Onze livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil. Por Maria Sílvia Betti


Onze livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil [1]Por Maria Sílvia Betti [2]



Onze livros para o conhecimento do teatro estadunidense no Brasil.


Resumo: Este texto apresenta a versão atualizada de Dez livros para o conhecimento do teatro norte-americano no Brasil, elaborado para o Primeiro Guia Bibliográfico da USP.

Palavras-chave: Teatro estadunidense moderno; dramaturgia estadunidense moderna; história do teatro; crítica teatral.


Abstract: This text presents the updated version of Ten books for the knowledge of the North American theater in Brazil, prepared for the First Bibliographic Guide of USP.

Keywords: Modern U.S. Theatre; Modern U.S. drama; theatre history; theatre criticism.


INDICAÇÕES

1. “Panorama do rio vermelho. Ensaios sobre teatro americano moderno.” Iná Camargo Costa.
2. “Rumos do teatro moderno”. John Gassner.
3. “Teatro Vivo”. Elmer Rice.
4. “Um sonho de paixão”. Lee Strasberg.
5. “Nossa cidade”. Thornton Wilder.
6. “O zoológico de vidro”. “De repente no último verão”. “Doce pássaro da juventude”. Tennesse Williams.
7. “A morte de um caixeiro viajante e outras quatro peças” (“O homem de sorte”, “Todos eram seus filhos”, “A morte do caixeiro viajante”, “As bruxas de Salém”, “Um panorama visto da ponte”). Arthur Miller.
8. “Longa jornada noite adentro”. Eugene O’Neill.
9. “Quem tem medo de Virginia Woolf?”. Edward Albee.
10. “Quatro Peças” de Sam Shepard (“La turista”, “Angel City”, “Oeste verdadeiro”, “Mente mentira”.)
11. “Dramaturgia Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos.” Maria Sílvia Betti.


Critérios: foram indicadas edições de textos traduzidos no Brasil e que se encontram disponíveis nas Bibliotecas da USP. Foram indicados livros que contemplam uma abordagem histórico-crítica (itens 1 a 3), o conhecimento de técnicas interpretativas desenvolvidas na especificidade do teatro estadunidense (item 4) e o conhecimento de peças fundamentais de seu moderno repertório dramatúrgico (itens 6 a 10).


