Bread & Puppet Theater, radicalismo
e história [1]
Por Mayumi
D.S. Ilari [2]
RESUMO: O presente trabalho analisa a trajetória do Bread & Puppet a partir de sua mudança do teatro de agitação de rua da Nova Iorque dos anos 1960 para o campo, em Vermont, onde o grupo consolidaria o Circo de Ressurreição Doméstica, um evento teatral que seria realizado anualmente por quase três décadas, e que chegou a aglutinar plateias de dezenas de milhares de espectadores. Partindo de leituras de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo e a instituição cultural da vanguarda, analisaremos a extinção do Circo, em meio à euforia nostálgica de um público “pós-moderno”, ávido por lazer e entretenimento.
Palavras-chave: teatro
estadunidense, teatro político, materialismo cultural
ABSTRACT: This paper analyses Bread and Puppet’s change from street agitation theater in the city of New York in the 1960s to rural Vermont, where the theater consolidated the Domestic Ressurection Circus, a theatrical event that was presented annually for almost three decades and that attracted tens of thousands of spectators. Based on Fredric Jameson’s readings of post-modernism and the cultural institution of the avant-garde, the end of the Circus is hereby analysed along with the nostalgic euphoria of our “postmodern” leisure and entertainment seeking audiences.
Keywords: American drama, political theater, cultural
materialism
O
Bread & Puppet Theater surgiu junto à vanguarda que se criou na cidade de
Nova Iorque nos anos 1960, atuando inicialmente em espetáculos e protestos de
rua. Nesse período, o grupo alcançou grande renome, sobretudo em Paris e em
outras cidades europeias (mas não em Nova Iorque, como se poderia imaginar), e
seu trabalho foi reconhecido tanto como parte importante da tradição de
vanguarda do século XX quanto como um exemplo do desenvolvimento da vanguarda estadunidense
dos anos 1960.
Após
sete anos em Nova Iorque, atuando ativamente em pequenos teatros e em
espetáculos maiores de rua, o grupo instalou-se em uma fazenda em Vermont, onde
passaria a realizar grandes espetáculos ao ar livre, desenvolvendo um trabalho
político calcado na simplicidade e na imaginação criativa, que não se deseja
apenas teatro de protesto, mas um teatro útil, em que os elementos sejam
reduzidos ao essencial. Radicado e atuante até hoje em Vermont, o grupo, após
uma série de mudanças formais, consolidou o Circo de Ressurreição Doméstica (Domestic
Ressurection Circus), um espetáculo que reunia uma mistura complexa de
formas de animação e um desejo claro de apresentar alternativas à cultura de
massas. No final dos anos 1990, o Circo chegou a atrair uma plateia de
60.000 pessoas; todavia, as contradições inerentes ao próprio sucesso do evento
levariam ao esvaziamento relativo de seu significado, fazendo com que o grupo,
para permanecer fiel aos ideais que o constituem, desse uma nova forma a suas
apresentações.
Os
espetáculos épicos produzidos pelo Bread & Puppet nascem do próprio
processo de criação e produção. O grupo opta por um processo coletivo,
alternativo e artesanal e faz uso de marionetes, máscaras, desenhos, faixas,
pernas-de-pau, paradas, etc. Em vários espetáculos distribui-se pão ao público,
untado com pasta de alho (aioli), buscando-se assim demonstrar seu parentesco
com o teatro, que, mais do que puro entretenimento e diversão, mais do que um
lugar de comércio onde se paga para se obter algo, deve, segundo P. Schumann,
parecer-se mais com o pão, parecer-se mais com uma necessidade.
É fato
que, em nossa civilização atual, fundada na lógica da mercadoria analisada por
Marx, o consumo torna-se uma prática idealista total: “Assim como as
necessidades, a cultura, o saber, todas as forças próprias do homem mostram-se
integradas como mercadoria na ordem de produção, e se materializam em forças
produtivas para serem vendidas, hoje em dia todos os desejos, as exigências,
todas as paixões e todas as relações abstratizam-se (e se materializam) em
signos e em objetos para serem compradas e consumidas” (Baudrillard,
2002, p. 207). Nesse contexto, desprovido da estrutura de sentimento que
permitira, no período de criação do Bread & Puppet, acreditar na possibilidade
próxima de um mundo mais justo, continuam as tentativas do grupo de viabilizar
uma Arte possível em meio à euforia nostálgica de um público ávido por lazer e entretenimento,
dadas a instituição cultural da vanguarda, a transformação da contracultura em
mercadoria e a impressão, desejável à cultura pós-moderna, de um espetáculo de nostalgia.
