Onze
livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil [1]. Por
Maria Sílvia Betti [2]
Onze livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil.
Resumo: Este texto apresenta a
versão atualizada de Dez livros para o
conhecimento do teatro norte-americano no Brasil, elaborado para o Primeiro Guia Bibliográfico da USP.
Palavras-chave: Teatro estadunidense moderno; dramaturgia estadunidense moderna; história do teatro; crítica teatral.
Abstract:
This text presents the updated version of Ten
books for the knowledge of the North American theater in Brazil, prepared
for the First Bibliographic Guide of USP.
Keywords: Modern U.S. Theatre; Modern U.S. drama; theatre history; theatre criticism.
INDICAÇÕES
1. “Panorama do rio vermelho. Ensaios sobre teatro
americano moderno.” Iná Camargo Costa.
2. “Rumos do teatro moderno”.
John Gassner.
3. “Teatro Vivo”. Elmer
Rice.
4. “Um sonho de paixão”. Lee Strasberg.
5. “Nossa cidade”.
Thornton Wilder.
6. “O zoológico de
vidro”. “De repente no último verão”. “Doce pássaro da juventude”. Tennesse
Williams.
7. “A morte de um caixeiro
viajante e outras quatro peças” (“O homem de sorte”, “Todos eram seus filhos”,
“A morte do caixeiro viajante”, “As bruxas de Salém”, “Um panorama visto da
ponte”). Arthur Miller.
8. “Longa jornada noite
adentro”. Eugene O’Neill.
9. “Quem tem medo de
Virginia Woolf?”. Edward Albee.
10. “Quatro Peças” de
Sam Shepard (“La turista”, “Angel City”, “Oeste verdadeiro”, “Mente mentira”.)
11. “Dramaturgia
Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos.” Maria Sílvia Betti.
Critérios:
foram indicadas edições de textos traduzidos no Brasil e que se encontram
disponíveis nas Bibliotecas da USP. Foram indicados livros que contemplam uma
abordagem histórico-crítica (itens 1 a 3), o conhecimento de técnicas
interpretativas desenvolvidas na especificidade do teatro estadunidense (item
4) e o conhecimento de peças fundamentais de seu moderno repertório
dramatúrgico (itens 6 a 10).
O teatro estadunidense moderno, seja sob o
ponto de vista de sua dramaturgia, seja sob o de suas concepções cênicas e
processos interpretativos, esteve entre as referências importantes para a modernização
que se processou no teatro brasileiro a partir do final da década de 1940.
Peças do repertório dramatúrgico estadunidense do segundo pós-guerra foram encenadas
por companhias teatrais responsáveis por importantes transformações no teatro
brasileiro como os Comediantes, o Teatro Experimental do Negro, o Teatro
Brasileiro de Comédia, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. “À margem da vida”
(The glass menagerie), de Tennessee
Williams, dirigida por Alfredo Mesquita em 1947, representou o passo inicial
para a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia que se daria a seguir, e
“Lembranças de Bertha” (Hello from Bertha),
do mesmo autor, foi não apenas estudada por José Renato em seu período
formativo na Escola de Arte Dramática, em 1951, mas, posteriormente encenada
sob sua direção em 1953. Igualmente digno de nota é o fato de Theatre in the Round, livro da norte-americana
Margo Jones sobre o espaço cênico em arena, ter inspirado
a José Renato a criação do Teatro de Arena de São Paulo, que viria a sediar
importantes transformações teatrais na dramaturgia brasileira.
Outra referência importante nesse mesmo início
da década de 1950 foi o fato de, em viagem aos Estados Unidos, o então aspirante
a dramaturgo Jorge Andrade ter procurado o já famoso Arthur Miller em busca de orientações
para a criação dramatúrgica, e de ter ouvido dele uma recomendação que muitos
anos depois relataria em “Labirinto”, livro híbrido de memórias e reportagens. Também
na peça “O Sumidouro” Jorge Andrade incorporou remissões explícitas à moderna
dramaturgia estadunidense ao inserir retratos de Eugene O’Neill e de Arthur
Miller entre outros, de Tchechov e de Brecht, nas rubricas descritivas dos
quadros pendurados na parede do quarto em que o protagonista dramaturgo escrevia
febrilmente madrugada adentro.
A moderna dramaturgia dos Estados Unidos foi assunto
importante de discussões internas no Teatro de Arena no final dos anos 50, o
que se deveu principalmente a Augusto Boal, que ingressara no grupo ao retornar
de quase dois anos de estudos em Nova Iorque, em contato direto com o crítico
John Gassner, na época docente colaborador na Universidade de Colúmbia. A
ressonância desse contato repercutiu no Teatro de Arena tanto no período que precedeu
os Seminários de Dramaturgia, com as montagens de “Ratos e homens” (Of mice and men), de John Steinbeck, em
1956, e de “A mulher do outro” (They knew
what they wanted), de Sidney Howard, em 1957, como nas próprias discussões
internas nos Seminários realizados entre 1958 e 1960, quando Boal colocou em
pauta a análise de A Streetcar named
Desire, de Tennessee Williams, naquele momento conhecida no Brasil pelo
título de sua adaptação fílmica, “Uma rua chamada Pecado”.
Também o Teatro Oficina, em sua primeira
encenação profissional, lançaria mão de uma das peças mais importantes do
repertório dramatúrgico moderno dos Estados Unidos, “A vida impressa em dólar”
(Awake and sing!), peça escrita em
1935 por Clifford Odets, dramaturgo cujo trabalho foi paradigma para a moderna
dramaturgia estadunidense de esquerda nos anos 30 e para as gerações de autores
então em formação como Arthur Miller e de Tennessee Williams.
O conhecimento da dramaturgia e das concepções
inerentes ao teatro estadunidense moderno revelou-se de tal forma necessário para
o entendimento crítico da modernização teatral no Brasil, que Iná Camargo
Costa, pesquisadora do teatro brasileiro, foi levada a desenvolver um estudo do
conjunto das características constitutivas do teatro estadunidense, e a
procurar situá-lo dentro do quadro mais amplo das forças históricas, culturais e
políticas nele representadas.
Desse estudo resultou a compilação de textos
que compõem o primeiro dos livros desta lista: “Panorama do rio vermelho.