O teatro estadunidense moderno, seja sob o ponto de vista de sua dramaturgia, seja sob o de suas concepções cênicas e processos interpretativos, esteve entre as referências importantes para a modernização que se processou no teatro brasileiro a partir do final da década de 1940. Peças do repertório dramatúrgico estadunidense do segundo pós-guerra foram encenadas por companhias teatrais responsáveis por importantes transformações no teatro brasileiro como os Comediantes, o Teatro Experimental do Negro, o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. “À margem da vida” (The glass menagerie), de Tennessee Williams, dirigida por Alfredo Mesquita em 1947, representou o passo inicial para a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia que se daria a seguir, e “Lembranças de Bertha” (Hello from Bertha), do mesmo autor, foi não apenas estudada por José Renato em seu período formativo na Escola de Arte Dramática, em 1951, mas, posteriormente encenada sob sua direção em 1953. Igualmente digno de nota é o fato de Theatre in the Round, livro da norte-americana Margo Jones sobre o espaço cênico em arena, ter inspirado a José Renato a criação do Teatro de Arena de São Paulo, que viria a sediar importantes transformações teatrais na dramaturgia brasileira.
Outra referência importante nesse mesmo início da década de 1950 foi o fato de, em viagem aos Estados Unidos, o então aspirante a dramaturgo Jorge Andrade ter procurado o já famoso Arthur Miller em busca de orientações para a criação dramatúrgica, e de ter ouvido dele uma recomendação que muitos anos depois relataria em “Labirinto”, livro híbrido de memórias e reportagens. Também na peça “O Sumidouro” Jorge Andrade incorporou remissões explícitas à moderna dramaturgia estadunidense ao inserir retratos de Eugene O’Neill e de Arthur Miller entre outros, de Tchechov e de Brecht, nas rubricas descritivas dos quadros pendurados na parede do quarto em que o protagonista dramaturgo escrevia febrilmente madrugada adentro.
A moderna dramaturgia dos Estados Unidos foi assunto importante de discussões internas no Teatro de Arena no final dos anos 50, o que se deveu principalmente a Augusto Boal, que ingressara no grupo ao retornar de quase dois anos de estudos em Nova Iorque, em contato direto com o crítico John Gassner, na época docente colaborador na Universidade de Colúmbia. A ressonância desse contato repercutiu no Teatro de Arena tanto no período que precedeu os Seminários de Dramaturgia, com as montagens de “Ratos e homens” (Of mice and men), de John Steinbeck, em 1956, e de “A mulher do outro” (They knew what they wanted), de Sidney Howard, em 1957, como nas próprias discussões internas nos Seminários realizados entre 1958 e 1960, quando Boal colocou em pauta a análise de A Streetcar named Desire, de Tennessee Williams, naquele momento conhecida no Brasil pelo título de sua adaptação fílmica, “Uma rua chamada Pecado”.
Também o Teatro Oficina, em sua primeira encenação profissional, lançaria mão de uma das peças mais importantes do repertório dramatúrgico moderno dos Estados Unidos, “A vida impressa em dólar” (Awake and sing!), peça escrita em 1935 por Clifford Odets, dramaturgo cujo trabalho foi paradigma para a moderna dramaturgia estadunidense de esquerda nos anos 30 e para as gerações de autores então em formação como Arthur Miller e de Tennessee Williams.
  O conhecimento da dramaturgia e das concepções inerentes ao teatro estadunidense moderno revelou-se de tal forma necessário para o entendimento crítico da modernização teatral no Brasil, que Iná Camargo Costa, pesquisadora do teatro brasileiro, foi levada a desenvolver um estudo do conjunto das características constitutivas do teatro estadunidense, e a procurar situá-lo dentro do quadro mais amplo das forças históricas, culturais e políticas nele representadas.
Desse estudo resultou a compilação de textos que compõem o primeiro dos livros desta lista: “Panorama do rio vermelho. Ensaios sobre o teatro americano moderno”, lançado no ano 2000. O trabalho tem como escopo histórico o período que se inicia com a apresentação do Paterson Pageant [3], em 1913, e se estende até meados dos anos 50 com a formação do ator James Dean dentro do Actors Studio. O fio da meada histórico-crítico é a denúncia de que uma sistemática supressão teria incidido recorrentemente sobre os componentes do pensamento de esquerda nas experiências teatrais modernizadoras no teatro dos Estados Unidos, fator que teria atingido também trabalhos de autores do assim chamado cânone, como Eugene O’Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller. Esse processo, ao qual Iná denomina capítulo das supressões, é examinado por ela por meio da crítica à chamada Ameaça Vermelha (Red Scare), diagnóstico conjuntural difundido de diferentes formas pelo Estado estadunidense alertando para uma suposta infiltração de ideias soviéticas e subversivas nos diferentes escalões da vida do país.
Iná Camargo Costa não apenas discute a formação desse “cânone” teatral no contexto do segundo pós-guerra, mas também destaca e analisa as características de trabalhos sobre os quais se fizeram sentir, em diferentes graus e de diferentes maneiras, os processos de supressão de conteúdos críticos ao American Way of Life. Como ela própria ressalta, a característica central de seu trabalho é a de contar a contrapelo e na contramão da historiografia oficial, a história do teatro estadunidense moderno.
A leitura de “Panorama do rio vermelho” terá indiscutível proveito para um leitor desejoso em se iniciar no conhecimento historicamente fundamentado do teatro estadunidense. Ressalte-se ainda a importância do fato do livro tratar não apenas da dramaturgia dos integrantes da famosa “tríade” de modernizadores canônicos (Eugene O’Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller), mas de incluir a já mencionada abordagem do Paterson Pageant dirigido por John Reed em 1913, geralmente omitida nos livros de história do teatro dos Estados Unidos. “Panorama do rio vermelho” faz, ainda, merecida justiça ao trabalho de Elmer Rice, dramaturgo e ensaísta que escreveu The adding machine (“A máquina de somar”) em 1923. Essa peça, grande marco do expressionismo teatral estadunidense, permaneceu inédita no Brasil até 1998, quando foi traduzida por iniciativa da própria Iná em colaboração com o diretor e pesquisador Márcio Boaro, e logo em seguida encenada pela Companhia Ocamorana sob a direção de Alexandre Mate.
É de Elmer Rice o segundo livro desta lista, “O teatro vivo”, lançado nos Estados Unidos em 1959 e traduzido e publicado no Brasil no mesmo ano pela Editora Fundo de Cultura, com muitos anos de antecedência em relação à montagem que acabamos de mencionar. Seu título em português é a tradução literal de The living theatre, compilação de palestras que Rice dera em 1957 na Graduate School da New York University. É importante observarmos que, apesar do título que tem no original em inglês, o trabalho de Rice não trata do trabalho do grupo teatral nova-iorquino homônimo, fundado por Julian Beck e Judith Malina em 1951 [4], mas dos aspectos constitutivos do teatro como linguagem e dos elementos históricos, e os estilísticos que o marcaram em diferentes contextos. O teatro estadunidense em si é abordado especificamente apenas entre os capítulos 11 e 21. Ainda assim, a inclusão de “O teatro vivo” nesta lista é fundamental dada a notável capacidade de síntese e de crítica de Rice ao abordar aspectos relacionados tanto à dinâmica cultural que caracterizava os Estados Unidos, como à estrutura material de produção implicada nas diferentes frentes de trabalho e concepções cênicas.
