Sobre A invasão
dos bárbaros e Papa
Highirte
dirigidos por Tin
Urbinatti.
Por Maria Sílvia Betti
Dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho
Sobre A invasão
dos bárbaros, encenação pioneira com o Grupo de Teatro de Ciências Sociais
dirigido por Tin Urbinatti em 1976.
Por Maria Sílvia Betti
Dramaturga Consuelo de Castro
Em
1976 vigorava no país, sob a ditadura implantada em 1964, a supressão dos
direitos civis e das liberdades de expressão e pensamento. Os integrantes do Grupo
de Teatro de Ciências Sociais da USP, dirigido por Tin Urbinatti, desejavam que
seu trabalho colaborasse ativamente com a luta do movimento estudantil contra o
regime e em prol da formação de um pensamento crítico. Com esse objetivo, os
integrantes pensaram em encenar Rasga
Coração, última peça de Oduvaldo Vianna Filho, concluída em 1974, o mesmo
ano de sua morte. Rasga Coração tinha
sido classificada em primeiro lugar no Concurso de Dramaturgia do Serviço
Nacional de Teatro nesse mesmo ano, e foi unanimemente aclamada como obra prima
do teatro brasileiro. Os trabalhos de Vianna eram referência para o Grupo, mas a
peça, logo após a premiação, havia sido proibida pela Censura tanto para
montagem como para publicação, o que tornou impossível que naquele momento os integrantes
tivessem acesso a uma cópia dela.
Com
esse impedimento, pensaram em montar A
invasão dos bárbaros, que Consuelo de Castro havia escrito em 1968 com o
título de À prova de fogo, e que em
1974 tinha sido inscrita no Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de
Teatro com o título Invasão dos bárbaros
ou À prova de fogo e classificada em segundo lugar.
A
peça tinha sido criada por ocasião do ataque sofrido por estudantes da então
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que haviam ocupado o prédio
da Faculdade e que nele se encontravam mobilizados. O ataque foi iniciativa de
grupos paramilitares de direita, e acarretou a morte de um secundarista, a
prisão de dezenas de estudantes, a dilapidação e incêndio do prédio da
Faculdade, a sua desocupação e a transferência dos cursos nele sediados para
instalações improvisadas no campus da Cidade Universitária Armando de Salles
Oliveira, no bairro do Butantã.
A
famosa “Faculdade de Filosofia”, localizada na Rua Maria Antônia 294, tinha
sido, desde o golpe, um polo de resistência e crítica ao regime militar, e Consuelo
de Castro, ainda estudante em 1968, havia participado do movimento estudantil e
dos debates políticos realizados. Sua peça era um documento vivo escrito no
calor da luta do movimento estudantil contra as forças da ditadura. Não poderia haver
escolha mais significativa para o Grupo de Teatro de Ciências Sociais.
Como
também a peça de Consuelo tivesse sido proibida para encenação e publicação,
Tin Urbinatti procurou a dramaturga e recebeu dela o texto para que fosse
montado pelo Grupo de Teatro das Ciências Sociais. Tin relata as palavras da autora
nesse momento: “Depois que
vocês montarem a minha peça, deem uma lida nessa aqui, que é de um parceiro
nosso, o Vianinha.” A peça era Papa Highirte.” A peça de Vianna seria encenada pelo Grupo logo após A invasão dos bárbaros.
Com a destruição
do prédio da Rua Maria Antônia em 1968, os cursos de Filosofia,
Ciências Sociais e Letras, que ali haviam funcionado até então, deveriam ter
sido transferidos para o campus, mas as obras de construção do prédio que lhes havia
sido destinado tinham sido paralisadas ainda em estágio inicial, o que acarretou
a instalação provisória deles em outros locais da Cidade Universitária: os barracões
de concreto, em que permaneceram até 1972, e depois as chamadas Colmeias,
conjuntos hexagonais modulados, também de concreto e sem caráter definitivo. Em
1976, oito anos depois da destruição do prédio da Rua Maria Antônia, as
instalações da futura Faculdade eram um ainda incipiente esqueleto de vigas sem
instalações elétricas ou hidráulicas.