Ensaios sobre o teatro americano moderno”, lançado no ano 2000. O trabalho tem
como escopo histórico o período que se inicia com a apresentação do Paterson Pageant [3], em 1913, e se estende até
meados dos anos 50 com a formação do ator James Dean dentro do Actors Studio. O fio da meada histórico-crítico é a denúncia
de que uma sistemática supressão teria incidido recorrentemente sobre os
componentes do pensamento de esquerda nas experiências teatrais modernizadoras
no teatro dos Estados Unidos, fator que teria atingido também trabalhos de
autores do assim chamado cânone, como Eugene O’Neill, Tennessee Williams e
Arthur Miller. Esse processo, ao qual Iná denomina capítulo das supressões, é
examinado por ela por meio da crítica à chamada Ameaça Vermelha (Red Scare), diagnóstico conjuntural
difundido de diferentes formas pelo Estado estadunidense alertando para uma suposta
infiltração de ideias soviéticas e subversivas nos diferentes escalões da vida do
país.
Iná Camargo Costa não apenas discute a formação
desse “cânone” teatral no contexto do segundo pós-guerra, mas também destaca e
analisa as características de trabalhos sobre os quais se fizeram sentir, em
diferentes graus e de diferentes maneiras, os processos de supressão de
conteúdos críticos ao American Way of
Life. Como ela própria ressalta, a característica central de seu trabalho é
a de contar a contrapelo e na contramão da historiografia oficial, a história
do teatro estadunidense moderno.
A leitura de “Panorama do rio vermelho” terá
indiscutível proveito para um leitor desejoso em se iniciar no conhecimento
historicamente fundamentado do teatro estadunidense. Ressalte-se ainda a
importância do fato do livro tratar não apenas da dramaturgia dos integrantes
da famosa “tríade” de modernizadores canônicos (Eugene O’Neill, Tennessee
Williams e Arthur Miller), mas de incluir a já mencionada abordagem do Paterson Pageant dirigido por John Reed em
1913, geralmente omitida nos livros de história do teatro dos Estados Unidos. “Panorama
do rio vermelho” faz, ainda, merecida justiça ao trabalho de Elmer Rice,
dramaturgo e ensaísta que escreveu The adding
machine (“A máquina de somar”) em 1923. Essa peça, grande marco do
expressionismo teatral estadunidense, permaneceu inédita no Brasil até 1998, quando
foi traduzida por iniciativa da própria Iná em colaboração com o diretor e
pesquisador Márcio Boaro, e logo em seguida encenada pela Companhia Ocamorana
sob a direção de Alexandre Mate.
É de Elmer Rice o segundo livro desta lista, “O
teatro vivo”, lançado nos Estados Unidos em 1959 e traduzido e publicado no Brasil
no mesmo ano pela Editora Fundo de Cultura, com muitos anos de antecedência em
relação à montagem que acabamos de mencionar. Seu título em português é a
tradução literal de The living theatre,
compilação de palestras que Rice dera em 1957 na Graduate School da New York
University. É importante observarmos que, apesar do título que tem no original
em inglês, o trabalho de Rice não trata do trabalho do grupo teatral nova-iorquino
homônimo, fundado por Julian Beck e Judith Malina em 1951 [4], mas dos aspectos constitutivos
do teatro como linguagem e dos elementos históricos, e os estilísticos que o marcaram
em diferentes contextos. O teatro estadunidense em si é abordado
especificamente apenas entre os capítulos 11 e 21. Ainda assim, a inclusão de
“O teatro vivo” nesta lista é fundamental dada a notável capacidade de síntese
e de crítica de Rice ao abordar aspectos relacionados tanto à dinâmica cultural
que caracterizava os Estados Unidos, como à estrutura material de produção
implicada nas diferentes frentes de trabalho e concepções cênicas.
Rice examina e problematiza o papel
desempenhado pela arte teatral no contexto estadunidense, em que o teatro havia
se organizado, desde o seu nascedouro, como empreendimento comercial por
excelência. Não escapam às suas considerações aspectos como os custos de
produção envolvidos, a natureza das relações estabelecidas com as matrizes
culturais europeias, o tardio florescimento de uma dramaturgia estadunidense e
o surgimento e os esforços de sobrevivência de grupos experimentais e independentes
como o New Theatre, o Neighborhood Playhouse, o Civic Repertory Theatre, o
Washington Square Players, o Provincetown Players, o Theatre Union e o Group
Theatre. As estéticas cênicas e dramatúrgicas são passadas em revista por Rice à
luz dos fatores históricos e culturais do país.
Há uma questão espinhosa levantada por ele nesse
percurso pelos meandros dos trabalhos de todos esses grupos alternativos: o que
permitiu que sobrevivessem durante o tempo de existência que tiveram? Qual a
relação entre o experimentalismo que os articulou e a subsistência necessária à
empreitada artística? Ao colocar essas e outras questões, Rice oferece ao
leitor neófito e interessado um bem delineado fio da meada que lhe permitirá
situar-se, para posteriores aprofundamentos, em relação aos marcos fundadores
principais nesse contexto teatral dos Estados Unidos.
A relevância da experiência artística e
política de Rice como homem de teatro leva-o a incorporar paralelamente, nesse
périplo histórico e cultural do teatro estadunidense, um assunto do qual não é improvável
que pouco ou nada se soubesse, aqui no Brasil, na época do lançamento de “O teatro
vivo”: o Projeto Federal de Teatro, o maior e mais abrangente dos projetos da
gestão Roosevelt, criado em 1935 para reerguer economicamente o setor de
trabalho no âmbito das artes teatrais durante a Depressão Econômica. Rice
exerceu, por indicação da Diretora Nacional, Hallie Flanagan, a direção
regional do Projeto em Nova Iorque, entre 1935 e 1936, e sob sua gestão foram
criados e levados à cena os inovadores jornais vivos (living newspapers), documentários teatrais épicos focados na
representação cênica de notícias da agenda política nacional e internacional. Rice
renunciou à função logo após o episódio de censura de Ethiopia, jornal vivo que denunciava a invasão desse país pelas
tropas de Mussolini. O Projeto Federal de Teatro encerrou-se em 1939, quando
foram cortados os fundos governamentais que o subsidiavam.
As questões abordadas e discutidas por Rice em
“O teatro vivo” não apenas não perderam sua atualidade, como passaram a
dialogar cada vez mais, no contexto brasileiro, com impasses relacionados à
luta pela sobrevivência do trabalho teatral independente e do espírito de
criação, pesquisa e crítica. Trata-se, portanto, de um livro de imprescindível leitura
para o hipotético leitor interessado em tomar contato com o teatro estadunidense.