Fredric
Jameson (1989, p. 181; 207) aponta que a ideia mais recorrente sobre os “anos 60”
(the 60s) é a impressão de que, ali, tudo era possível, de que este foi
um período de liberação universal, de uma liberação mundial de energias – os
anos 1960 foram o período em que os “nativos” tornaram-se seres humanos,
tanto interna quanto externamente: os colonizados internos do Primeiro Mundo
(minorias, marginais, mulheres), como também os sujeitos externos e seus
“nativos” oficiais, conquistam o direito de falar em uma nova voz coletiva,
jamais dantes ouvida no palco do mundo. Contudo, cabe lembrar também que essas
novas “identidades” coletivas, ou esses novos “sujeitos históricos” (subjects
of history), possibilitados dada uma conjuntura maior e anterior (que
inclui, na década de 1950, o macarthismo, a expulsão dos comunistas do
movimento trabalhista estadunidense, entre outros), buscando novas formas de
expressão e constituindo novas categorias sociais e políticas, acabaram
esmagando a noção clássica de classe social. “Liberados” das classes sociais,
esses novos grupos, agora atomizados, vieram a ocupar espaços que lhes seriam
vetados nas instituições clássicas da política de classes anterior, e a um só
tempo realimentaram e incentivaram o fim da consciência de classe operária. Na realidade,
Jameson aponta como os anos 1960 foram um período de crescimento do capitalismo
em escala global, um período de transição de um estágio infraestrutural do capitalismo
para outro, e que produziu concomitantemente uma imensa soma de energias e forças
sociais de mudança que se configurariam como uma ilusão histórica, redundando, algumas
décadas mais tarde, no capitalismo tardio, na chamada globalização.
Nesse
processo dialético em que liberação e dominação mostram-se profundamente imbricadas,
o Bread & Puppet buscou desenvolver uma forma(/conteúdo) de arte crítica de
seu tempo, acreditando em sua capacidade de conscientização e transformação. O
Circo de Ressurreição Doméstica nasceu, assim, dos anseios e objetivos radicais
da contracultura dos anos 1960 e 1970. Desejava-se criar um circo que não fosse
somente uma coleção de fatos extraordinários arbitrariamente justapostos. Tratava-se
de uma grande atração externa, alegórica em termos de conteúdo, integrada à
paisagem, ao tempo real, a rios, montanhas e animais reais, algo a ser
observado em seu “ambiente”. Buscava-se dar um sentido maior aos eventos, ao
usar o simbolismo abstrato e imediatamente evocativo dos bonecos e máscaras,
abrindo espaço também para piadas e puro nonsense, necessariamente
fazendo uso de recursos épicos. Essa abertura marcou o desenvolvimento do
Circo, e influenciou sua forma até o último evento, em 1998: o Circo,
apresentado anualmente por quase três décadas, sempre durante o verão, tinha um
dia de duração (tarde e noite). Iniciava-se com a apresentação de breves
espetáculos paralelos e simultâneos (sideshows), seguidos de um circo
de bonecos locado em uma área circular, um pageant e apresentações
noturnas até as 22 ou 23h. Durante o evento, Schumann distribuía seu pão em uma
“Loja de Pão Grátis”, e nunca se cobrou entrada para os espetáculos, embora
doações fossem bastante solicitadas. John Bell afirma que, enquanto os
espetáculos paralelos apresentavam ultrajes e prazeres da vida cotidiana, e o
circo era uma grande celebração das possibilidades ridículas da mesma, o pageant
caracterizava-se muito mais como um espetáculo sobre a natureza, que
assiste silenciosamente as loucuras da humanidade “civilizada” tentando ser e
parecer mais do que é possível, moral ou justo. Essas tentativas, boas e más,
invariavelmente terminavam em perda e então renovação.
Os pageants
organizados pelo Bread & Puppet, bem como outros concebidos e encenados
nos Estados Unidos no início do século XX, de natureza política, tiveram forte influência
de raízes estrangeiras, particularmente da Rússia revolucionária, em que grandiosos
festivais de rua celebravam a revolução bolchevique com bonecos gigantes, máscaras,
veículos a motor, barcos, paradas flutuantes, bandas de metais e a participação
de centenas de amadores (Guinzburg, 1992) [3]. Pensando na cultura estadunidense
no contexto atual, Bell (1997, p.6) afirma que os pageants são uma
exceção, na medida em que são espetáculos estranhos, não movidos a energia
elétrica e que caminham em direção contrária à cultura oficial; disso decorre
que os limites relativamente estreitos do teatro tal como definido pela cultura
estadunidense são explodidos pelo trabalho de grupos como o Bread & Puppet,
de tal modo que frequentemente os críticos apresentam pouco preparo para
entender o que é o Nosso Circo de Ressurreição Doméstica, uma vez que esta não
é “um happening politicamente correto/ de contracultura/ retro-hippie/ com
bonecos, ou “sobra requentada” dos anos sessenta”.
