneira como o entendemos. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Op. cit. p. 164.

[6] É uma sensação que não queremos transgredir
inclusive, porque achamos que só nesse estado
desavisado, descontraído, blandicioso
poderemos deixar alguns talantes em sua alma
que sirvam para medir os tamanhos reais da vida
Esperamos que essa doce sensação de gratuidade
à saída do teatro, amanhã nas ruas, as coisas corriqueiras
ganhem outro significado para os senhores
apareçam fora dos seus gestos habituais. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Loc. cit.

[7] Se isso acontecer, se de alguma forma tivermos aberto a
sua segurança
para sentir que as definitivas formas da vida são transitórias
formas que nós criamos. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Loc. cit.

[8] De qualquer forma, não pretendemos inquietá-lo
aqui é um lugar de repouso e contemplação
Não queremos a sua participação
os únicos profissionais neste teatro estão no palco
Talvez à saída do teatro, amanhã nas ruas,
a sua participação possa se tornar mais firme, mais dominada,
mais imperiosa. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Loc. cit.

[9] viemos para compreender
obstinados procuradores da compreensão
a compreensão parece que é uma forma de debilitamento
da ação
um enfraquecedor da luta
ao contrário, achamos que é o seu deflagrador. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. p. 165.

[10] nosso objetivo é a gratuidade
a gratuidade é a máxima aspiração do homem
a gratuidade não é a ignorância da realidade
é o seu controle. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. p. 166.

[11] o voo do pássaro não refuta a lei da gravidade, confirma-a
não queremos a sua energia física
queremos a energia psíquica
esperamos que ela corcoveie dentro de você.
enlambuzem-se aí por dentro os seus sentimentos de mundo
e os desse espetáculo
que briguem, odeiem, encontrem-se e se repilam. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Loc. cit.

[12] não queremos portanto exortá-lo
a deixar de ser como é
queremos provar que você tem que ser como é
que a sua psicologia não é a sua escolha,
é o seu destino, é o seu fardo,
a sua raiz. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. p. 167.

[13] estamos aqui para nos contemplar a nós mesmos
alegre e ferozmente
porque temos certeza que o homem é o único ser capaz de
suportar a sua divisão
interior
e desfazer-se do homem dentro de si que não o deixa ser
humano. In VIANNA FILHO, Oduvaldo. Loc. cit.





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Confira:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360




Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti





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