“Rumos do teatro moderno”, de John Gassner, o terceiro
livro desta lista, foi publicado nos Estados Unidos em 1960 com o título de Theatre at the crossroads: plays and
playwrights of the mid century American Stage. A edição original é de 1960,
e a primeira edição brasileira foi lançada em 1965, numa época de particular
expansão do interesse pelo teatro e pelas experimentações cênicas no contexto
teatral estadunidense. Os textos abordam questões centrais relacionadas às
transformações vividas pelo teatro dos Estados Unidos entre 1945 e o início dos
anos 60. O que Gassner entende como “encruzilhada” (a palavra crossroads do título original) diz
respeito à ideia de que para ele o teatro se via, nessa fase mais do que em qualquer
outra anteriormente, diante da necessidade de problematizar e de definir as
suas próprias especificidades dentro de uma era hegemonizada pela gigantesca
indústria hollywoodiana do cinema. Mesmo sem pretender exaurir a análise dessa
questão, Gassner detecta e discute com agudeza crítica, nos diversos ensaios, os
paradoxos e as contradições que afloravam dentro da estrutura teatral dominante,
abordando-os sob o ponto de vista da dinâmica histórica da cultura teatral do
país, da criação dramatúrgica e das estéticas cênicas vigentes naquele
contexto. Gassner não perde de vista a defasagem que se apresenta entre o
teatro estadunidense e o europeu que lhe era contemporâneo: um exemplo disso é
sua observação sobre o fato de os Estados Unidos, como país historicamente
jovem e importador de ideias e estilos, terem “descoberto” Giraudoux e Anouilh quando
os franceses, no contexto de origem desse autores, já tinham diante de si a dramaturgia
e os processos de criação de Genet e de Ionesco, observação que evidencia o
viés crítico de sua abordagem.
Igualmente significativo e merecedor de atenção
é um paradoxo que Gassner identifica no processo de modernização dramatúrgica que
disseminaria internacionalmente os padrões de expressão associados ao teatro estadunidense
moderno: o paradoxo identificado por ele consiste no fato de o grande avanço na
difusão internacional do teatro dos Estados Unidos ter coincido, justamente,
com o momento em que a “base comercial” de sustentação desse teatro, até pouco
antes vigente, ter sido abalada irreversivelmente com o avanço de formas
alternativas em várias direções.
Gassner é inequívoco ao apontar como
responsáveis pelos avanços os grupos que despontavam fora da Broadway. Observador
perspicaz e não comprometido com diagnósticos teorizantes, ele não deixa margem
de dúvida ao comentar, paralelamente, o fato de a dramaturgia estadunidense
moderna ter sido a fonte principal para a área de criação de roteiros de cinema
e de teledramaturgia. Distorções resultaram desse processo inevitavelmente, e a
partir delas o crítico detecta outra “encruzilhada” teatral potencialmente latente
entre duas opções que então se apresentavam: a de preservar os padrões do
realismo ou de romper com eles. Interlocutor que foi de dramaturgos em fase de
formação, Gassner sintetiza esse dilema como fruto de duas possibilidades
antagônicas: a de escrever como repórter ou como criador. “Texto ou Projetor” é
o título significativo de um dos capítulos, e nele está implícito o dilema que,
na seara teatral e cultural dos Estados Unidos, se mostra mais determinante e
concreto do que em qualquer outra que se conheça.
Gassner não é apenas um crítico lúcido e
perspicaz, mas é, também, alguém que dispõe de um imenso repertório de leituras
que lhe permite historicizar cada passo de sua análise, e discutir as demandas
que se apresentavam no campo das formas. Longe de ter sido o preconizador de um
realismo stricto senso, como veio incorretamente
a ser entendido no Brasil, Gassner defende, em cada uma de suas formulações, a
importância da preservação de um papel social para o teatro, posicionando-se em
prol da arte teatral como força de criação e expressão engajada nas transformações
sociais, procurando dar voz a elas por meio de todas as suas expressões
artísticas e processos de trabalho, inclusive aqueles de cunho não realista. “Realista”,
para ele, é o teatro socialmente empenhado, pois incorpora o esforço de figurar
aspectos concretos da sociedade à sua volta. Essa modalidade de “realismo” é,
para ele, flexível o suficiente para se beneficiar inclusive de expedientes
antinaturalistas, enriquecendo-se sobremaneira com o emprego de elementos de figuração
estilizados e teatralizados. Dentro desse ângulo de entendimento, “realista” poderia
ser, como ele próprio frisa, o próprio Bertolt Brecht, tanto quanto dramaturgos
como Arthur Miller, Tennessee Williams e William Inge.
O leitor desejoso de tomar contato com o teatro
estadunidense encontrará, em “Rumos do Teatro”, um levantamento pertinente e
bem contextualizado de questões centrais da modernização teatral estadunidense.
O quarto livro da lista trata de um dos
aspectos mais fundamentais do teatro estadunidense do ponto de vista da interpretação:
os desdobramentos estadunidenses dos processos de trabalho de Stanislavski,
abordados por Lee Strasberg, ator e diretor ligado ao Group Theater e um dos
nomes centrais do Actors Studio, o mais famoso núcleo de preparação de atores
dos Estados Unidos.
O título do livro, “Um Sonho de Paixão” (A Dream of Passion), remete ao trecho de
uma fala de Hamlet acerca do vigor emocional da expressão do ator na segunda
cena do Ato II da tragédia shakespeariana. Qual o fundamento da interpretação
do ator? Como pode o ator ao mesmo tempo sentir e exercer controle técnico sobre
aquilo que sente? Na abordagem destas questões centrais, Strasberg examina o
chamado “Método”, associado ao estilo interpretativo do Actors Studio, e
discute o aporte dos expedientes de treinamento de atores de Constantin Stanislavski
e de seus discípulos radicados nos Estados Unidos. O trabalho relatado e
analisado no livro foi acompanhado e desenvolvido por Strasberg em etapas
sucessivas no Group Theatre, no Actors Studio e posteriormente no Lee Strasberg
Studio.