Desde
o primeiro Circo de Ressurreição Doméstica, na década de 60, o relógio da História
avançou consideravelmente. Em 1998, Vermont havia mudado, assim como a economia
cultural da vanguarda. O Circo havia se tornado o evento anual central do Bread
& Puppet. Os números de espectadores dos eventos de verão foram aumentando
aos poucos, de tal modo que, em meados dos anos 1980, não apenas o Circo pagava
a si mesmo, como havia se tornado a maior fonte anual isolada de recursos para
o teatro; o Circo era o evento para o qual se construíam os bonecos e eram
inventadas as novas músicas, temas, textos e movimentos. Todavia, tornou-se aos
poucos uma espécie de “contracultura instituída” que envolvia mais de 200
participantes voluntários, atraindo para as redondezas da cidadezinha de Glover
plateias de dezenas de milhares de pessoas. Segundo Bell, o aparente oxímoro da
“tradição da contracultura” (assim como muito da “instituição da vanguarda”)
caracteriza não apenas o Circo, mas a situação pós-anos 60 em Vermont, e, por
extensão, grande parte da cultura estadunidense pós-1960.
F. Jameson (1995, p. 6) aponta
como traços constitutivos do pós-moderno uma nova falta de profundidade, que
encontra prolongamento na “teoria” contemporânea e em toda uma nova cultura da
imagem ou do simulacro; e um consequente enfraquecimento da historicidade,
entre outro. Aponta, ainda, para o fato de que a produção estética contemporânea
integrou-se de modo geral à produção de mercadorias. É interessante observar de
que modo esses sinais dos tempos atuaram em torno da Arte realizada pelo Bread
& Puppet, a ponto de descaracterizar, em grande medida, o Circo de
Ressurreição Doméstica.
A plateia
do Circo modificou-se bastante da década de 1970 para a década de 1990. À
medida que o número de participantes crescia, tornou-se necessária a criação de
um comitê responsável pela logística do evento, formado por habitantes locais e
dirigido democraticamente, diferentemente da direção artística do grupo,
centrada em Peter Schumann. A organização da alimentação, dos espaços para
estacionamento e acampamentos passou a exigir maior atenção, e desenvolveu-se
um sistema de reciclagem de lixo que, graças à participação da plateia,
mostrou-se bastante eficiente. No final dos anos 1970, carros estacionados
começaram a congestionar as estradas públicas, e o grupo pediu aos vizinhos que
cedessem parte de seu terreno como estacionamentos provisórios. O que começou
como um favor acabaria por se tornar um negócio altamente lucrativo para esses
proprietários de terra, que trataram de providenciar estacionamentos e zonas de
camping. O pão produzido pelo Bread & Puppet passou a ser produzido em
escala cada vez maior, assado em um forno de cerca de três metros. Com o
aumento de participantes, a alimentação tornou-se algo por demais complicado
para o grupo administrar, e acabou-se convidando vendedores de comida, que por
sua vez aumentaram em número, até o ponto de invadir o espaço reservado ao
Circo, no início da década de 1980. Solicitados a saírem desse espaço, os
vendedores passaram a se instalar na estrada estadual, perturbando o trânsito e
os vizinhos que não frequentavam o Circo. Finalmente, foram instalados em uma parte
do espaço reservado à área de acampamento, em uma espécie de “praça de alimentação”
ao ar livre. Cães trazidos pelos participantes, cuja população começou a aumentar
descontroladamente, e o uso de álcool e drogas tornaram-se outros problemas a serem
resolvidos. No que tange a esses dois últimos, o grupo concluiu que o uso de
drogas é um aspecto inevitável na cultura estadunidense como um todo, e que sua
presença no Circo era reflexo dessa cultura, e não, como afirmaram moradores
locais descontentes, causado pelo evento. Embora a regulação individual
parecesse autoritária e dissonante do espírito aberto do evento, decidiu-se por
pedir aos participantes, através de cartas, declarações nos jornais e nos
programas, que não trouxessem drogas ou álcool para o Circo. Os pedidos
surpreendentemente, atendidos, porém o consumo transferiu-se para as áreas de camping,
e os administradores destes não conseguiram aplicar medidas parecidas.
