A Guerra e outros combates. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


A Guerra e outros combates. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho


Orcid: orcid.org/0000-0003-4528-8776

Publicado anteriormente em: Revista UniABC - Humanas, v. 2, p. 37-42, 2011.


NOTA PRELIMINAR, de Maria Sílvia Betti: 

Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico anterior, publicado entre 2010 e 2011 na Revista UniABC - Humanas, publicação da UniABC. Essa Universidade encontrava-se então sob o controle administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton, criando assim a maior companhia de educação do mundo. 

Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho docente.

A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma luta continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo exercido pelos professores em todos os seus níveis.





A Guerra e outros combates. Por Agenor Bevilacqua Sobrinho [1] 


Resumo
Considerando o contexto histórico da produção da obra do dramaturgo e pensador alemão Bertolt Brecht (1898-1956), analisamos, numa de suas obras iniciais, como ele avalia o significado da rebelião do inverno de 1918-1919.

Palavras-chave
Brecht; rebelião; teatro burguês; teatro político; distanciamento.



Manke, o garçom --- Até as estrelas saem da linha, quando uma pessoa assiste friamente a uma injustiça.
(BRECHT, 1986, p. 111)


Introdução

O contexto histórico da produção da obra do dramaturgo e pensador alemão Bertolt Brecht (1898-1956), permite-nos compreender as adversidades de seus contemporâneos nos conturbados anos pós e entreguerras.
Sabemos que a Alemanha chega à Guerra por interesses imperiais. Os participantes do conflito acreditam ingenuamente que sairão vitoriosos (SCHORSKE, 1988).
Humilhada pela derrota na 1ª Guerra (1914-1918) e pelo Tratado de Versalhes [2], a Alemanha passa por dificuldades imensas (VON ECKARDT & GILMAN, 1996).
A derrota arrasadora se reflete nas condições de vida da população. No período da Guerra, a indústria incipiente é convertida para a produção bélica, gerando fome,
Brecht, servindo como enfermeiro, tem seu patriotismo comutado em horror ao observar as desgraças e atrocidades que se banalizam na guerra. O que provoca nele uma série de mudanças e paulatinamente lhe traz um redimensionamento de sua visão de mundo.
A engrenagem que faculta esses tipos de acontecimentos para ele ainda não é clara. Mas ele já está convertido em pacifista. E a sociedade militarizada o atemoriza.
O teatro de Brecht é produzido num período de guerras e entreguerras; assim, em grande medida reflete a problemática da guerra, dos soldados que voltam como aleijões, sem esperanças; às vezes, com suas medalhas; mas com a vida finalizada, permanecem como cadáveres que andam.

Combates

Neste trabalho, vamos nos deter na maneira como Brecht avalia o significado da rebelião do inverno de 1918-1919, na Alemanha, por meio da representação dela numa de suas peças da juventude.
Tambores na Noite [3] é uma peça que passou por modificações posteriores que não lhe retiraram o conteúdo pessimista, diretamente relacionado com o clima da época: final da 1ª Guerra e os destroços de pessoas e coisas por toda parte; além disso, a tentativa frustrada da Liga Espartaquista, fundada em 1915, de derrubada do governo imperial alemão e da conquista do poder político pelos trabalhadores.
Portanto, tendo como pano de fundo a revolta espartaquista, Brecht contará o drama [4] do soldado Andreas Kragler que volta depois de 4 anos para casa, vindo da Argélia, no Continente Africano, onde era prisioneiro de guerra. Ele permanece na memória de Anna Balicke, sua noiva, como assombração, atormentando-a. Nada de notícias ou contatos, o que faz com que os Balicke presumam a morte de Kragler. Tal ideia encontra em Karl Balicke, o pai da moça, um entusiasta visceral, uma vez que não se importa com a sorte (a desgraça) do soldado; preocupa-se apenas em sair da miséria [5] e vê como salvo-conduto para esse percurso se concretizar seu desejo de rifar a filha para Murk, sujeito endinheirado que fez fortuna às custas das tragédias da guerra e que engravidou Anna.
Karl Balicke, ao falar sobre o efeito da desorganização social provocada pela guerra, da indisciplina e do embrutecimento dos soldados e suas ações sem limites, aproveita para acusar os revolucionários, potenciais destruidores de seu sonho de ascensão social meteórica.
Por sua vez, Murk diz cinicamente ter subido na vida a duras penas (produz cestos para munição). Seu “futuro” sogro o adverte sobre a incerteza deste negócio.