O passo inicial para a aclimatação dos
processos stanislavskianos nos Estados Unidos se deu na primeira metade dos
anos 1920 por meio do American Laboratory Theatre (ou “Lab”, como era chamado),
em que o próprio Strasberg teve sua formação inicial, conduzida por Richard Boleslavsky
e Maria Ouspenskaya, egressos da trupe do Teatro de Arte de Moscou. Colocando
em pauta a relação entre o trabalho desenvolvido naquele momento por
Stanislavski e aquilo que posteriormente viria a ser chamado de “o Método” no
contexto estadunidense, Strasberg chama a si parte da responsabilidade pelo
teor deste último, definindo-o como a súmula dos processos que absorveu e aprofundou
em contato com os mestres russos no “Lab”, com as concepções de Vakhtangov [5], e com o trabalho que ele
próprio desenvolvera no Group Theatre.
A linha de trabalho apresentada e discutida por
Strasberg colocou-se em crescente divergência com a de outro importante membro
do Group Theatre: a atriz Stella Adler, que tivera contato direto com o próprio
Stanislavski na Europa na década de 1930, e portanto em etapa conceitual e
prática posterior à da época em que Boleslavsky e Ouspenskaya se radicaram nos
Estados Unidos. Enquanto Strasberg tratava centralmente da memória afetiva,
Adler dava ênfase às ações físicas como fundamentos para a interpretação. Para
Strasberg, o processo interpretativo apoiado no emprego da memória afetiva era diretamente
tributário dos exercícios e técnicas aplicados por Boleslavsky e Ouspenskaya, e
“Um Sonho de Paixão” apresenta e analisa os aspectos práticos relacionados.
Strasberg insiste na ideia de que seu livro e
suas formulações não visam a instituir um passo a passo metodológico para que
resultados específicos de interpretação sejam atingidos. Ao mesmo tempo, ele
rebate as críticas de que os processos de trabalho ligados ao “Método” poderiam
ser úteis apenas para a encenação de autores como Clifford Odets, Anton Tchekhov
e Arthur Miller, e não de dramaturgos associados a formas de teatralidade mais aberta,
como Shakespeare, Tennessee Williams e Edward Albee. Essa forma de leitura
resulta, para ele, do erro de se olhar para o “Método” com base no repertório
do Group Theatre especificamente, e não nas técnicas utilizadas para o
treinamento dos atores, ou na presença de nuances interpretativas inspiradas em
montagens como “O Dibuk” e “Turandot”, dirigidas por Vakhtangov no contexto
russo.
Como “Um Sonho de Paixão” foi lançado no Brasil
na década de 1980, Strasberg incluiu e brevemente discutiu, no capítulo final,
a presença de criadores e pensadores como Artaud, Grotowski e Brecht no
contexto do teatro em que o chamado “Método” continuava a reverberar como uma
referência. Dada a importância formativa e a longa sobrevivência processual dos
expedientes de trabalho interpretativo do Actors Studio e de suas raízes
anteriormente esboçadas no Lab e no Group, a leitura do livro de Strasberg trará
elementos importantes e necessários para que o leitor possa situar-se em seu contato
inicial com o teatro estadunidense.
As indicações que se seguem na lista dos dez
livros dizem respeito a peças fundamentais da moderna dramaturgia dos Estados Unidos.
Em ordem cronológica, “Nossa cidade” (Our
town), de Thornton Wilder, precede as demais, tendo sido escrita em 1938. Estruturada
como narração presentificada a partir da condução cênica de um Diretor de Cena
(Stage Manager), a peça tornou-se um dos
clássicos da dramaturgia moderna dos Estados Unidos. Os recursos cênicos são
mínimos, tendo sido explorado ao máximo o aspecto da representação enquanto
artifício. Cada um de seus três atos representa uma época da vida de seus protagonistas:
o primeiro trata da faina diária do trabalho e da família no contexto da
infância de dois dos personagens, o segundo, das transformações trazidas com a
adolescência, o amor e o casamento, e o terceiro situa a consciência e a
percepção de uma das personagens diante do fato consumado de sua própria morte
e das implicações trazidas com a descoberta que o post mortem lhe faculta a opção de assistir-se vivendo qualquer um de
seus dias de vida.
Ao contrário do que se pode supor, a divisão em
atos não atua como roteiro organizador de uma sequência cronológica de
acontecimentos: pelo contrário, serve como suporte para avanços e recuos da
linha temporal na narração conduzida pelo Diretor de Cena. Determinados fatos
são apresentados mais de uma vez e sob diferentes perspectivas de percepção,
cada qual correspondendo a uma específica situação etária e emocional dos
personagens envolvidos. Formalmente localizada fora do âmbito do drama
convencional, “Nossa cidade” foi objeto de uma importante passagem de análise
de Peter Szondi em “Teoria do Drama Moderno. [1880-1950]”:
Dificilmente há uma
outra obra da dramaturgia moderna que seja ao mesmo tempo formalmente tão
arrojada e de uma simplicidade tão comovente no enunciado como Nossa cidade [Our Town, 1938], de
Thornton Wilder. Na lírica melancólica que o dia-a-dia recebe aqui, Wilder deve
algo aos dramas de Tchékhov, mas suas inovações formais procuram livrar a
herança tchekhoviana de suas contradições e levá-Ia à forma adequada, para além
do drama (SZONDI, 2001, p. 156).
Um aspecto de extrema importância da peça de
Wilder é a sua representatividade em relação à aclimatação dos recursos épicos
nas plagas teatrais dos Estados Unidos, em que o épico propriamente dito se viu
sempre, em alguma medida, em terreno menos propício ao seu florescimento do que
o drama.
A esse respeito vale lembrar que “Nossa cidade”
institucionalizou-se amplamente e lançou raízes no imaginário afetivo de gerações
e gerações de estudantes dentro e fora dos cursos de teatro e dos teatros
comunitários em todo o país. Mas vale lembrar também que essa canonicidade,
apoiada no carinhoso olhar sobre o microcosmo familiar de uma cidadezinha fictícia
de New Hampshire, foi, em alguma medida, alimentada pelos críticos em
detrimento de outras peças que, aproximadamente no mesmo período e contexto, fizeram
incursões pelo épico por meio de macro representações de classe e dos processos
da alienação e da exploração dos trabalhadores, aspectos estes que não se
apresentam na peça de Wilder. Veja-se, por exemplo, We, the people (“Nós, o povo”, sem tradução para o português), de
Elmer Rice, de 1933, Waiting for Lefty (“Esperando
Lefty”, sem tradução publicada para o português), de 1935, de Clifford Odets,
ou mesmo Case of Clyde Grifiths, peça
escrita pelo diretor alemão Erwin Piscator e encenada pelo Group Theatre em
1936 a partir de An American Tragedy,
romance naturalista de Theodore Dreiser.