O
número de campings e de vendedores, legais e ilegais, aumentou, até o ponto que
uma trilha para o Circo tornou-se um grande bazar temporário, onde se
encontrava de tudo, de pizza e capuccino a jeans boca-de-sino, roupas de
“tribos” urbanas e drogas. Esses elementos dos acampamentos, das lojas, etc.,
que não tinham ligação com o evento do Circo, tornavam-se, indiscriminadamente,
sobretudo para os frequentadores mais jovens, a “experiência Bread &
Puppet”. Alguns membros do grupo descobriram, inclusive, que alguns dos
visitantes jamais se dirigiram ao Circo, permanecendo todo o tempo nos acampamentos.
Uma espécie de cultura paralela, de festas, comércio, lixo e muita droga, havia
se instalado nas áreas de acampamento, indiferente às questões políticas/
ambientais tratadas no Circo. Parte do sistema, da cidade, e de todos os tipos
de seus “demônios vagos” pareciam aportar junto com essas multidões.
Em
meados dos anos 1990, quando já haviam ruído há muito os ideais revolucionários,
a ideia de uma alternativa à cultura capitalista estadunidense tornou-se inseparavelmente
misturada com uma visão diferente, mais corrente, de contracultura, frequentemente
dissonante das propostas do Bread & Puppet. De alguma forma, o acontecimento
do Circo se tornara uma espécie de opção de consumo “alternativa”, semitragada
pelo sistema. No Circo apresentado em 1998, um espectador de longa data foi morto
em uma briga de bar, em um dos estacionamentos, por um motivo “relacionado a um
cachorro-quente”. Nesse ano, J. Bell relata imagens noturnas de uma das áreas
de camping - na semi-escuridão, dentre as centenas de carros e barracas que
enchiam os campos, avistavam-se caixas de som localizadas em diferentes pontos,
competindo com músicas de ritmos diferentes, ao lado de aparelhos de TV,
fogueiras e cadeiras; havia até mesmo uma discoteca completa, com uma pista de
dança portátil, DJ e show de luzes; uma banda de rock barulhento cujos músicos
se apresentavam vestidos com bermudas coordenadas, tocando música instrumental
ouvida por surfistas nos anos sessenta – uma grande festa adentro, com toda
a intensidade de uma pequena cidade. Guy Debord afirmou, acerca do
espetáculo, que
Considerado
em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo
de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe
é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas
formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto
de divertimentos – o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na
sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o
consumo que decorre dessa escolha. Forma e conteúdo do espetáculo são, de forma
idêntica, a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente
(Debord 1997, p. 14)
O
sucesso do evento paralelo ao Circo, localizado nos acampamentos e denominado livremente
como “a experiência Bread & Puppet”, acima descrita, demonstra o quanto grande
parte dos frequentadores dos últimos Circos preferiam “a imagem à coisa, a
cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser” (Feuerbach,
citado em Debord 1997). De fato, o simulacro festivo dos anos 1960 criado em
torno do Bread & Puppet provia uma festa à parte, um consumo ou degustação
“espetacular” de uma época, esvaziado seu conteúdo político – que podia, de
fato, ser vivenciado, em alguma medida, no Circo oferecido ao lado. O
“esmaecimento do afeto” da cultura pós-moderna descrito por Jameson, com toda
sua frivolidade gratuita e eufórica, batia continência.
Ao
encerrar-se o Circo de 1998, Schumann decidiu que ele seria o último.
Refletindo sobre a cobertura jornalística do evento, e nos muitos anos de
Circo, em geral, observou o quanto as intenções claras do grupo foram
largamente omitidas pela imprensa, substituídas pela visão de um “espetáculo de
nostalgia dos anos 1960”, que conscientemente evitava o verdadeiro conteúdo das
produções do Bread & Puppet. Encarar sua proposta a sério equivaleria a
falar de assuntos estranhos, e certamente indesejáveis, à cultura pós-moderna.
Jameson
afirma que uma das dificuldades em especificar o pós-modernismo (que se inicia,
segundo ele, em algum lugar entre 1972-74) (Jameson, 1989, p. 204), está em sua
relação parasitária e simbiótica com a Alto Modernismo:
De
fato, com a canonização de um Alto Modernismo escandaloso, feio, dissonante, amoral,
antissocial e boêmio, ofensivo às classes médias, e sua promoção justamente à
condição de alta cultura em geral, devido à sua instalação na instituição acadêmica,
o pós-modernismo emerge como um meio de abrir espaço criativo a artistas agora
oprimidos por aquelas categorias modernistas a partir de então hegemônicas de
ironia, complexidade, ambiguidade, temporalidade densa e, particularmente,
grandiosidade estética e utópica. (...) O Alto Modernismo e a cultura de massa
desenvolvem-se em uma inter-relação e oposição dialética uma para com a outra.
