Calabar, Rasga coração
e Patética: Três peças em luta contra a censura. Por Maria Sílvia Betti [1]
Raul Cortez em cena da primeira montagem
de Rasga Coração, de Vianinha.
A partir de 1968 a Censura, até então
exercida no âmbito dos Estados, passa à alçada da Polícia Federal em Brasília.
Agindo como braço do regime militar, seu poder de ingerência era irrestrito e
impediu, no setor do teatro, que centenas de espetáculos fossem encenados e
pudessem assim atingir o público de sua própria época. Neste pequeno texto
mencionamos brevissimamente três dos casos mais gritantes de peças proibidas
sumariamente pela censura: “Calabar: o elogio da traição”, de Chico Buarque de
Hollanda e Ruy Guerra, de 1973, “Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho
(Vianinha), de 1974, e “Patética”, de João Ribeiro Chaves Neto, de 1976.
“Calabar: o elogio da traição” tinha sua
estreia marcada para o dia 08 de novembro de 1973, no Teatro João Caetano, no
Rio de Janeiro, sob a direção de Fernando Peixoto. “Quem for assistir nosso
trabalho”, declarou Fernando em entrevista concedida ainda durante a fase
ensaios, “não verá mais uma peça dentro dessa onda cívico-nacionalista. Ela
também não é discutida em termos de reabilitar ou condenar Calabar. Nossa peça
utiliza a matéria como reflexão de um problema muito mais amplo, que é o
problema da traição e o próprio conceito de traidor. Por isso não se trata de
uma peça que apresenta uma simples reconstituição histórica. O passado é
utilizado como reflexão do presente.”
O encaminhamento do texto à Divisão de
Censura de Diversões Públicas solicitando sua liberação foi feito em abril de
1973. Um parecer inicial, emitido em maio, com base no texto, aprovou a
liberação para maiores de dezoito anos, apesar de apontar a necessidade de
cortes. Era preciso, porém, que se marcasse um ensaio geral a ser assistido para
a emissão dos relatórios técnicos dos censores. Em outubro desse mesmo ano, o
diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (Rogério Nunes) enviou uma
carta à produção informando que a data específica para essa finalidade seria
agendada não mais pela DCDP, e sim pela direção-geral do Departamento de
Polícia Federal, instância superior que havia chamado a si essa tarefa
censória. “A carta praticamente proíbe o espetáculo”, escreveria Fernando
Peixoto a respeito. “Caracteriza uma censura econômica. É datada de 30 de
outubro. A censura política chega a ser exercida. A censura foi censurada,
proibida de proibir."
. Embora
a proibição final tenha vindo só em 15 de janeiro de 1974, a realização do
espetáculo já havia, a essa altura, sido inviabilizada. Nos argumentos dos
censores para a proibição era ressaltado o fato de a peça tratar o “traidor”
como “herói”, em “substituição a Tiradentes”, e também de exaltar a guerrilha.
“Rasga Coração”, que Vianinha concluiu em
seu leito de morte, foi premiada com o primeiro lugar no Concurso Nacional de
Dramaturgia do SNT (Serviço Nacional de Teatro), em 1974, e imediatamente em
seguida proibida pela Censura Federal, interditada tanto para encenação como circulação
impressa e leitura dramática. A realização do Concurso estava suspensa desde
1968, quando a vencedora, “Papa Highirte”, também de Vianinha, havia sido
igualmente proibida de forma sumária.
A história do texto e a da primeira
montagem de “Rasga Coração”, dirigida por José Renato, liga-se a duas árduas
batalhas: a primeira foi a do próprio Vianinha, surpreendido pelo diagnóstico
de seu estado terminal ainda em pleno processo de criação. A segunda foi a do
diretor José Renato, apoiado por amplos setores do movimento teatral do Rio de
Janeiro, de São Paulo e de outras capitais pela liberação do texto.
As inúmeras tentativas frustradas de
José Renato junto à Censura Federal em Brasília e a ausência de qualquer remoto
indício de liberação levaram, nos anos seguintes, à realização de leituras
dramáticas a portas fechadas em teatros de São Paulo, do Rio de Janeiro e de
outras cidades, e exemplares mimeografados do texto passaram a circular clandestinamente
em várias partes do país.
Por meio dessa intensa veiculação
informal, “Rasga Coração” foi, entre 1974 e 1979, o texto teatral mais lido e
discutido nos setores ligados à cultura e ao pensamento crítico. A expectativa
em torno de sua liberação continuou norteando as discussões sobre o teatro e as
lutas históricas e políticas do país, caracterizando assim um movimento continuado
de resistência.
Em 1979 “Rasga Coração”, finalmente
liberada, estrearia sob a direção de José Renato. Pouco tempo depois o SNT (Serviço
Nacional de Teatro) lançaria o volume com o texto da peça e a íntegra do
extenso dossiê de pesquisa que lhe havia servido de base.