Com
o início dos ensaios, Tin Urbinatti propôs ao grupo que o espetáculo ocupasse o
arcabouço do prédio abandonado, da mesma forma que as personagens da peça de
Consuelo e os estudantes em 1968 haviam ocupado a “Faculdade de Filosofia”. Tratava-se,
ao mesmo tempo, de assumir o caráter clandestino do espetáculo, uma vez que o
Grupo não tinha autorização da Reitoria da USP para realizá-lo. A proposta foi
debatida pelos integrantes e aceita, e as leituras, ensaios e discussões
internas de estudo se iniciaram.
A invasão dos bárbaros
colocava em pauta a necessidade de se encontrar uma resposta consequente diante
do momento político vivido e do movimento estudantil em sua militância contra a
ditadura. Vinha daí a sua pertinência: as questões de 1968 representavam para o
Grupo de Teatro uma forma de lançar atenção crítica para os problemas e
contradições da luta política daquele momento. Era necessário estabelecer um
paralelo entre as questões do contexto da peça (1968) e as do “aqui e agora” de
1975-76. Os desafios não eram poucos, pois além do receio da exposição do grupo
às forças da repressão, constatava-se também, entre as tendências presentes, a
existência de setores muito diferentes em suas posições: havia os excessivamente
moderados, que ficavam muito aquém da energia de luta dos estudantes, e havia os
que simplesmente entendiam que a ditadura estava com seus dias contados, e que
era urgente a realização ostensiva de passeatas e atos públicos.
A
peça de Consuelo de Castro inicia-se com uma assembleia em que uma questão
crucial é colocada: os estudantes, que em sua luta contra a ditadura tinham
ocupado o prédio da Faculdade de Filosofia, acabam de receber uma ordem de
desocupação a ser cumprida em 24 horas sob pena de prisão por parte das forças
policiais.
Para
uma das facções estudantis presentes, a desocupação é necessária, pois a
resistência poderá resultar num massacre puro e simples. Para a outra facção,
por sua vez, um massacre, caso aconteça, contribuirá para desmascarar a
ditadura e poderá levantar a adesão de outros setores da sociedade. Poucas
peças dentro da história do teatro brasileiro, anteriores e posteriores à peça
de Consuelo, colocam em pauta questões tão urgentes, tão imediatas, e de tão
grande envergadura em relação à matéria política representada dramaturgicamente.
A
concentração de A invasão dos bárbaros
no espaço (os quatro andares do prédio da Faculdade) e no tempo (o prazo dado para
a desocupação) torna mais agudos e urgentes os embates travados entre as
diferentes facções. A polarização das posições defendidas na peça é crescente:
para uns as condições não estão maduras para um enfrentamento de tão grande
porte, e a sociedade dificilmente se levantará caso a invasão ocorra, pois tem
outras prioridades de organização e de sobrevivência. Para outros, a
perspectiva revolucionária apontada pela Revolução Cubana fulgurava
intensamente como modelo, assim como a Ofensiva Tet, na Guerra do Vietnã, e a
luta dos estudantes no Maio de 68 francês, praticamente contemporânea aos
acontecimentos retratados na peça.
No
contexto de 1975/76, momento da encenação da peça de Consuelo pelo Grupo
dirigido por Tin, era igualmente intenso e acalorado o debate das lideranças
políticas do movimento estudantil. Entendia-se que era necessário reconstruir
os DCEs, as UEEs (União Estadual dos Estudantes), fortalecer as entidades
estudantis e lutar pela reconstrução da UNE, que tinha tido sua sede no Rio de
Janeiro bombardeada e incendiada pelas forças da ditadura, em 1964, e que logo
a seguir tinha sido posta na clandestinidade. Ao mesmo tempo, constatava-se que
estudantes e militantes mais jovens, que não tinham tido contato com o
movimento de 1968 e que estavam se iniciando na luta e na universidade nesse
contexto de 1976, ficavam alheios a qualquer discussão política ocorrida
anteriormente.
Para
o Grupo de Teatro de Ciências Sociais essa percepção ajudou a confirmar na
prática a relevância do papel que a encenação de A invasão dos bárbaros teria dentro desse contexto. Havia entre os
integrantes e militantes estudantis o projeto de elaboração do plano curricular de
uma universidade voltada para os interesses populares, ou seja, para as classes
trabalhadoras. A peça colocava elementos fundamentais para
que esses projetos fossem aprofundados, pois envolvia um questionamento e um
chamamento à participação assim resumidos nas palavras de Tin Urbinatti: “De repente, o estudante entra na
faculdade e se depara com toda aquela movimentação, aquela peça teatral, que
questionava e cobrava a sua participação na luta política do país. As pessoas
ficaram muito a fim de participar, de fazer alguma coisa. Muita gente,
inclusive secundaristas, calouros, vieram dizer que se sentiram cobrados na sua
passividade diante da realidade.”