É justamente o enfraquecimento de sua oposição, e uma nova fusão das formas da
alta cultura e da cultura de massas que caracteriza o pós-modernismo (Jameson
1989, p. 195-6).
O
pós-modernismo, pois, não se opõe a coisa alguma. Ele constitui justamente a própria
estética hegemônica ou dominante da sociedade de consumo, e serve à sua produção
de mercadorias como um laboratório de modas e formas novas. Ainda que todos os
seus traços formais já estivessem presentes no alto modernismo anterior, a
diferença é que estes tornaram-se agora uma dominante cultural, com uma
funcionalidade socioeconômica precisa.
A
tradição marxista mostra que, longe de ser algo totalmente distinto, esta nova sociedade
não é senão um terceiro estágio do capitalismo, um estágio mais puro do que qualquer
um dos outros que o antecederam. Nele, dissolve-se a fronteira entre a alta
cultura e a chamada cultura de massa, e surgem novos textos infundidos com as
formas, categorias e conteúdos dessa mesma indústria cultural tão veementemente
denunciada pelos ideólogos do modernismo. Desprovido também da História, o
indivíduo pós-moderno é levado a viver sempre e apenas o presente, e tem como
única forma de agência o poder (ou não) de consumir. Nesse contexto, em que ocorre
uma ruptura entre forma e conteúdo, o Circo do Bread & Puppet foi tomado
como uma forma alternativa, nostálgica e espetacular de consumo, sobretudo por frequentadores
mais jovens. Ainda assim, o grupo permanece no século XXI com suas
apresentações de cunho aberta e declaradamente político, avesso à mídia e à
crítica que consideram seu teatro ultrapassado, exótico ou nostálgico, e segue acreditando
na Arte como um modo de manter acesa a ideia de liberdade, que eventualmente
possibilite a percepção da relação dialética entre agência e estrutura. Em um mundo
em que o “Mal” já não tem rosto, em que se tornou impossível figurar presenças abstratas
como “O Capital”, o Bread & Puppet segue reformulando seu teatro épico e político,
apresentando seus homens de terno preto, seus imensos dragões e monstros destruidores
e suas personagens solo gorduchas que incorporam a ganância, o egoísmo, o poder,
o dinheiro, a maldade, etc., apresentando uma crítica específica da civilização
e do mundo posterior ao capitalismo industrial, no final do século XX e início
do século XXI. Ernst Bloch (citado em Jameson 2000, p. 366) denomina
“Esperança” (“Hope”) a tensão permanente da realidade humana rumo a uma
transformação radical de si mesma e de tudo a seu redor, rumo a uma
transfiguração utópica de sua própria existência e de seu contexto social. Se o
futuro está estruturalmente inerente no presente, queremos acreditar que
possamos manter viva a Utopia de imaginar um outro sistema, um outro mundo,
melhor.
Referências
BAUDRILLARD,
Jean. O sistema de objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BELL,
John. Landscape and Desire.
Glover, VT: Bread & Puppet Press, 1997.
DEBORD,
Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contratempo, 1997.
GUINSBURG,
Jacó. Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992.
JAMESON, Frederic. Postmodernism,
or, The Cultural Logic of Late Capitalism. New York: Verso, 1995.
_______. “Periodizing the Sixties”
in The Ideologies of Theory, Essays 1971-1986, Volume 2, The Syntax of History,
1989.
_______. “To Reconsider the
Relationship of Marxism and Utopian Thought” in Michael HARDT and Kathi WEEKS
(eds.) The Jameson Reader. Oxford, Blackwell, 2000.
[1] Publicado originalmente em Revista
Crop – n. 13/2008. Revista de Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês. www.fflch.usp.br/dlm/crop
Ilari, M. D. S. Bread & Puppet Theater, Radicalismo e História p.
128-138.
[2] É docente do Departamento de Letras
Modernas da Universidade de São Paulo, na Área de Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês. Mestre em Teoria e História Literária pela Universidade
Estadual de Campinas e doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
pela Universidade de São Paulo, trabalha com literaturas de expressão inglesa,
e pesquisa temas relacionados ao teatro e às dramaturgias estadunidense e
britânica contemporâneas e à sua história e crítica. Pesquisa também o teatro
de animação nos contextos de língua inglesa e no âmbito do teatro popular
brasileiro.
[3] Segundo Guinsburg, a evolução da atividade teatral no interior de círculos operários alcançou na Rússia revolucionária sua melhor formulação como projeto de arte independente e de expressão de classe, e permitiu a radicalização em torno do binômio arte/política.
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