Rice examina e problematiza o papel desempenhado pela arte teatral no contexto estadunidense, em que o teatro havia se organizado, desde o seu nascedouro, como empreendimento comercial por excelência. Não escapam às suas considerações aspectos como os custos de produção envolvidos, a natureza das relações estabelecidas com as matrizes culturais europeias, o tardio florescimento de uma dramaturgia estadunidense e o surgimento e os esforços de sobrevivência de grupos experimentais e independentes como o New Theatre, o Neighborhood Playhouse, o Civic Repertory Theatre, o Washington Square Players, o Provincetown Players, o Theatre Union e o Group Theatre. As estéticas cênicas e dramatúrgicas são passadas em revista por Rice à luz dos fatores históricos e culturais do país.
Há uma questão espinhosa levantada por ele nesse percurso pelos meandros dos trabalhos de todos esses grupos alternativos: o que permitiu que sobrevivessem durante o tempo de existência que tiveram? Qual a relação entre o experimentalismo que os articulou e a subsistência necessária à empreitada artística? Ao colocar essas e outras questões, Rice oferece ao leitor neófito e interessado um bem delineado fio da meada que lhe permitirá situar-se, para posteriores aprofundamentos, em relação aos marcos fundadores principais nesse contexto teatral dos Estados Unidos.
A relevância da experiência artística e política de Rice como homem de teatro leva-o a incorporar paralelamente, nesse périplo histórico e cultural do teatro estadunidense, um assunto do qual não é improvável que pouco ou nada se soubesse, aqui no Brasil, na época do lançamento de “O teatro vivo”: o Projeto Federal de Teatro, o maior e mais abrangente dos projetos da gestão Roosevelt, criado em 1935 para reerguer economicamente o setor de trabalho no âmbito das artes teatrais durante a Depressão Econômica. Rice exerceu, por indicação da Diretora Nacional, Hallie Flanagan, a direção regional do Projeto em Nova Iorque, entre 1935 e 1936, e sob sua gestão foram criados e levados à cena os inovadores jornais vivos (living newspapers), documentários teatrais épicos focados na representação cênica de notícias da agenda política nacional e internacional. Rice renunciou à função logo após o episódio de censura de Ethiopia, jornal vivo que denunciava a invasão desse país pelas tropas de Mussolini. O Projeto Federal de Teatro encerrou-se em 1939, quando foram cortados os fundos governamentais que o subsidiavam.
As questões abordadas e discutidas por Rice em “O teatro vivo” não apenas não perderam sua atualidade, como passaram a dialogar cada vez mais, no contexto brasileiro, com impasses relacionados à luta pela sobrevivência do trabalho teatral independente e do espírito de criação, pesquisa e crítica. Trata-se, portanto, de um livro de imprescindível leitura para o hipotético leitor interessado em tomar contato com o teatro estadunidense.
“Rumos do teatro moderno”, de John Gassner, o terceiro livro desta lista, foi publicado nos Estados Unidos em 1960 com o título de Theatre at the crossroads: plays and playwrights of the mid century American Stage. A edição original é de 1960, e a primeira edição brasileira foi lançada em 1965, numa época de particular expansão do interesse pelo teatro e pelas experimentações cênicas no contexto teatral estadunidense. Os textos abordam questões centrais relacionadas às transformações vividas pelo teatro dos Estados Unidos entre 1945 e o início dos anos 60. O que Gassner entende como “encruzilhada” (a palavra crossroads do título original) diz respeito à ideia de que para ele o teatro se via, nessa fase mais do que em qualquer outra anteriormente, diante da necessidade de problematizar e de definir as suas próprias especificidades dentro de uma era hegemonizada pela gigantesca indústria hollywoodiana do cinema. Mesmo sem pretender exaurir a análise dessa questão, Gassner detecta e discute com agudeza crítica, nos diversos ensaios, os paradoxos e as contradições que afloravam dentro da estrutura teatral dominante, abordando-os sob o ponto de vista da dinâmica histórica da cultura teatral do país, da criação dramatúrgica e das estéticas cênicas vigentes naquele contexto. Gassner não perde de vista a defasagem que se apresenta entre o teatro estadunidense e o europeu que lhe era contemporâneo: um exemplo disso é sua observação sobre o fato de os Estados Unidos, como país historicamente jovem e importador de ideias e estilos, terem “descoberto” Giraudoux e Anouilh quando os franceses, no contexto de origem desse autores, já tinham diante de si a dramaturgia e os processos de criação de Genet e de Ionesco, observação que evidencia o viés crítico de sua abordagem.
Igualmente significativo e merecedor de atenção é um paradoxo que Gassner identifica no processo de modernização dramatúrgica que disseminaria internacionalmente os padrões de expressão associados ao teatro estadunidense moderno: o paradoxo identificado por ele consiste no fato de o grande avanço na difusão internacional do teatro dos Estados Unidos ter coincido, justamente, com o momento em que a “base comercial” de sustentação desse teatro, até pouco antes vigente, ter sido abalada irreversivelmente com o avanço de formas alternativas em várias direções.
Gassner é inequívoco ao apontar como responsáveis pelos avanços os grupos que despontavam fora da Broadway. Observador perspicaz e não comprometido com diagnósticos teorizantes, ele não deixa margem de dúvida ao comentar, paralelamente, o fato de a dramaturgia estadunidense moderna ter sido a fonte principal para a área de criação de roteiros de cinema e de teledramaturgia. Distorções resultaram desse processo inevitavelmente, e a partir delas o crítico detecta outra “encruzilhada” teatral potencialmente latente entre duas opções que então se apresentavam: a de preservar os padrões do realismo ou de romper com eles. Interlocutor que foi de dramaturgos em fase de formação, Gassner sintetiza esse dilema como fruto de duas possibilidades antagônicas: a de escrever como repórter ou como criador. “Texto ou Projetor” é o título significativo de um dos capítulos, e nele está implícito o dilema que, na seara teatral e cultural dos Estados Unidos, se mostra mais determinante e concreto do que em qualquer outra que se conheça.