Para o Grupo de Teatro de Ciências
Sociais o texto de Consuelo dialogava diretamente com essas questões, e o fazia
por meio de uma estética dramatúrgica voltada ao “realismo crítico”, e que
abrangia o estudo dos escritos de Lúkacs, das ideias estéticas de Marx e Engels,
de Brecht e de Fisher entre outros. As encenações eram seguidas por longos e acalorados
debates com o público e com os líderes das diversas tendências políticas que
atuavam na USP. O momento era de intensa agitação e mobilização: os estudantes
estavam se organizando para a construção do DCE - LIVRE (Diretório Central dos
Estudantes Alexandre Vannucchi Leme), e paralelamente havia intensa articulação
também em torno da reconstrução da UEE (União Estadual dos Estudantes).
Vários outros grupos de teatro
universitário nesse mesmo período interessaram-se em montar A invasão dos bárbaros, mas acabaram não
levando o projeto adiante por receio de entrar em rota de colisão com as
tendências políticas do movimento estudantil desse momento histórico. A
encenação da peça pelo Grupo de Teatro de Ciências Sociais foi, nesse contexto,
um ato de ousadia tanto política como estética.
Na prática, a preparação do
espetáculo acabou envolvendo a participação de outro grupo de teatro de
estudantes para que a estrutura dramatúrgica e o número de personagens pudessem
ser atendidos. Tin Urbinatti, pouco antes, havia ajudado na encenação de Os físicos, de Dürrenmatt, pelo Grupo de
Teatro de Biologia, também na USP. Nenhum dos membros desse grupo havia tido antes
qualquer contato com o teatro, e o trabalho de Tin como diretor foi
fundamental. A montagem da peça de Dürrenmatt e na sequência o começo dos
ensaios de A invasão dos bárbaros acabou
aproximando os dois grupos colaborativamente.
Como o espaço em que ia acontecer a
encenação de nada dispunha além de vigas de concreto em torno de áreas vazias, e
como o espetáculo precisasse de energia elétrica para sua iluminação, foi
preciso fazer aquilo que em linguagem popular é chamado de “gato”, estendendo fiação
elétrica conectada diretamente no quadro de luz do prédio vizinho, de Geografia
e História, até a área em a peça seria apresentada no prédio abandonado.
Miroel Silveira, diretor da ECA
(Escola de Comunicação e Artes da USP) na época, emprestou spots de iluminação que pertenciam a seu departamento. Os cartazes
de divulgação, dispostos em locais estratégicos do campus, faziam referência a
essa estrutura cênica improvisada, aproveitando-a para guiar os espectadores em
seu trajeto até o local do espetáculo. Assim, no Centro Acadêmico de Geografia
e História podia-se ver um cartaz enorme que dizia: “À prova de fogo. Você veio assistir? Siga o fio.” O trajeto devia
seguir a fiação elétrica estendida por aproximadamente cento e cinquenta metros
até o local da encenação, num trajeto acidentado e que obrigava os espectadores
a passarem sob uma cerca e a trilharem um trecho de terra.
A montagem de A invasão dos bárbaros representou uma iniciativa inédita na
história do teatro em sua relação com o debate político de sua época. Não
poderia ter havido destinação mais coerente e fiel ao trabalho de Consuelo de
Castro do que essa. Nas palavras de Tin Urbinatti, ao assistirem à peça, os
espectadores de 1976 “percebiam que aqueles jovens de 68 enfrentavam a
repressão de forma corajosa, altiva. Estavam ali enfrentando a repressão, na
rua, levando cacetada, tomando tiro, mas fazendo passeata. Não paravam, não
deixavam a ‘peteca cair’. Isso era um exemplo verdadeiro e que impulsionava o
estudante, calouro ou não, para lutar, para fazer alguma coisa”.
Em 1993, após a devolução do prédio
da Rua Maria Antônia à USP e antes de sua reforma, a peça de Consuelo de Castro
foi montada nele sob a direção de Aimar Labaki.
Sobre
Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna
Filho, na encenação pioneira com o Grupo de Teatro de Ciências Sociais dirigido
por Tin Urbinatti em 1976.