E quando a guerra acabar? O melhor seria produzir carrinhos de bebê.
(SOA O HINO ALEMÃO)
Brindam. A guerra para nós foi uma sorte, regozijam-se.
(BRECHT, 1986, p. 85)

Mas é Babusch, o jornalista, quem anuncia o rompimento de acordos e a mobilização espartaquista, bem como indica a posição contraditória da imprensa sobre o conflito: “o sabá das bruxas vermelhas”, “são uns canalhas”, “o damasco está caro”, “a bandeira deles é a preguiça”, “enquanto os famintos uivam, a alta sociedade refestela-se nos salões de baile”.
Vão ao Bar Picadilly para comemorar o noivado, e é lá que Kragler, esquálido e maltrapilho, aparece assombrando Anna e apavorando a mãe dela. A luta social e o drama pequeno-burguês correm paralelamente.
Kragler tenta contar seus sofrimentos de guerra, suas lembranças. Porém, enquanto Murk despreza Kragler por sua aparência e penúria — oferecendo-se para comprar suas botas para o Museu Militar — o pai de Anna reforça a humilhação, dizendo ao soldado que seus feitos serão recompensados pelos livros de história; todavia, como nos apontamentos do contador não há tilintar de moedas, o melhor mesmo seria que ele voltasse para a África.
Kragler, apesar de seu abatimento, tenta reagir erguendo Murk pelo colarinho e clamando para Anna acompanhá-lo, a despeito de que ele seja pobre.
Em certo momento, os tiros do combate são acompanhados pela Internacional, o que faz Karl Balicke, feroz reacionário, reconhecer em Kragler o parentesco com os revoltosos [6] “comedores de carne humana”, os quais deveriam ser destruídos.
No terceiro ato, intitulado Cavalgada das Valquírias [7], as personagens tropegamente tentam encontrar a si mesmas e aos outros, mas desencontram-se: os mortos são tantos que excedem sua obstinação.
Anna busca Kragler, que indeciso se participa ou não da revolta [8], “resolve” entrar com Marie, a prostituta, num bar onde o dono canta a Balada do soldado morto (4º ato).
Kragler embebeda-se e não vê mais no mundo espaço para a justiça, pois até mesmo os céus estariam loteados (Ibidem, p. 119); e é total a indiferença para com os que foram à guerra. Enquanto isso, entra uma vendedora de jornais anunciando as manchetes de jornais sobre a revolta.
No 5º ato, ao avistar Anna, deseja-a, embora a insulte ao chamá-la de “puta”; recobra parcialmente seus sentidos e renuncia a participar da revolta, vista por ele como não sendo mais do que uma aventura romântica, e, assim, não valendo arriscar a própria pele. Kragler expressa sua angústia ao não perceber a possibilidade de mudanças; como o vazio é enorme, contenta-se em manter o existente. Ironiza o movimento:

Amanhã de manhã a gritaria terá acabado, estarei deitado em minha cama e reabastecerei a raça de ‘porcos’ para que eu não morra (Ibid., p. 128).

Podemos ler aqui a alfinetada mordaz dada pelo autor naqueles (os porcos que vão continuar a se reproduzir) que não viram na revolução a oportunidade de derrocada do império.

No final, apela para que:

(...) não façam essas caras tão românticas, cambada de usurários (...) Seus estranguladores... (Loc. cit.)

Rufa o tambor e o lança em direção à lua (um lampião); o tambor e a lua caem dentro do rio, onde não existe água. Ou seja: atenção!, aqui é teatro! Local de entretenimento, mas também de reflexão.