Gassner não é apenas um crítico lúcido e perspicaz, mas é, também, alguém que dispõe de um imenso repertório de leituras que lhe permite historicizar cada passo de sua análise, e discutir as demandas que se apresentavam no campo das formas. Longe de ter sido o preconizador de um realismo stricto senso, como veio incorretamente a ser entendido no Brasil, Gassner defende, em cada uma de suas formulações, a importância da preservação de um papel social para o teatro, posicionando-se em prol da arte teatral como força de criação e expressão engajada nas transformações sociais, procurando dar voz a elas por meio de todas as suas expressões artísticas e processos de trabalho, inclusive aqueles de cunho não realista. “Realista”, para ele, é o teatro socialmente empenhado, pois incorpora o esforço de figurar aspectos concretos da sociedade à sua volta. Essa modalidade de “realismo” é, para ele, flexível o suficiente para se beneficiar inclusive de expedientes antinaturalistas, enriquecendo-se sobremaneira com o emprego de elementos de figuração estilizados e teatralizados. Dentro desse ângulo de entendimento, “realista” poderia ser, como ele próprio frisa, o próprio Bertolt Brecht, tanto quanto dramaturgos como Arthur Miller, Tennessee Williams e William Inge.
O leitor desejoso de tomar contato com o teatro estadunidense encontrará, em “Rumos do Teatro”, um levantamento pertinente e bem contextualizado de questões centrais da modernização teatral estadunidense.
O quarto livro da lista trata de um dos aspectos mais fundamentais do teatro estadunidense do ponto de vista da interpretação: os desdobramentos estadunidenses dos processos de trabalho de Stanislavski, abordados por Lee Strasberg, ator e diretor ligado ao Group Theater e um dos nomes centrais do Actors Studio, o mais famoso núcleo de preparação de atores dos Estados Unidos.
O título do livro, “Um Sonho de Paixão” (A Dream of Passion), remete ao trecho de uma fala de Hamlet acerca do vigor emocional da expressão do ator na segunda cena do Ato II da tragédia shakespeariana. Qual o fundamento da interpretação do ator? Como pode o ator ao mesmo tempo sentir e exercer controle técnico sobre aquilo que sente? Na abordagem destas questões centrais, Strasberg examina o chamado “Método”, associado ao estilo interpretativo do Actors Studio, e discute o aporte dos expedientes de treinamento de atores de Constantin Stanislavski e de seus discípulos radicados nos Estados Unidos. O trabalho relatado e analisado no livro foi acompanhado e desenvolvido por Strasberg em etapas sucessivas no Group Theatre, no Actors Studio e posteriormente no Lee Strasberg Studio.
O passo inicial para a aclimatação dos processos stanislavskianos nos Estados Unidos se deu na primeira metade dos anos 1920 por meio do American Laboratory Theatre (ou “Lab”, como era chamado), em que o próprio Strasberg teve sua formação inicial, conduzida por Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya, egressos da trupe do Teatro de Arte de Moscou. Colocando em pauta a relação entre o trabalho desenvolvido naquele momento por Stanislavski e aquilo que posteriormente viria a ser chamado de “o Método” no contexto estadunidense, Strasberg chama a si parte da responsabilidade pelo teor deste último, definindo-o como a súmula dos processos que absorveu e aprofundou em contato com os mestres russos no “Lab”, com as concepções de Vakhtangov [5], e com o trabalho que ele próprio desenvolvera no Group Theatre.
A linha de trabalho apresentada e discutida por Strasberg colocou-se em crescente divergência com a de outro importante membro do Group Theatre: a atriz Stella Adler, que tivera contato direto com o próprio Stanislavski na Europa na década de 1930, e portanto em etapa conceitual e prática posterior à da época em que Boleslavsky e Ouspenskaya se radicaram nos Estados Unidos. Enquanto Strasberg tratava centralmente da memória afetiva, Adler dava ênfase às ações físicas como fundamentos para a interpretação. Para Strasberg, o processo interpretativo apoiado no emprego da memória afetiva era diretamente tributário dos exercícios e técnicas aplicados por Boleslavsky e Ouspenskaya, e “Um Sonho de Paixão” apresenta e analisa os aspectos práticos relacionados.
Strasberg insiste na ideia de que seu livro e suas formulações não visam a instituir um passo a passo metodológico para que resultados específicos de interpretação sejam atingidos. Ao mesmo tempo, ele rebate as críticas de que os processos de trabalho ligados ao “Método” poderiam ser úteis apenas para a encenação de autores como Clifford Odets, Anton Tchekhov e Arthur Miller, e não de dramaturgos associados a formas de teatralidade mais aberta, como Shakespeare, Tennessee Williams e Edward Albee. Essa forma de leitura resulta, para ele, do erro de se olhar para o “Método” com base no repertório do Group Theatre especificamente, e não nas técnicas utilizadas para o treinamento dos atores, ou na presença de nuances interpretativas inspiradas em montagens como “O Dibuk” e “Turandot”, dirigidas por Vakhtangov no contexto russo.
Como “Um Sonho de Paixão” foi lançado no Brasil na década de 1980, Strasberg incluiu e brevemente discutiu, no capítulo final, a presença de criadores e pensadores como Artaud, Grotowski e Brecht no contexto do teatro em que o chamado “Método” continuava a reverberar como uma referência. Dada a importância formativa e a longa sobrevivência processual dos expedientes de trabalho interpretativo do Actors Studio e de suas raízes anteriormente esboçadas no Lab e no Group, a leitura do livro de Strasberg trará elementos importantes e necessários para que o leitor possa situar-se em seu contato inicial com o teatro estadunidense.
As indicações que se seguem na lista dos dez livros dizem respeito a peças fundamentais da moderna dramaturgia dos Estados Unidos. Em ordem cronológica, “Nossa cidade” (Our town), de Thornton Wilder, precede as demais, tendo sido escrita em 1938. Estruturada como narração presentificada a partir da condução cênica de um Diretor de Cena (Stage Manager), a peça tornou-se um dos clássicos da dramaturgia moderna dos Estados Unidos. Os recursos cênicos são mínimos, tendo sido explorado ao máximo o aspecto da representação enquanto artifício. Cada um de seus três atos representa uma época da vida de seus protagonistas: o primeiro trata da faina diária do trabalho e da família no contexto da infância de dois dos personagens, o segundo, das transformações trazidas com a adolescência, o amor e o casamento, e o terceiro situa a consciência e a percepção de uma das personagens diante do fato consumado de sua própria morte e das implicações trazidas com a descoberta que o post mortem lhe faculta a opção de assistir-se vivendo qualquer um de seus dias de vida.
Ao contrário do que se pode supor, a divisão em atos não atua como roteiro organizador de uma sequência cronológica de acontecimentos: pelo contrário, serve como suporte para avanços e recuos da linha temporal na narração conduzida pelo Diretor de Cena. Determinados fatos são apresentados mais de uma vez e sob diferentes perspectivas de percepção, cada qual correspondendo a uma específica situação etária e emocional dos personagens envolvidos. Formalmente localizada fora do âmbito do drama convencional, “Nossa cidade” foi objeto de uma importante passagem de análise de Peter Szondi em “Teoria do Drama Moderno. [1880-1950]”:

Dificilmente há uma outra obra da dramaturgia moderna que seja ao mesmo tempo formalmente tão arrojada e de uma simplicidade tão comovente no enunciado como Nossa cidade [Our Town, 1938], de Thornton Wilder. Na lírica melancólica que o dia-a-dia recebe aqui, Wilder deve algo aos dramas de Tchékhov, mas suas inovações formais procuram livrar a herança tchekhoviana de suas contradições e levá-Ia à forma adequada, para além do drama (SZONDI, 2001, p. 156).

Um aspecto de extrema importância da peça de Wilder é a sua representatividade em relação à aclimatação dos recursos épicos nas plagas teatrais dos Estados Unidos, em que o épico propriamente dito se viu sempre, em alguma medida, em terreno menos propício ao seu florescimento do que o drama.
A esse respeito vale lembrar que “Nossa cidade” institucionalizou-se amplamente e lançou raízes no imaginário afetivo de gerações e gerações de estudantes dentro e fora dos cursos de teatro e dos teatros comunitários em todo o país. Mas vale lembrar também que essa canonicidade, apoiada no carinhoso olhar sobre o microcosmo familiar de uma cidadezinha fictícia de New Hampshire, foi, em alguma medida, alimentada pelos críticos em detrimento de outras peças que, aproximadamente no mesmo período e contexto, fizeram incursões pelo épico por meio de macro representações de classe e dos processos da alienação e da exploração dos trabalhadores, aspectos estes que não se apresentam na peça de Wilder. Veja-se, por exemplo, We, the people (“Nós, o povo”, sem tradução para o português), de Elmer Rice, de 1933, Waiting for Lefty (“Esperando Lefty”, sem tradução publicada para o português), de 1935, de Clifford Odets, ou mesmo Case of Clyde Grifiths, peça escrita pelo diretor alemão Erwin Piscator e encenada pelo Group Theatre em 1936 a partir de An American Tragedy, romance naturalista de Theodore Dreiser.
A peça de Wilder fez parte do percurso formativo de várias gerações de atores e de estudantes de artes cênicas também no contexto brasileiro, e seja por seu papel histórico dentro do teatro dos Estados Unidos, seja pela especificidade de sua forma, sua inclusão como o quinto título na lista dos dez livros essenciais está plenamente justificada.
As sugestões de números seis e sete da lista remetem a compilações editoriais de peças de Tennessee Williams e de Arthur Miller, dramaturgos cujos trabalhos passaram a ter extraordinária divulgação cênica e fílmica no Brasil a partir do segundo pós-guerra e do final dos anos 40. A matéria social figurada em peças desse autores colocou em cena situações ainda historicamente recentes no Brasil desse mesmo período, como, por exemplo, as condições de vida e subsistência em grandes centros urbanos e industriais em expansão, as transformações no mundo do trabalho, o crescente isolamento e alienação dos indivíduos na sociedade capitalista e o empobrecimento dos padrões de convívio afetivo no âmbito da família. Essas eram questões prementes, mas ainda em larga medida intocadas pela dramaturgia brasileira dessa mesma época. Tomá-las como matéria de criação era um desafio para as gerações de dramaturgos que aqui despontavam, e isso contribuiu bastante para o crescente interesse sobre a dramaturgia estadunidense moderna.
Peças como “À margem da vida” (tradução utilizada na primeira montagem de The glass menagerie) ou “A morte do caixeiro viajante” (Death of a salesman) foram percebidas como expoentes de uma dramaturgia que tinha colocado em cena questões cruciais da sociedade, do sistema econômico e das estruturas de pensamento dominantes no contexto capitalista e industrial dos Estados Unidos.
Com isso, as escrituras dramatúrgicas de Tennessee Williams e de Arthur Miller tornaram-se matéria de interesse para a jovem geração de autores que se formou no Teatro de Arena a partir do final dos anos 50 com os Seminários de Dramaturgia. O teatro de Miller e de Williams foi, paralelamente, objeto de trabalho interpretativo tanto em companhias profissionais como no âmbito amador, caso do Grupo de Teatro Experimental de Alfredo Mesquita e da Escola de Arte Dramática.
As peças de Tennessee Williams tratam centralmente da marginalização social e da solidão. Inadequadas aos padrões concorrenciais da sociedade capitalista, suas personagens sofrem, paralelamente, com a repressão imposta às suas pulsões sexuais ou à sua homossexualidade latente ou explícita. Os diálogos tendem ao lírico, e há frequente uso de narrativas para remissão aos conteúdos da memória, seja esta real ou imaginária. Não casualmente, esses foram recursos importantes na configuração da modernização dramatúrgica também no contexto do teatro brasileiro.
As peças de Miller colocam em cena os enfrentamentos de personagens que, de diferentes formas e por diferentes motivos, se veem em desacordo e em conflito com a estrutura de poder vigente na sociedade em que vivem. Questões cruciais do presente surgem e as remetem a pendências do passado, demandando a sua superação.
Raymond Williams, autor de “Tragédia Moderna” (2002), observa em seu estudo que o teatro de Arthur Miller revitalizou a estrutura ibseniana da tragédia liberal: as personagens vivem em uma sociedade em que vigoram relações falseadas, e lutam para manter individualmente sua própria integridade, o que acaba se revelando inviável. Por diferentes motivos e em diferentes situações, essas personagens se veem na contingência de enfrentar, no presente, as consequências de suas escolhas e atos do passado, e de empreender um percurso analítico que as precipita numa compreensão agônica e tardia. Como frisa Raymond Williams, o “eu” que deseja, sonha e tem aspirações entra em conflito com o “eu” que deve, para sobreviver, submeter-se aos preceitos e valores socialmente instituídos, e nesse processo de dilaceramento desencadeia-se a sua destruição.
A dramaturgia de Arthur Miller, como a de Tennessee Williams, coloca em foco a figuração de problemas cruciais do capitalismo no século XX, principalmente no que diz respeito ao esmagamento do indivíduo diante das transformações do mundo do trabalho e das pressões ferozes infligidas pelos mecanismos de competição e de promoção social. Enquanto o padrão dramatúrgico de Tennessee tem base lírica perpassada pela introspecção e pela ironia, o de Miller induz ao raciocínio analítico e à irreversibilidade das constatações: erros passados são expostos e o entendimento vai aos poucos aflorando; por meio dele, porém, as personagens constatam a impossibilidade de sua própria salvação.