A peça de Wilder fez parte do percurso
formativo de várias gerações de atores e de estudantes de artes cênicas também
no contexto brasileiro, e seja por seu papel histórico dentro do teatro dos
Estados Unidos, seja pela especificidade de sua forma, sua inclusão como o
quinto título na lista dos dez livros essenciais está plenamente justificada.
As sugestões de números seis e sete da lista
remetem a compilações editoriais de peças de Tennessee Williams e de Arthur
Miller, dramaturgos cujos trabalhos passaram a ter extraordinária divulgação cênica
e fílmica no Brasil a partir do segundo pós-guerra e do final dos anos 40. A
matéria social figurada em peças desse autores colocou em cena situações ainda
historicamente recentes no Brasil desse mesmo período, como, por exemplo, as
condições de vida e subsistência em grandes centros urbanos e industriais em
expansão, as transformações no mundo do trabalho, o crescente isolamento e
alienação dos indivíduos na sociedade capitalista e o empobrecimento dos
padrões de convívio afetivo no âmbito da família. Essas eram questões prementes,
mas ainda em larga medida intocadas pela dramaturgia brasileira dessa mesma época.
Tomá-las como matéria de criação era um desafio para as gerações de dramaturgos
que aqui despontavam, e isso contribuiu bastante para o crescente interesse
sobre a dramaturgia estadunidense moderna.
Peças como “À margem da vida” (tradução utilizada
na primeira montagem de The glass menagerie)
ou “A morte do caixeiro viajante” (Death
of a salesman) foram percebidas como expoentes de uma dramaturgia que tinha
colocado em cena questões cruciais da sociedade, do sistema econômico e das
estruturas de pensamento dominantes no contexto capitalista e industrial dos
Estados Unidos.
Com isso, as escrituras dramatúrgicas de Tennessee
Williams e de Arthur Miller tornaram-se matéria de interesse para a jovem
geração de autores que se formou no Teatro de Arena a partir do final dos anos
50 com os Seminários de Dramaturgia. O teatro de Miller e de Williams foi,
paralelamente, objeto de trabalho interpretativo tanto em companhias
profissionais como no âmbito amador, caso do Grupo de Teatro Experimental de
Alfredo Mesquita e da Escola de Arte Dramática.
As peças de Tennessee Williams tratam
centralmente da marginalização social e da solidão. Inadequadas aos padrões
concorrenciais da sociedade capitalista, suas personagens sofrem,
paralelamente, com a repressão imposta às suas pulsões sexuais ou à sua homossexualidade
latente ou explícita. Os diálogos tendem ao lírico, e há frequente uso de
narrativas para remissão aos conteúdos da memória, seja esta real ou imaginária.
Não casualmente, esses foram recursos importantes na configuração da
modernização dramatúrgica também no contexto do teatro brasileiro.
As peças de Miller colocam em cena os
enfrentamentos de personagens que, de diferentes formas e por diferentes
motivos, se veem em desacordo e em conflito com a estrutura de poder vigente na
sociedade em que vivem. Questões cruciais do presente surgem e as remetem a pendências
do passado, demandando a sua superação.
Raymond Williams, autor de “Tragédia Moderna”
(2002), observa em seu estudo que o teatro de Arthur Miller revitalizou a estrutura
ibseniana da tragédia liberal: as personagens vivem em uma sociedade em que
vigoram relações falseadas, e lutam para manter individualmente sua própria
integridade, o que acaba se revelando inviável. Por diferentes motivos e em
diferentes situações, essas personagens se veem na contingência de enfrentar,
no presente, as consequências de suas escolhas e atos do passado, e de
empreender um percurso analítico que as precipita numa compreensão agônica e
tardia. Como frisa Raymond Williams, o “eu” que deseja, sonha e tem aspirações
entra em conflito com o “eu” que deve, para sobreviver, submeter-se aos
preceitos e valores socialmente instituídos, e nesse processo de dilaceramento
desencadeia-se a sua destruição.
A dramaturgia de Arthur Miller, como a de
Tennessee Williams, coloca em foco a figuração de problemas cruciais do
capitalismo no século XX, principalmente no que diz respeito ao esmagamento do
indivíduo diante das transformações do mundo do trabalho e das pressões ferozes
infligidas pelos mecanismos de competição e de promoção social. Enquanto o
padrão dramatúrgico de Tennessee tem base lírica perpassada pela introspecção e
pela ironia, o de Miller induz ao raciocínio analítico e à irreversibilidade
das constatações: erros passados são expostos e o entendimento vai aos poucos
aflorando; por meio dele, porém, as personagens constatam a impossibilidade de sua
própria salvação.
As duas edições antológicas indicadas nos itens
seis e sete desta lista colocarão o leitor em contato com peças focadas
centralmente nestes processos de criação, e elas lhe darão elementos importantes
para a constituição de um repertório de leitura e de uma sensibilidade
analítica.
O oitavo item da lista é uma das peças mais
intensa e unanimemente celebradas do século XX: “Longa jornada do dia noite
adentro” (Long day’s journey into night)
de Eugene O’Neill, escrita em 1941 e dada a público após a morte do autor em
1953. Peça de tessitura realista e densa, concentrada no espaço (a pequena casa
de veraneio da família Tyrone) e no tempo (o decorrer de um dia de verão que se
inicia às oito da manhã e se estende até a meia noite), “Longa jornada...” ficcionaliza
uma série de dilemas verídicos que marcaram a vida familiar do autor. Os traços
constitutivos das personagens, suas angústias e desejos, e seus enfrentamentos
e temores expõem centralmente a matéria autobiográfica utilizada pelo
dramaturgo. Precisamente por isso, uma particular demanda de complexidade
psicológica recai sobre a esfera da interpretação: é necessário figurar em cena
questões como a irrealização dos sonhos passados, a dependência química, o
alcoolismo, o luto, a doença, e o interminável contorcer-se da consciência das
personagens num círculo vicioso que as transforma em testemunhas perenes dos erros
e culpas dos demais.
