Dois aspectos da atualidade de Rasga coração. Por Maria Sílvia Betti


Dois aspectos da atualidade de Rasga coração. Por Maria Sílvia Betti [1]

Especial para o Blog da Cia. Fagulha


Trabalhadores do teatro:
Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, autor de Rasga coração, e seu pai, Oduvaldo Vianna.



Síntese

Ao colocar em foco as aspirações e os enfrentamentos políticos e afetivos de três gerações de uma família de pequena classe média urbana do Rio de Janeiro, Rasga coração traz à pauta os primeiros setenta anos da vida histórica e política do país no século XX.
Dentro desse escopo temporal, valores e padrões de vida e pensamento considerados inovadores no presente dramático parecem desmentir e superar os das gerações e épocas que os precederam. Presente e passado entrecruzam-se nos planos elípticos dos tempos representados e deixam entrever repetições perturbadoras. O novo nem sempre é revolucionário, e o revolucionário nem sempre é novo, escreve o autor, Oduvaldo Vianna Filho, no prefácio do texto.
Essa observação, tomada por ele como mote da peça, tem um papel sem dúvida desafiador, já que Rasga coração foi escrita em plena vigência de um governo ditatorial e sob a égide da censura prévia de todos os meios de comunicação. Antigos ou do passado eram, no momento de finalização do texto, os grandes momentos de luta política travados por diferentes setores da esquerda em organizações militantes. Também do passado eram as experiências que a ditadura sufocara, de construção do grande projeto épico e popular de cultura do CPC, e de mobilização de centenas de produtores culturais e artísticos cujo trabalho se ligava estreitamente às classes trabalhadoras urbanas e rurais. Novos e do presente, por outro lado, era a expansão nascente de uma rede televisiva de alcance nacional e de uma indústria cultural por meio da qual tinham passado a circular elementos da contracultura estadunidense já devidamente aclimatados ao âmbito da cultura de consumo. Rasga coração constrói uma síntese de todas as forças históricas e políticas que compõem esse amplo painel épico da vida do país.
Ler e discutir essa peça derradeira de Vianna nos tempos em que vivemos foi se tornando, ao longo do tempo, uma tarefa cada vez mais desafiadora: além de tratar de questões históricas e de lutas políticas de épocas precedentes, a peça tem uma estrutura dramatúrgica nada fácil e nada óbvia, e encontra-se atualmente na contramão dos interesses e percepções dominantes nas áreas da cultura institucionalizada.
Vivemos em tempos de estéticas fragmentadas e fragmentadoras da percepção. Vivemos cercados por estímulos descontínuos, e por fluxos midiáticos intensos e fugazes. É sintomático, neste contexto em que estamos, que desde 1974, quando Rasga coração foi concluída, e de 1979, quando estreou após sua tardia liberação, não tenhamos voltado a ter outro trabalho teatral que, munido das ferramentas da dramaturgia, realizasse ou mesmo esboçasse uma tentativa de síntese das questões políticas do país a partir de sua materialidade histórica.
Mais sintomático ainda é constatarmos que Rasga coração, que traz à pauta questões ainda não plenamente debatidas e compreendidas da vida política do país no século XX, tem sido recorrentemente preterida ou mesmo suprimida nas pautas de estudo formativo dentro e fora das escolas de teatro. Por quê? Talvez por se tratar de um trabalho que empreende uma abordagem histórica ampla e totalizante. Talvez por não ter optado por alegorizações cênicas de formulações teóricas pós-modernas ou pós-dramáticas. Talvez por ter preferido figurar a materialidade miúda da luta pela sobrevivência e pela militância anônima e clandestina.
Paradoxalmente esses são, precisamente, os aspectos que se ligam à sua singularidade e ao papel que, diante de tantos desafios, a peça foi enfrentando ao longo do tempo. O que se pode dizer é que, apesar de tantos aspectos adversos, a potência estética e dialética de Rasga coração continua a pulsar intensamente na consciência de todos os que pensam o país sob o prisma da classe trabalhadora e de sua história de lutas.