As duas edições antológicas indicadas nos itens seis e sete desta lista colocarão o leitor em contato com peças focadas centralmente nestes processos de criação, e elas lhe darão elementos importantes para a constituição de um repertório de leitura e de uma sensibilidade analítica.
O oitavo item da lista é uma das peças mais intensa e unanimemente celebradas do século XX: “Longa jornada do dia noite adentro” (Long day’s journey into night) de Eugene O’Neill, escrita em 1941 e dada a público após a morte do autor em 1953. Peça de tessitura realista e densa, concentrada no espaço (a pequena casa de veraneio da família Tyrone) e no tempo (o decorrer de um dia de verão que se inicia às oito da manhã e se estende até a meia noite), “Longa jornada...” ficcionaliza uma série de dilemas verídicos que marcaram a vida familiar do autor. Os traços constitutivos das personagens, suas angústias e desejos, e seus enfrentamentos e temores expõem centralmente a matéria autobiográfica utilizada pelo dramaturgo. Precisamente por isso, uma particular demanda de complexidade psicológica recai sobre a esfera da interpretação: é necessário figurar em cena questões como a irrealização dos sonhos passados, a dependência química, o alcoolismo, o luto, a doença, e o interminável contorcer-se da consciência das personagens num círculo vicioso que as transforma em testemunhas perenes dos erros e culpas dos demais.
A peça faz inúmeras remissões à literatura dramática e poética por meio de recitação em cena e de verdadeiros duelos literários entre as personagens do pai e do filho mais velho: de um lado, a genialidade de Shakespeare é cultuada pelo pai, um ator shakespeariano frustrado; de outro, diz mais à sensibilidade do filho mais velho a morbidez da poesia vitoriana e baudelairiana, figuração de um mundo eivado de desigualdades. Não há ação dramática stricto senso, mas o gradativo assombramento do cotidiano por interditos que se insinuam continuamente. Num texto de tessitura verbal caudalosa e densa, os conflitos interiorizados pulsam, eclodem, mas permanecem irresolvidos: o domínio dramatúrgico de O’Neill na condução cênica deste processo fez desta peça um dos mais importantes pontos de referência do teatro estadunidense no século XX.
“Quem tem medo de Virginia Woolf?” (Who’s afraid of Virginia Woolf?), escrita por Edward Albee em 1963, é a nona indicação da lista aqui comentada. Trata-se da peça que assinalou a precoce passagem do autor, surgido no âmbito alternativo e experimental do teatro nova-iorquino, para o patamar dos nomes aclamados pela crítica dentro e fora dos Estados Unidos.
Não teria sido menos pertinente e significativa para a proposta deste Guia Bibliográfico (muito pelo contrário) se a indicação feita tivesse sido a da peça de estreia do autor, “A História do Jardim Zoológico” (The Zoo Story), de 1959. Essa indicação teria sido dada caso sua tradução tivesse, em algum momento, sido objeto de publicação no Brasil, e estivesse disponível em acervos de bibliotecas ou em catálogos de editoras brasileiras. A constatação dessa lacuna é no mínimo surpreendente já que poucas outras peças estadunidenses de sua época marcaram tanto a formação das várias gerações de dramaturgos e espectadores entre os anos 60 e 70 do século XX. A edição de número oitenta e cinco dos “Cadernos do Tablado”, no Rio de Janeiro, publicou, em 1980, a tradução feita por Luiz Carlos Maciel, que pode, atualmente, ser acessada pela internet [6].
Em 1961 um livro do crítico britânico Martin Esslin (1967) enquadrou a dramaturgia nascente do jovem Albee no campo conceitual do assim chamado “teatro do absurdo”, termo que o crítico cunhou para designar o teatro de matriz existencialista e metafísica do segundo pós-guerra europeu. O enquadramento feito por Esslin foi objeto de críticas e contestações posteriores, mas serviu indiretamente para documentar o fato de que um novo padrão dramatúrgico havia surgido, no teatro estadunidense, com o trabalho de Albee e de seus contemporâneos nos minúsculos espaços experimentais do chamado off off Broadway em Nova Iorque.
Com estrutura enxuta e concentrada no espaço e no tempo, “A História do Jardim Zoológico” coloca em cena o encontro e subsequente confronto entre dois personagens desconhecidos entre si, fazendo eclodir antagonismos ideológicos, culturais e de classe, e revelando aspectos devastadores e sombrios da mediania e dos valores sociais dominantes. No contexto brasileiro, “A História do Jardim Zoológico” marcou indelevelmente o trabalho de atores e dramaturgos, principalmente dentro do contexto da ditadura militar e da censura.
Enquanto “A História do Jardim Zoológico” trabalha com base na concisão e na concentração como recursos centrais, “Quem tem medo de Virginia Woolf?” apresenta uma estrutura aparentemente mais convencional: situa-se no epicentro ideológico do establishment (o campus de uma universidade estadunidense típica) e seus três atos decorrem durante uma reunião noturna pós-festa entre dois casais de professores: um mais velho, da área de história, cuja mulher é filha do presidente da universidade, e outro mais jovem, da área de biologia, recém-casado com uma moça logo a seguir diagnosticada com uma gravidez histérica.
Longe de ser menos contundente em seu teor de crítica, a peça expõe cruamente as fantasmagorias das personagens ao longo dos três atos, intitulados respectivamente “Passatempo” (Fun and games), “A Noite de Valburga” (Valpurgisnacht) e “O Exorcismo” (The exorcism). A informalidade cordial do início dá margem a jogos tacitamente admitidos de exposição emocional entre as personagens. Num processo de crescente intensidade emocional, elas adentram a zona limítrofe em que os pactos do afeto não conseguem minimizar a dor por perdas e equívocos passados. Os referenciais de conduta fragilizam-se diante disso, e os papéis socialmente instituídos perdem qualquer sentido real. Prevalece ao final a inelutável constatação do caráter ilusório e rarefeito daquilo que efetivamente as une entre si, e que pode lhes trazer, paliativamente, um relativo e provisório apaziguamento interior.