Conclusão

Brecht reconheceu que não havia avaliado em toda a sua extensão o significado da rebelião do inverno de 1918-1919. O dramaturgo alemão praticara, de maneira incipiente, o “distanciamento” (um dos cernes de sua teoria dramática): em Munique, onde estreou, os biombos de papelão vermelho de cerca de dois metros de altura representavam paredes de um quarto, atrás dos quais se via a cidade grande, Berlim, pintada à maneira infantil; e uma lua que brilhava vermelha quando Kragler aparecia; os cartazes que pediam ao público para não envolver-se emocionalmente (“Não façam essas caras tão românticas”). Ele afirma: “não consegui mostrar a revolução ao espectador, exceto através dos olhos do ‘herói’ Kragler, e ele a via como algo romântico. A técnica do ‘distanciamento’ ainda não estava sob meu controle” (BRECHT, apud EWEN, 1991, p, 95).
Posteriormente, Brecht desenvolverá largamente o distanciamento, que possibilita crítica fecunda da ideologia.
Concebido para historicizar os acontecimentos representados, ou seja, dar-lhes a dimensão temporal, significativa e particular, o distanciamento entra em contraposição ao teatro burguês, que dava ênfase à intemporalidade de seu objeto, julgando existir uma essência humana eterna e universal. Esta perspectiva tem um fulcro claramente ideológico: manter estagnada a vida e o status quo (BRECHT, 1967, p. 111-112).
Pelo distanciamento operado no espaço e no tempo, questões cotidianas, tidas como habituais e eternas, podem ser vistas com estranheza e, portanto, retirada a crosta do cotidiano, cria-se a possibilidade de serem modificáveis. Esclarecer o que é o mundo e perceber sua formação e suas contradições, para que estas sejam superadas.
Entretanto, como dissemos, no momento da produção de Tambores na Noite, tais procedimentos eram apenas embrionários.



Referências bibliográficas

BRECHT, Bertolt. Tambores na noite. In: ______. Teatro Completo. Tradução Fernando Peixoto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. v. 1, p. 75-128.

______. Teatro dialético: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1967.

EWEN, Frederic. Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. São Paulo: Globo,1991.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. Campinas: Unicamp; São Paulo: Companhia das Letras,1988.

VON ECKARDT, Wolf; GILMAN, Sander L. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.


____________________________________


Notas

[1] Agenor Bevilacqua Sobrinho é doutor em Artes Cênicas pelo CAC/ECA-USP e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-UNESP). É pesquisador do Grupo de Pesquisa Estudos histórico-críticos e dialéticos de teatro estadunidense e brasileiro (CNPq). Editor, dramaturgo e escritor, é autor de Atualidade/utilidade do trabalho de Brecht. Uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens femininasA LenteA Guerra de YuanO Rato Pensador (todos pela Editora Cia. Fagulhawww.ciafagulha.com.br), além de diversos artigos sobre arte crítica, teatro, política e sociologia em revistas especializadas, como A resistível ascensão de Bushad’óleo (Margem Esquerda n. 5, Boitempo Editorial), Bertolt Brecht nos EUA: um refugiado anticapitalista na pátria do capital (Rebento: Revista de Artes do Espetáculo, v. 5, 2015) e A respeito de Ensaios sobre Brecht, de Walter Benjamin (Revista Dramaturgia em foco, v. 2, n. 2, p. 151-156, 2018).
Orcid: orcid.org/0000-0003-4528-8776. E-mail: editora@ciafagulha.com.br

[2] De 28/06/1919. Implica em perda de territórios, de colônias e proibição de se rearmar, entre outras restrições.

[3] Tambores na Noite (1919). Estreia: 29/09/1922 – Munique.

[4] Ou comédia, como Brecht chamava esta obra, pois Kragler renuncia à luta que também poderia beneficiá-lo, enquanto o drama verdadeiro é dos operários que abraçaram o combate.

[5] Cuja penúria o obriga a fazer barba na penumbra e, em consequência, se corta: “Um corte é grátis, mas a luz custa dinheiro” (BRECHT, 1986, p. 80).

[6] Uma das reivindicações era a indenização aos que foram à Guerra.

[7] Com referência irônica às Valquírias, de Wagner. Na mitologia escandinava, evoca as divindades, mensageiras de Odim (deus da guerra e da sabedoria), cuja atribuição era recolher os heróis mortos nos campos de batalha.

[8]
Babusch, o jornalista, vê no movimento uma grande ilusão: “(a) plebe imagina ter chegado o momento de ajustar velhas contas!” (BRECHT, 1986, p.111)  



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Conheça também:



Atualidade/utilidade do trabalho de Brecht [Uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens femininas.]
Autor: Agenor Bevilacqua Sobrinho
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-01-4
Páginas:       408










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