A peça faz inúmeras remissões à literatura
dramática e poética por meio de recitação em cena e de verdadeiros duelos
literários entre as personagens do pai e do filho mais velho: de um lado, a
genialidade de Shakespeare é cultuada pelo pai, um ator shakespeariano
frustrado; de outro, diz mais à sensibilidade do filho mais velho a morbidez da
poesia vitoriana e baudelairiana, figuração de um mundo eivado de desigualdades.
Não há ação dramática stricto senso, mas
o gradativo assombramento do cotidiano por interditos que se insinuam continuamente.
Num texto de tessitura verbal caudalosa e densa, os conflitos interiorizados pulsam,
eclodem, mas permanecem irresolvidos: o domínio dramatúrgico de O’Neill na condução
cênica deste processo fez desta peça um dos mais importantes pontos de
referência do teatro estadunidense no século XX.
“Quem tem medo de Virginia Woolf?” (Who’s afraid of Virginia Woolf?), escrita
por Edward Albee em 1963, é a nona indicação da lista aqui comentada. Trata-se
da peça que assinalou a precoce passagem do autor, surgido no âmbito
alternativo e experimental do teatro nova-iorquino, para o patamar dos nomes
aclamados pela crítica dentro e fora dos Estados Unidos.
Não teria sido menos pertinente e significativa
para a proposta deste Guia Bibliográfico (muito pelo contrário) se a indicação
feita tivesse sido a da peça de estreia do autor, “A História do Jardim Zoológico”
(The Zoo Story), de 1959. Essa
indicação teria sido dada caso sua tradução tivesse, em algum momento, sido
objeto de publicação no Brasil, e estivesse disponível em acervos de
bibliotecas ou em catálogos de editoras brasileiras. A constatação dessa lacuna
é no mínimo surpreendente já que poucas outras peças estadunidenses de sua
época marcaram tanto a formação das várias gerações de dramaturgos e
espectadores entre os anos 60 e 70 do século XX. A edição de número oitenta e
cinco dos “Cadernos do Tablado”, no Rio de Janeiro, publicou, em 1980, a
tradução feita por Luiz Carlos Maciel, que pode, atualmente, ser acessada pela
internet [6].
Em 1961 um livro do crítico britânico Martin
Esslin (1967) enquadrou a dramaturgia nascente do jovem Albee no campo
conceitual do assim chamado “teatro do absurdo”, termo que o crítico cunhou
para designar o teatro de matriz existencialista e metafísica do segundo pós-guerra
europeu. O enquadramento feito por Esslin foi objeto de críticas e contestações
posteriores, mas serviu indiretamente para documentar o fato de que um novo
padrão dramatúrgico havia surgido, no teatro estadunidense, com o trabalho de
Albee e de seus contemporâneos nos minúsculos espaços experimentais do chamado off off Broadway em Nova Iorque.
Com estrutura enxuta e concentrada no espaço e
no tempo, “A História do Jardim Zoológico” coloca em cena o encontro e
subsequente confronto entre dois personagens desconhecidos entre si, fazendo
eclodir antagonismos ideológicos, culturais e de classe, e revelando aspectos
devastadores e sombrios da mediania e dos valores sociais dominantes. No
contexto brasileiro, “A História do Jardim Zoológico” marcou indelevelmente o
trabalho de atores e dramaturgos, principalmente dentro do contexto da ditadura
militar e da censura.
Enquanto “A História do Jardim Zoológico” trabalha
com base na concisão e na concentração como recursos centrais, “Quem tem medo
de Virginia Woolf?” apresenta uma estrutura aparentemente mais convencional: situa-se
no epicentro ideológico do establishment
(o campus de uma universidade estadunidense típica) e seus três atos decorrem durante
uma reunião noturna pós-festa entre dois casais de professores: um mais velho,
da área de história, cuja mulher é filha do presidente da universidade, e outro
mais jovem, da área de biologia, recém-casado com uma moça logo a seguir
diagnosticada com uma gravidez histérica.
Longe de ser menos contundente em seu teor de
crítica, a peça expõe cruamente as fantasmagorias das personagens ao longo dos
três atos, intitulados respectivamente “Passatempo” (Fun and games), “A Noite de Valburga” (Valpurgisnacht) e “O Exorcismo” (The exorcism). A informalidade cordial do início dá margem a jogos
tacitamente admitidos de exposição emocional entre as personagens. Num processo
de crescente intensidade emocional, elas adentram a zona limítrofe em que os
pactos do afeto não conseguem minimizar a dor por perdas e equívocos passados. Os
referenciais de conduta fragilizam-se diante disso, e os papéis socialmente
instituídos perdem qualquer sentido real. Prevalece ao final a inelutável
constatação do caráter ilusório e rarefeito daquilo que efetivamente as une
entre si, e que pode lhes trazer, paliativamente, um relativo e provisório apaziguamento
interior.
Para quem tem pouco contato com o gigantesco
poder do establishment ideológico e
da indústria cultural nos Estados Unidos parecerá surpreendente que uma peça como
“Quem tem medo de Virginia Woolf?” tenha sido, três anos depois de estrear,
adaptada para o cinema e protagonizada por dois nomes estelares do universo
hollywoodiano da época. Rapidamente Albee atingiu um patamar de reconhecimento
que tornou seu trabalho atraente para produções teatrais do grande circuito do
teatro comercial. Se a voracidade avassaladora do sistema deslocou o trabalho
de Albee (e de outros) com vertiginosa rapidez das margens experimentais do off off para o centro comercial da Broadway, ela não extirpou dele sua
substância crítica, embora tenha tornado mais dificultosa a percepção analítica
de quem se interessa por detectar nele, com alguma lucidez, aquilo que de fato
interessa. No contexto brasileiro a primeira montagem de “Quem tem medo...”
estrearia em 1965 sob a direção de Maurice Vaneau, tendo Cacilda Becker e
Walmor Chagas nos dois principais papéis.
Chegamos assim à décima e última indicação
desta lista: uma compilação de quatro peças de Sam Shepard, um dos jovens
autores revelados a partir do pequeno centro pulsante de experimentação
dramatúrgica e cênica que foi o La Mama Experimental Theatre Club, fundado por
Ellen Stewart no Lower East Side nova-iorquino no início dos anos 60. Shepard
viria a desenvolver carreira extensa e diversificada também no campo do cinema,
trabalhando como ator, diretor e roteirista.