Para quem tem pouco contato com o gigantesco poder do establishment ideológico e da indústria cultural nos Estados Unidos parecerá surpreendente que uma peça como “Quem tem medo de Virginia Woolf?” tenha sido, três anos depois de estrear, adaptada para o cinema e protagonizada por dois nomes estelares do universo hollywoodiano da época. Rapidamente Albee atingiu um patamar de reconhecimento que tornou seu trabalho atraente para produções teatrais do grande circuito do teatro comercial. Se a voracidade avassaladora do sistema deslocou o trabalho de Albee (e de outros) com vertiginosa rapidez das margens experimentais do off off para o centro comercial da Broadway, ela não extirpou dele sua substância crítica, embora tenha tornado mais dificultosa a percepção analítica de quem se interessa por detectar nele, com alguma lucidez, aquilo que de fato interessa. No contexto brasileiro a primeira montagem de “Quem tem medo...” estrearia em 1965 sob a direção de Maurice Vaneau, tendo Cacilda Becker e Walmor Chagas nos dois principais papéis.
Chegamos assim à décima e última indicação desta lista: uma compilação de quatro peças de Sam Shepard, um dos jovens autores revelados a partir do pequeno centro pulsante de experimentação dramatúrgica e cênica que foi o La Mama Experimental Theatre Club, fundado por Ellen Stewart no Lower East Side nova-iorquino no início dos anos 60. Shepard viria a desenvolver carreira extensa e diversificada também no campo do cinema, trabalhando como ator, diretor e roteirista.
Embora revelada a partir do núcleo do experimentalismo cênico do off off Broadway, sua dramaturgia remete, em grande parte, ao oeste dos Estados Unidos, às raízes históricas e culturais que o diferenciam, e aos estereótipos que lhe foram sendo apostos dentro do imaginário e da iconografia do cinema e do consumo. Um dos grandes desafios que se colocaram para a criação de dramaturgia na segunda metade do século XX foi a de representar questões ligadas à indústria cinematográfica e à forma como seu avassalador poder é absorvido e naturalizado.
Dentro da edição indicada neste Guia esse aspecto se apresenta em Angel City, de 1976 e em “Oeste Verdadeiro” (True West), de 1980, enquanto La Turista, de 1967, coloca em foco, com sarcástico e contundente simbolismo, a arrogância histórica dos Estados Unidos, numa remissão implícita ao contexto da guerra do Vietnã.
O fato de as peças de Shepard abordarem com frequência situações-limite de tensão familiar contribuiu para que fossem enquadradas pela crítica dominante na categoria temática das assim chamadas “peças sobre famílias disfuncionais”. Essa foi a perspectiva que predominou na abordagem de outra das peças da edição indicada, “Mente Mentira” (A Lie of the Mind), de 1985. O falseamento presente dos mitos nacionais fundadores é apresentado nela sem meias tintas, o que levou grande parte dessa mesma crítica a identificar no texto um desejo “nostálgico” de “resgate” desse passado mítico idealizado.
Para que não se incorra numa análise redutora do trabalho de Shepard é oportuno lembrar que uma das características constitutivas da ideologia dominante dos Estados Unidos é o entendimento de que a família seria, supostamente, um espaço imune às mazelas da sociedade, ou seja, uma espécie de “refúgio” idealizado em que as regras avassaladoras e opressoras do capitalismo não se aplicariam, e em que imperariam os laços do afeto.
Este entendimento amplamente disseminado desconsidera o fato de a família, por sua própria constituição histórica, configurar-se a partir dos mesmos fatores e ideologias que operam em todos os outros campos da vida social. A “disfuncionalidade” que se apresenta na dramaturgia de Shepard não é determinada, em última instância, pelo grau de incoerência com que pais ou filhos exercem ou deixam de exercer seus papéis, mas pela estrutura que precarizou as formas de convívio e as regras da sobrevivência na sociedade de consumo em que vivem.
O passado agrário e os mitos fundantes, tais como representados por Shepard em sua dramaturgia, são fantasmagorias distorcidas, são ícones de neon e projeções ilusórias da América rural e do Oeste como terra da riqueza e da oportunidade. As imagens, alusões e associações simbólicas aparecem de forma esvaziada e cáustica, e em alguns momentos tangenciam o dark humor.
As indicações apresentadas neste Guia têm caráter introdutório e estão longe de pretender esgotar todas as perspectivas de interesse que se apresentam. Mas certamente o leitor interessado encontrará nelas elementos que poderão norteá-lo para aprofundamentos posteriores.
O décimo primeiro livro aqui indicado, Dramaturgia Comparada Estados Unidos-Brasil. Três Estudos, de 2017, é posterior ao lançamento do Primeiro Guia Bibliográfico da USP, e foi acrescentado nesta versão revista do texto original de forma a não interferir em sua estrutura de organização. Dentro dela sua inserção caberia no primeiro eixo temático: o que diz respeito às abordagens histórico-críticas.
O livro apoia-se, como seu título indica, na perspectiva teórica da Dramaturgia Comparada, e aborda três aspectos centrais da dramaturgia e dos escritos teatrais estadunidenses traduzidos, encenados e veiculados no Brasil. O primeiro realiza um levantamento dos espetáculos, textos teatrais e concepções críticas estadunidenses no período inicial de sua encenação e circulação editorial no Brasil, entre 1945 e 1968; o segundo examina a estrutura formal da peça em um ato na abordagem de trabalhos de Eugene O’Neill (1888-1953) e Tennessee Williams (1911-1983), expoentes do cânone dramatúrgico estadunidense do século XX; o terceiro, por sua vez, verticaliza a análise dos expedientes compositivos e figurativos empregados na trilogia America Hurrah (1965-66), de Jean-Claude van Itallie (1934-), dramaturgo belgo-estadunidense ligado ao experimentalismo cênico do off off Broadway dos anos 1960.
O papel estético e político da dramaturgia estadunidense no contexto teatral brasileiro é, assim, apresentado com base em aproximações críticas que empreendem, respectivamente, um mapeamento histórico e crítico do primeiro momento de grande aporte de trabalhos teatrais estadunidenses, a análise de uma estrutura formal importantíssima para a modernização dramatúrgica realizada no século XX, e a abordagem de recursos dramatúrgicos desafiadoramente experimentais destinados a figurar o mundo da exploração gerencial do trabalho, a guerra e a televisão como veículo de massas.
As indicações apresentadas neste Guia têm caráter introdutório e estão longe de pretender esgotar todas as perspectivas de interesse que se apresentam. Mas certamente o leitor interessado encontrará nelas elementos que poderão norteá-lo para aprofundamentos posteriores.