Por Maria Sílvia Betti
Diretor Tin Urbinatti
Uma
das preocupações principais dos integrantes do Grupo de Teatro dirigido por Tin
Urbinatti era como tratar, dentro dos trabalhos encenados, das questões e
conflitos que aconteciam na sociedade à sua volta. As discussões do Grupo eram
bastante voltadas à estética teatral e ao papel do teatro diante de seu tempo,
e assuntos da pauta política nacional e internacional reverberavam intensamente
nos debates.
Com
a censura e a sistemática proibição de trabalhos ligados ao pensamento político
de esquerda, as peças vetadas passaram a encontrar nos grupos amadores,
militantes e alternativos, um novo caminho para chegar ao público.
Esse
foi o caso de Papa Highirte, de
Oduvaldo Vianna Filho. A peça estava proibida desde sua premiação no Concurso
do Serviço Nacional de Teatro em 1968, e foi pela recomendação de Consuelo de
Castro que os integrantes do Grupo tomaram conhecimento do texto e tiveram
acesso a ele.
Uma
das principais expectativas dos integrantes era a de encontrar trabalhos em que
as questões abordadas fossem tratadas com um grau de elaboração estética capaz
de transcender o registro documental puro e simples. Os debates internos
indicavam que essa era uma preocupação crescente nessa fase formativa em que
todos estavam.
O
movimento estudantil procurava se reorganizar para lutar contra as
arbitrariedades do sistema, mas tinha inevitavelmente que lidar com a eclosão
de divergências internas inerentes à luta política de modo geral. A grande
maioria dos estudantes sentia-se tocada pelas questões sociais e políticas da
sociedade, mas se sentia distante dos debates teóricos das lideranças, cujo
teor abstrato não parecia ter conexões com a ação política propriamente dita.
Diante
desse contexto, o Grupo realiza uma primeira leitura do texto de Papa Highirte. A reação imediata foi,
nas palavras de Tin Urbinatti, “acachapante”: o texto tratava de temas centrais
da pauta de estudo dos integrantes, e abordava assuntos que recolocavam pontos
importantes para o debate do movimento estudantil. Ao mesmo tempo, aspectos centrais
de A invasão dos bárbaros
apresentavam-se de forma também na peça de Vianna, como, por exemplo, o chamado
foquismo (teoria do foco revolucionário, inspirada na luta de Che Guevara) e a
ação direta (perspectiva da luta armada).
Papa Highirte
é a alcunha de Juan Maria Guzamon Highirte, ditador deposto do poder em
Alhambra, pequena república fictícia latino-americana, e exilado na também
fictícia Montalva. A peça apresenta-o em suas confabulações conspiratórias com
o intuito de voltar ao poder. Paralelamente, apresenta a preparação de um
atentado contra a sua vida planejado por Diego Mariz, jovem militante de uma
organização de luta armada que deseja vingar a morte do companheiro Manito,
assassinado em tortura sob o governo Highirte.
Manito
e Mariz, na peça, companheiros na luta militante no passado, representam as
duas perspectivas opostas de ação política intensamente discutidas no movimento
estudantil nesse momento. Para Manito o
exemplo heroico de um revolucionário disposto a morrer na luta se necessário
era essencial para desencadear a insurgência do povo. Para Mariz as revoluções
não careciam de heróis, e sim de lideranças dispostas a organizar a luta por
etapas.
Tratavam-se de perspectivas que reverberavam intensamente questões debatidas nessa época dentro do movimento
estudantil e das organizações de esquerda no Brasil e na América Latina.
A encenação de Papa Highirte dirigida por Tin Urbinatti desencadeou acalorados
debates dada a grande afinidade entre seus temas e as questões que se
apresentavam para o movimento estudantil daquele momento. O espetáculo teve plateias
lotadas durante toda a sua temporada, e foi assistido também por dois nomes
consagrados do teatro profissional: a atriz Lélia Abramo, e o ator Sérgio Britto,
que viria a montá-la no Rio de Janeiro, no Teatro dos Quatro, logo após sua
liberação em 1979.
*****
SERVIÇO:
Papa Highirte
Papa Highirte
Autor: Oduvaldo Vianna Filho -
Vianinha
Editora: Temporal
ISBN 13: 978-85-53092-02-4
Páginas: 120
Papa Highirte – Oduvaldo Vianna Filho
- Vianinha
Tel.: (011) 3492-3797
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Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)
Tel.: (011) 3492-3797
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