Embora revelada a partir do núcleo do
experimentalismo cênico do off off
Broadway, sua dramaturgia remete, em grande parte, ao oeste dos Estados
Unidos, às raízes históricas e culturais que o diferenciam, e aos estereótipos
que lhe foram sendo apostos dentro do imaginário e da iconografia do cinema e
do consumo. Um dos grandes desafios que se colocaram para a criação de
dramaturgia na segunda metade do século XX foi a de representar questões
ligadas à indústria cinematográfica e à forma como seu avassalador poder é
absorvido e naturalizado.
Dentro da edição indicada neste Guia esse
aspecto se apresenta em Angel City,
de 1976 e em “Oeste Verdadeiro” (True
West), de 1980, enquanto La Turista,
de 1967, coloca em foco, com sarcástico e contundente simbolismo, a arrogância
histórica dos Estados Unidos, numa remissão implícita ao contexto da guerra do
Vietnã.
O fato de as peças de Shepard abordarem com
frequência situações-limite de tensão familiar contribuiu para que fossem
enquadradas pela crítica dominante na categoria temática das assim chamadas
“peças sobre famílias disfuncionais”. Essa foi a perspectiva que predominou na
abordagem de outra das peças da edição indicada, “Mente Mentira” (A Lie of the Mind), de 1985. O falseamento
presente dos mitos nacionais fundadores é apresentado nela sem meias tintas, o
que levou grande parte dessa mesma crítica a identificar no texto um desejo “nostálgico”
de “resgate” desse passado mítico idealizado.
Para que não se incorra numa análise redutora do
trabalho de Shepard é oportuno lembrar que uma das características constitutivas
da ideologia dominante dos Estados Unidos é o entendimento de que a família seria,
supostamente, um espaço imune às mazelas da sociedade, ou seja, uma espécie de “refúgio”
idealizado em que as regras avassaladoras e opressoras do capitalismo não se
aplicariam, e em que imperariam os laços do afeto.
Este entendimento amplamente disseminado desconsidera
o fato de a família, por sua própria constituição histórica, configurar-se a
partir dos mesmos fatores e ideologias que operam em todos os outros campos da
vida social. A “disfuncionalidade” que se apresenta na dramaturgia de Shepard não
é determinada, em última instância, pelo grau de incoerência com que pais ou
filhos exercem ou deixam de exercer seus papéis, mas pela estrutura que precarizou
as formas de convívio e as regras da sobrevivência na sociedade de consumo em
que vivem.
O passado agrário e os mitos fundantes, tais
como representados por Shepard em sua dramaturgia, são fantasmagorias distorcidas,
são ícones de neon e projeções ilusórias da América rural e do Oeste como terra
da riqueza e da oportunidade. As imagens, alusões e associações simbólicas aparecem
de forma esvaziada e cáustica, e em alguns momentos tangenciam o dark humor.
As indicações apresentadas neste Guia têm caráter
introdutório e estão longe de pretender esgotar todas as perspectivas de
interesse que se apresentam. Mas certamente o leitor interessado encontrará
nelas elementos que poderão norteá-lo para aprofundamentos posteriores.
O
décimo primeiro livro aqui indicado, Dramaturgia
Comparada Estados Unidos-Brasil. Três Estudos, de 2017, é posterior ao
lançamento do Primeiro Guia Bibliográfico
da USP, e foi acrescentado nesta versão revista do texto original de forma
a não interferir em sua estrutura de organização. Dentro dela sua inserção
caberia no primeiro eixo temático: o que diz respeito às abordagens
histórico-críticas.
O livro apoia-se, como seu título indica, na
perspectiva teórica da Dramaturgia Comparada, e aborda
três aspectos centrais da dramaturgia e dos escritos teatrais estadunidenses
traduzidos, encenados e veiculados no Brasil. O primeiro realiza um
levantamento dos espetáculos, textos teatrais e concepções críticas
estadunidenses no período inicial de sua encenação e circulação editorial no
Brasil, entre 1945 e 1968; o segundo examina a estrutura formal da peça em um
ato na abordagem de trabalhos de Eugene O’Neill (1888-1953) e Tennessee
Williams (1911-1983), expoentes do cânone dramatúrgico estadunidense do século
XX; o terceiro, por sua vez, verticaliza a análise dos expedientes compositivos
e figurativos empregados na trilogia America
Hurrah (1965-66), de Jean-Claude van Itallie (1934-), dramaturgo
belgo-estadunidense ligado ao experimentalismo cênico do off off Broadway dos anos 1960.
O papel estético e político da
dramaturgia estadunidense no contexto teatral brasileiro é, assim, apresentado
com base em aproximações críticas que empreendem, respectivamente, um
mapeamento histórico e crítico do primeiro momento de grande aporte de
trabalhos teatrais estadunidenses, a análise de uma estrutura formal
importantíssima para a modernização dramatúrgica realizada no século XX, e a
abordagem de recursos dramatúrgicos desafiadoramente experimentais destinados a
figurar o mundo da exploração gerencial do trabalho, a guerra e a televisão
como veículo de massas.
As indicações apresentadas neste Guia têm caráter
introdutório e estão longe de pretender esgotar todas as perspectivas de
interesse que se apresentam. Mas certamente o leitor interessado encontrará
nelas elementos que poderão norteá-lo para aprofundamentos posteriores.
Os onze livros indicados foram:
ALBEE, Edward. Quem
tem medo de Virginia Woolf? Tradução Nice Rissone. São Paulo: Abril
Cultural, 1977.
BETTI, Maria Sílvia. Dramaturgia
Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos. São Bernardo do Campo
(SP): Cia. Fagulha, 2017.
COSTA, Iná Camargo. Panorama do rio vermelho: ensaios sobre o teatro americano moderno.
São Paulo: Nankin Editorial, 2001.
GASSNER, John. Rumos
do teatro moderno. Tradução de Luzia Machado da Costa. Rio de Janeiro:
Editora Lidador, 1965.
MILLER, Arthur. A
morte do caixeiro viajante e outras quatro peças. Tradução José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
O’NEILL, Eugene. Longa jornada noite adentro. São Paulo: Peixoto Neto, 2004.
RICE, Elmer. Teatro
vivo. Tradução
de Zora Seljan. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.
SHEPARD, Sam. Quatro
peças. (La turista / tradução de
Marcos Renaux e Otavio Frias Filho. Angel
city / tradução de Marcos Renaux e Otavio Frias Filho. Oeste verdadeiro / tradução de Marcos Renaux e Marilene Felinto. Mente mentira / tradução de Marcos
Renaux e Marilene Felinto.) São Paulo: Paz e Terra, 1994.