Força política da palavra poética

Rasga coração toca num ponto nevrálgico para as questões políticas, abordadas pelo prisma do convívio intrafamiliar e intergeracional de seus personagens: há revolução latente e pulsante na sobrevivência sofrida e no cotidiano entrecortado de desejos do protagonista, e também no de milhares de outras criaturas no solo histórico do país. Há aprendizado latente na labuta cotidiana de centenas e centenas de vidas militantes, análogas às das personagens da peça, que se organizam para ações agora talvez irreconhecíveis como expedientes de luta para as gerações nascidas na contemporaneidade pós-moderna que nos cerca. Nesta, a mobilização para a luta liga-se estreitamente às agendas propagadas no âmbito midiático, em que tudo se organiza como produto e se volatiliza de forma contínua.
A peça de Oduvaldo Vianna Filho trata a palavra poética como elemento potente e decisivo para figurar tanto a experiência histórica como a mobilização politizadora desejosa de transformação:


Como é que um pai que se preza pede a um filho que se proteja, se cuide, se poupe, que não lute, se despedace cicatrizes, gilvazes fraturas punhaladas rasga o coração na ponta de todas as dores filho meu, “tu choraste em presença da morte? na presença de estranhos choraste? não descende o cobarde do forte: pois choraste, meu filho não és!” Luta menino te quero aleijado, marcado a fogo mergulhado, em batalha que a vida bate e brilha no fundo das lutas... (Senta à mesa, escreve) ...olha uma sugestão de plano de batalha...


As palavras de Manguari no trecho acima fazem eco à constituição poética do país por meio do imaginário romântico de Gonçalves Dias.


...sou lutador, Nena, venho das desistências, paixões caladas, deboche, solidão, isolamento, fome, cadeia, fui fabricado na miséria humana, Nena... sou de boa cepa... sou um vencedor... tenho fé no fundo do poço...


A empenhada conclamação do filho Luca à militância política passa pelo uso envolvente da palavra como elemento de construção de uma consciência de luta:

...brigar, moço, brigar, é o sal da terra, teu pai é o Manguari Pistolão.


O tecido histórico de que se compõe Rasga coração é constituído, paralelamente, por material linguístico proveniente de diferentes matrizes sociais: gírias portuárias, expressões ligadas ao baixo meretrício no início do século, material publicitário veiculado em bondes, palavras de ordem de diferentes momentos políticos, e expressões de enfrentamentos sucessivos nas lutas militantes abordadas. A historicização das ações representadas apoia-se, em grande parte, no tratamento dado a esse grande acervo sonoro e linguístico registrado pelo autor e pela jornalista Maria Célia Teixeira na pesquisa de base que realizaram. O uso que lhe é dado no texto caracteriza-se como expediente épico de grande força sugestiva.
Nos tempos atuais, compilações de termos e expressões de épocas diversas tendem a ser agilizadas pela internet ao mesmo tempo em que as percepções sobre seus contextos históricos diversos tendem a se tornar difusas e descontínuas. Rasga coração não perde de vista, em nenhum momento, a ligação que todo o cabedal léxico pesquisado possui com os processos sociais e políticos que lhe deram voz. Isso dá à peça uma qualidade ainda não superada de empenho artístico, poético e político de construção. Trata-se, sem dúvida, de mais um elemento que configura a sua atualidade.
Em tempos como os nosso, de deshistoricização acelerada, Rasga coração utiliza a palavra como elemento capaz de construir sentidos, e de expressar consciências. Um uso sem dúvida corajoso e oportuno, constituído na contramão das vogas estéticas e teóricas dominantes.




[1] Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

Livros:

Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017), e Oduvaldo Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).

Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy), 2013.

Organizadora, prefaciadora e autora dos textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018) e Papa Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho.

Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004).

Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams. 


Artigos recentes:

Onze livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/02/onze-livros-para-o-conhecimento-do.html>.

Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.

"The Piscator Notebook", de Judith Malina: apontamentos de análise sobre o registro de um processo formativo. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/02/the-piscator-notebook-de-judith-malina.html>.

Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (in Ingrid Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).





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SERVIÇO:


Conheça:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360



Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti











Tel.: (011) 3492-3797


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