A mesma proibição sumária de que “Papa
Highirte” e “Rasga Coração” tinham sido alvos respectivamente em 1968 e em
1974, incidiu de forma sinistra sobre “Patética”, peça de João Ribeiro Chaves
Neto vencedora do Concurso Nacional de Dramaturgia do SNT em 1979.
A peça enfrentava corajosamente, em
chave alegórica, o desafio de tratar das circunstâncias da morte do jornalista
Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, assassinado por
torturadores nas dependências do 2ª Exército, em São Paulo, em 25 de outubro de
1975. No dia seguinte à notícia da morte de Herzog, o Comando do Departamento
de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
divulgou nota oficial informando que o jornalista havia cometido suicídio por
enforcamento na cela em que estava preso. A versão oficial da morte foi contestada
legalmente, com o apoio maciço dos movimentos de resistência à ditadura, prontamente
mobilizados.
Três anos depois, em 27 de outubro de
1978, o processo movido pela família do jornalista trouxe a público a verdade
sobre as circunstâncias de sua morte, e a União foi oficialmente responsabilizada
por torturá-lo e assassiná-lo, caracterizando assim o primeiro processo
vitorioso movido por familiares de uma vítima do regime militar contra o
Estado.
João Ribeiro Chaves Neto escreveu
“Patética” em 1976, e inscreveu-a no Concurso Nacional de Dramaturgia do SNT,
cujos resultados deveriam ser divulgados em março de 1977. Uma sequência de intermináveis
e inexplicáveis adiamentos da reunião final da Comissão Julgadora para
promulgação dos resultados levou Yan Michalski, um dos jurados, a declarar para
a imprensa: "Toda vez que a reunião final é marcada, é desmarcada na
véspera, e isso vem acontecendo sucessivamente." Meses e meses foram
decorrendo e informações paralelas que haviam passado a circular davam conta de
que a peça vencedora tinha sido a de número 143, cujo autor tinha o pseudônimo
de Botabô.
Diante da situação instaurada, o diretor
do SNT (Orlando Miranda) resolveu assumir a responsabilidade pelos adiamentos.
Ficavam cada vez mais claros, porém, os sinais de ingerência da censura no
curso dos fatos.
Na segunda quinzena de setembro de 1977,
após reunião do diretor do SNT com o Ministro da Educação e Cultura (Ney
Braga), foi autorizada a divulgação dos resultados. Em 07 de outubro de 1977
realizou-se a reunião dos membros da Comissão Julgadora para a tão esperada promulgação:
de fato, a peça 143 havia obtido a grande maioria dos votos, mas o texto
propriamente dito e as informações referentes à sua inscrição haviam sido
subtraídas do envelope do SNT por órgãos ligados à censura.
A divulgação dos demais resultados realizou-se
num clima de enorme tensão, e após seu encerramento o autor da peça 143 identificou-se
publicamente, apresentando seu protocolo de inscrição: tratava-se de João
Ribeiro Chaves Neto e de “Patética”, mas diante das circunstâncias impostas
pela censura, seu nome não poderia ser oficialmente reconhecido como o do
vencedor, seu prêmio não poderia ser outorgado e, tal como ocorrera com “Rasga
Coração”, sua peça não poderia ser encenada ou publicada. Um movimento de
protesto articulou-se prontamente e estendeu-se por vários meses, e João
Ribeiro Chaves Neto entrou com um processo contra o SNT denunciando a
ilegitmidade da censura de que “Patética” foi alvo. A peça estrearia em São Paulo
em 1980, sob a direção de Celso Nunes.
[1] Maria Sílvia Betti é Professora
Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de
Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no
Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Livros:
Autora de Dramaturgia
Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017), e Oduvaldo
Vianna Filho (EDUSP/FAPESP, 1997).
Tradutora de O método Brecht,
de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o
título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy),
2013.
Organizadora, prefaciadora e autora dos
textos de apresentação de Rasga Coração (Temporal, 2018) e Papa
Highirte (Temporal, 2019), ambos de Oduvaldo Vianna Filho.
Organizadora e prefaciadora de Patriotas
e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação
Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do
Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004).
Prefaciadora de Mr. Paradise e
outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de
algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee
Williams.
Artigos recentes:
Ingrid, Brueghel e o Teatro de figuras
alegóricas (in Ingrid Koudela: o Teatro como alegoria.Org. Igor
Almeida, SESC, 2018).
"The Piscator Notebook",
de Judith Malina: apontamentos de análise sobre o registro de um processo
formativo. (In Blog
da Cia. Fagulha).
Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/02/the-piscator-notebook-de-judith-malina.html>.
Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho:
apontamentos de análise dramatúrgica. (In Blog
da Cia. Fagulha).
Disponível em:
<https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.
SERVIÇO:
Conheça também:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos – Maria Sílvia Betti
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
Tel.: (011) 3492-3797
No comments:
Post a Comment