Os onze livros indicados foram:

ALBEE, Edward. Quem tem medo de Virginia Woolf? Tradução Nice Rissone. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

BETTI, Maria Sílvia. Dramaturgia Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos. São Bernardo do Campo (SP): Cia. Fagulha, 2017.

COSTA, Iná Camargo. Panorama do rio vermelho: ensaios sobre o teatro americano moderno. São Paulo: Nankin Editorial, 2001.

GASSNER, John. Rumos do teatro moderno. Tradução de Luzia Machado da Costa. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 1965.

MILLER, Arthur. A morte do caixeiro viajante e outras quatro peças. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

O’NEILL, Eugene. Longa jornada noite adentro. São Paulo: Peixoto Neto, 2004.

RICE, Elmer. Teatro vivo. Tradução de Zora Seljan. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.

SHEPARD, Sam. Quatro peças. (La turista / tradução de Marcos Renaux e Otavio Frias Filho. Angel city / tradução de Marcos Renaux e Otavio Frias Filho. Oeste verdadeiro / tradução de Marcos Renaux e Marilene Felinto. Mente mentira / tradução de Marcos Renaux e Marilene Felinto.) São Paulo: Paz e Terra, 1994.

STRASBERG, Lee. Um sonho de paixão: o desenvolvimento do método. Texto original editorado por Evangeline Morphos; tradução Anna Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

WILDER, Thornton. Nossa cidade. Tradução Elsie Lessa. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

WILLIAMS, Tennessee. O Zoológico de vidroDe repente no último verão; Doce pássaro da juventudeTradução: Grupo Tapa e Clara Carvalho. São Paulo: É Realizações, 2014.





ALBEE, Edward. A História do Jardim Zoológico. Tradução de Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: In Cadernos do Tablado, n. 85, 1980. Disponível em: <http://otablado.com.br/media/cadernos/arquivos/CADERNOS_DE_TEATRO_NUM_85.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2019.

BETTI, Maria Sílvia. Dramaturgia Comparada Estados Unidos - Brasil: três estudos. São Bernardo do Campo (SP): Cia. Fagulha, 2017.

CANDIDO, Antonio. Dez Livros Para Conhecer o Brasil.
Disponível em: <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2017/11/>. Acesso em: 27 fev. 2019.

ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Apresentação de Paulo Francis. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MAZOUR, Anatole G. Russia: Tsarist and Communist. D. Van Nostrand: Princeton, 1962.

Primeiro Guia Bibliográfico da USP. Disponível em: <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2017/03/21/fflch-lanca-o-primeiro-guia-bibliografico-da-usp/>. Acesso em: 27 fev. 2019.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Tradução Betina Bishof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.




[1] Este texto integra o Primeiro Guia Bibliográfico da USP, criado por iniciativa do Prof. Dr. João Roberto Faria durante sua gestão como Vice-Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP com base no artigo “Dez Livros Para Conhecer o Brasil”, de Antonio Candido, escrito, por sua vez, para a edição número 41 da Revista Teoria e Debate.


[2] Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Livros:
Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017), e Oduvaldo Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).
Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy), 2013.
Organizadora, prefaciadora e autora dos textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018) e Papa Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho.
Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004).
Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams. 

Artigos recentes:
Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras alegóricas (in Ingrid Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor Almeida, SESC, 2018).
Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha).
"The Piscator Notebook", de Judith Malina: apontamentos de análise sobre o registro de um processo formativo. (In Blog da Cia. Fagulha).

[3] O pageant é uma encenação épica cujas raízes históricas remontam à Inglaterra elisabetana (século XVI). Sua natureza é coletiva e não aristotélica por excelência: não há ação individual e os conflitos e movimentos principais são abordados sob a perspectiva da comunidade à qual se ligam. Todos os acontecimentos são apresentados sob a forma de uma grande sucessão de quadros com alegorias e centenas de figurantes. O Paterson Pageant coloca em cena a mobilização e a greve dos trabalhadores da indústria da seda em New Jersey em 1913. Foi encenado na noite de 07 de junho desse mesmo ano no Madison Square Garden, em Nova Iorque, e representou um dos mais importantes marcos da história do movimento radical nas artes no Estados Unidos. Diante de uma plateia de mais de quinze mil pessoas, sob o brilho de luzes que formavam as iniciais IWW (Industrial Workers of the World: Trabalhadores Industriais do Mundo) em letras de três metros de altura, o espetáculo reuniu cerca de mil e quinhentos participantes, em sua maioria operários de origem judaica, italiana e polonesa.

[4] O Living Theatre foi um dos grupos fundadores das estéticas cênicas experimentais no contexto contracultural dos Estados Unidos nos anos 60 e 70. O Living, como costuma ser chamado informalmente, teve importante e significativa permanência de dez meses no Brasil, em 1970, período em que desenvolveu trabalho agitativo tanto nos meses iniciais, em São Paulo, como a seguir na região de Saramenha, Minas Gerais, próxima a Outro Preto. Seus integrantes viriam a ser presos e posteriormente deportados após meses de confinamento em plena vigência da ditadura militar e das perseguições políticas em todos os setores da vida pública do país. A deportação veio após intensa mobilização e clamor da opinião pública internacional, com farta repercussão nos órgãos de imprensa e nos meios artísticos.

[5] Yevgeny Vakhtangov (1883–1922), ator russo, produtor e fundador do teatro que levou seu nome em Moscou. Discípulo e amigo de Stanislavski, Vakhtangov achava que as velhas peças realistas e naturalistas estavam superadas e precisavam ser apresentadas sob nova concepção cênica para que tivessem significado no contexto dos novos tempos. Isso requeria, segundo ele, a incorporação de outras técnicas por parte dos atores: maior ênfase devia recair, por exemplo, sobre os aspectos da intensidade dramática, e não sobre o determinismo biológico ou psicológico. Esta forma de pensamento levou Vakhtangov a encenar peças como “A Princesa Turandot”, de Gozzi, ou “O Milagre de Saint Anthony”, de Maeterlinck, em que o emocionalismo interno prevalecia sobre a realidade exterior. As encenações de Vakhtangov eram ousadas, originais e extremamente imaginativas. MAZOUR, Anatole G. Russia: Tsarist and Communist. D. Van Nostrand: Princeton, 1962, p. 704.






SERVIÇO:

Conheça:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360



Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti









WhatsApp: (11) 95119-8357


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