STRASBERG, Lee. Um
sonho de paixão: o desenvolvimento do método. Texto original editorado por Evangeline Morphos; tradução Anna
Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.
WILDER, Thornton. Nossa cidade. Tradução Elsie Lessa. São Paulo: Abril Cultural,
1976.
WILLIAMS, Tennessee. O
Zoológico de vidro; De
repente no último verão; Doce pássaro da juventude. Tradução:
Grupo Tapa e Clara Carvalho. São Paulo: É Realizações, 2014.
ALBEE, Edward. A História do Jardim Zoológico. Tradução de
Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: In Cadernos
do Tablado, n. 85, 1980. Disponível em: <http://otablado.com.br/media/cadernos/arquivos/CADERNOS_DE_TEATRO_NUM_85.pdf>.
Acesso em: 27 fev. 2019.
BETTI, Maria Sílvia. Dramaturgia
Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos. São Bernardo do Campo
(SP): Cia. Fagulha, 2017.
CANDIDO,
Antonio. Dez Livros Para Conhecer o Brasil.
Disponível em: <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2017/11/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
ESSLIN, Martin. O
Teatro do Absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Apresentação de Paulo
Francis. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MAZOUR, Anatole G. Russia: Tsarist and Communist. D. Van
Nostrand: Princeton, 1962.
Primeiro
Guia Bibliográfico da USP. Disponível
em: <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2017/03/21/fflch-lanca-o-primeiro-guia-bibliografico-da-usp/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
SZONDI, Peter. Teoria
do drama moderno. [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac
& Naify, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia
Moderna. Tradução Betina Bishof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
[1] Este texto integra o Primeiro Guia Bibliográfico da USP,
criado por iniciativa do Prof. Dr. João Roberto Faria durante sua gestão como
Vice-Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP com base no artigo “Dez
Livros Para Conhecer o Brasil”, de Antonio Candido, escrito, por sua vez, para
a edição número 41 da Revista Teoria e
Debate.
Disponível em: <https://www.fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Brasil.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2019.
A respeito do Guia, veja-se <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2017/03/21/fflch-lanca-o-primeiro-guia-bibliografico-da-usp/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
[2] Maria Sílvia
Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da
FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Livros:
Autora
de Dramaturgia Comparada Estados
Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017), e Oduvaldo
Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).
Tradutora
de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois
relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac
& Naifiy), 2013.
Organizadora,
prefaciadora e autora dos textos de apresentação de Rasga
Coração (Temporal, 2018) e Papa Highirte (Temporal,
2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho.
Organizadora
e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de
Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo.
Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação
Perseu Abramo, 2004).
Prefaciadora
de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações,
2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É
Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams.
Artigos recentes:
Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (in Ingrid
Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).
Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise
dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha).
Disponível em:
<https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.
"The Piscator Notebook", de Judith Malina: apontamentos de análise sobre o registro de um processo
formativo. (In Blog da Cia. Fagulha).
Disponível em: < https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/02/the-piscator-notebook-de-judith-malina.html>.
[3] O pageant
é uma encenação épica cujas raízes históricas remontam à Inglaterra
elisabetana (século XVI). Sua natureza é coletiva e não aristotélica por
excelência: não há ação individual e os conflitos e movimentos principais são
abordados sob a perspectiva da comunidade à qual se ligam. Todos os
acontecimentos são apresentados sob a forma de uma grande sucessão de quadros
com alegorias e centenas de figurantes. O Paterson
Pageant coloca em cena a mobilização e a greve dos trabalhadores da
indústria da seda em New Jersey em 1913. Foi encenado na noite de 07 de junho
desse mesmo ano no Madison Square Garden, em Nova Iorque, e representou um dos
mais importantes marcos da história do movimento radical nas artes no Estados
Unidos. Diante de uma plateia de mais de quinze mil pessoas, sob o brilho de
luzes que formavam as iniciais IWW (Industrial Workers of the World:
Trabalhadores Industriais do Mundo) em letras de três metros de altura, o
espetáculo reuniu cerca de mil e quinhentos participantes, em sua maioria
operários de origem judaica, italiana e polonesa.
[4] O Living Theatre foi um dos grupos fundadores
das estéticas cênicas experimentais no contexto contracultural dos Estados
Unidos nos anos 60 e 70. O Living, como costuma ser chamado informalmente, teve
importante e significativa permanência de dez meses no Brasil, em 1970, período
em que desenvolveu trabalho agitativo tanto nos meses iniciais, em São Paulo,
como a seguir na região de Saramenha, Minas Gerais, próxima a Outro Preto. Seus
integrantes viriam a ser presos e posteriormente deportados após meses de
confinamento em plena vigência da ditadura militar e das perseguições políticas
em todos os setores da vida pública do país. A deportação veio após intensa
mobilização e clamor da opinião pública internacional, com farta repercussão
nos órgãos de imprensa e nos meios artísticos.
[5] Yevgeny Vakhtangov (1883–1922), ator
russo, produtor e fundador do teatro que levou seu nome em Moscou. Discípulo e
amigo de Stanislavski, Vakhtangov achava que as velhas peças realistas e
naturalistas estavam superadas e precisavam ser apresentadas sob nova concepção
cênica para que tivessem significado no contexto dos novos tempos. Isso
requeria, segundo ele, a incorporação de outras técnicas por parte dos atores:
maior ênfase devia recair, por exemplo, sobre os aspectos da intensidade dramática,
e não sobre o determinismo biológico ou psicológico. Esta forma de pensamento
levou Vakhtangov a encenar peças como “A Princesa Turandot”, de Gozzi, ou “O
Milagre de Saint Anthony”, de Maeterlinck, em que o emocionalismo interno
prevalecia sobre a realidade exterior. As encenações de Vakhtangov eram
ousadas, originais e extremamente imaginativas.
MAZOUR, Anatole G. Russia:
Tsarist and Communist. D. Van Nostrand: Princeton, 1962, p. 704.
[6] Disponível em: <http://otablado.com.br/Cadernos?page=9>.
e <http://otablado.com.br/media/cadernos/arquivos/CADERNOS_DE_TEATRO_NUM_85.pdf>.
Acesso em: 27 fev. 2019.
SERVIÇO:
Conheça:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp: (11) 95119-8357
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