História e luta política em ação: “7 peças” da companhia do Latão, um coletivo contemporâneo de teatro dialético. Por Maria Sílvia Betti

História e luta política em ação: “7 peças” da companhia do Latão, um coletivo contemporâneo de teatro dialético. Por Maria Sílvia Betti




NOTA PRELIMINAR: 

Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico anterior, publicado entre 2010 e 2011 na Revista UniABC - Humanas, publicação da UniABC. Essa Universidade encontrava-se então sob o controle administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton, criando assim a maior companhia de educação do mundo. 

Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho docente.

A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma luta continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo exercido pelos professores em todos os seus níveis.



História e luta política em ação: “7 peças” da companhia do Latão, um coletivo contemporâneo de teatro dialético [1]. Por Maria Sílvia Betti [2]



Resumo
Este artigo apresenta e discute algumas das principais características da produção dramatúrgica do grupo teatral paulista denominado Companhia do Latão, tendo como objeto a antologia com sete de suas peças lançada em 2008.

Palavras-chave: Dramaturgia, teatro dialético, Bertolt Brecht, teatro brasileiro

Abstract
This article introduces and discusses some of the main characteristics of the plays created by the Companhia do Latão, a paulista theater company whose collected plays were launched in 2008.

Keywords: Playwriting, dialectical theater, Bertolt Brecht, Brazilian theater

Um dos maiores desafios no campo do trabalho artístico contemporâneo é o de tratar, sob o prisma das classes exploradas, das lutas políticas coletivas locais e mundiais procurando extrair delas, e não do repertório dominante, os critérios estéticos e os expedientes formais. Como estas lutas se encontram continuamente em processo, a matéria em bruto que oferecem para a dramaturgia também se renova constantemente, requerendo técnicas de figuração que não se encontram disponíveis no âmbito da cultura hegemônica e que não são compatíveis com o teor dela.
Para que um trabalho assim venha a ser realizado é necessário não apenas detectar e discutir as principais limitações e contradições que essa cultura apresenta, mas trabalhar na contramão dela e das estruturas de pensamento que a legitimam. Trata-se de um processo que exige pesquisa e reflexão crítica constantes, além de interlocução permanente e efetiva com os setores sociais para os quais o pensamento crítico não se separa da luta pela transformação da sociedade.
Essa é a perspectiva que norteia o trabalho da Companhia do Latão, grupo teatral paulistano fundado em 1998 com o intuito de estabelecer um diálogo crítico com projetos de ação cultural historicamente anteriores, como o do Centro Popular de Cultura (CPC) nos anos 1960, e contemporâneos, como os do Movimento dos Sem Terra (MST) [3] no contexto nacional, e do Berliner Ensemble [4] no europeu.
O Latão, como é chamado, tem seu nome extraído do conjunto de escritos teóricos de Bertolt Brecht intitulado “A Compra do Latão” [5]. Dada a natureza das operações de pensamento e de trabalho artístico que o grupo se propõe desenvolver, o método dialético de Brecht, assim como o uso aplicado do gestus [6] brechtiano, são fundamentais para seus processos de estudo e criação. Isso acontece porque é no campo histórico das relações de produção que se situam as contradições que o Latão deseja debater e analisar, e também porque a figuração dramatúrgica dessas contradições requer a busca de recursos formais compatíveis com a representação dos processos nelas envolvidos, mais do que a condensação narrativa de seus conteúdos.
O uso do gestus brechtiano permite materializar na cena processos que ilustram contradições por meio de exemplos e de situações concretas, desencadeando assim experimentos protocênicos [7] gerados e debatidos coletivamente. Estes experimentos, por sua vez, depurados em sucessivas rodadas de análise e debates em sala de ensaios, fornecem o material constitutivo das peças do Latão.
A dramaturgia do grupo resulta, portanto, de processos colaborativos de estudo e criação, e recorre a trocas de ideias com pensadores, encenadores e pesquisadores exponenciais para o debate sobre o trabalho épico no teatro contemporâneo, como Roberto Schwartz, Paulo Arantes, Chico de Oliveira, Iná Camargo Costa e Hans Thies Lehman entre outros.
As peças criadas e encenadas ao longo dos onze anos de existência do grupo foram recentemente reunidas no volume “Companhia do Latão. 7 peças” (CARVALHO & MARCIANO, 2008), tendo sido divididas em três blocos organizados segundo a natureza da matéria representada, a estratégia de raciocínio mobilizada e a estrutura formal dos textos.
Essa opção editorial organiza e dá visibilidade aos eixos principais de pesquisa estética e teórica, muito embora, como ressalta o diretor Sérgio de Carvalho na apresentação do volume, a arquitetura crítica propriamente dita não seja separável do caudaloso e pulsante veio de imagens, gestos, vozes e atos físicos envolvidos nos processos de criação.
Sendo o Latão acima de tudo um coletivo de trabalho, todas as formas de debate e de criação que desenvolve são necessariamente colaborativas e processuais. Por fundamentar-se no pensamento teórico e estético de Bertolt Brecht, todos os seus trabalhos apresentam traços de afinidade com os aspectos essenciais do trabalho brechtiano, ou seja, o caráter de “ensaios” (entendendo-se o termo na sua acepção filosófica) e uma estrutura dialética de concepção e análise.
Cada uma das peças do volume é acompanhada pela relação comentada de todas as fontes bibliográficas ou iconográficas utilizadas durante as oficinas que levaram à criação. Ao nome dos dois autores principais, Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, responsáveis pelos textos finais, segue-se a lista dos colaboradores, ou seja, de todos os atores participantes do coletivo de trabalho envolvido na concepção dramatúrgica e cênica de cada peça.
A fim de preservar a coerência na finalização editorial do volume, os textos reunidos não são apresentados como versões definitivas, mas assumidos como frutos de uma seleção que não renega ou exclui outras variantes dramatúrgicas e cênicas de cada um.
“Imagens do Brasil”, título do primeiro dos três blocos em que se divide a publicação, reúne peças que representam e discutem o processo histórico do país e suas contradições: “O Nome do Sujeito”, de 1998, trata da oposição entre a arte popular das ruas e a arte para pagantes na Recife do século XIX; “A Comédia do Trabalho”, de 2000, examina a materialidade da luta de classes no contexto contemporâneo de desmonte do mundo do trabalho; e o “Auto dos Bons Tratos”, de 2002, põe em foco o processo instaurado em 1547 contra Pero de Campos Tourinho, primeiro donatário da Capitania de Porto Seguro, discutindo através dele a queda de braço entre o poder da igreja e o dos empreendedores no contexto da escravização de nativos no Brasil colonial.
O segundo bloco, “Cenas da Mercantilização”, é composto por duas peças que investigam os mecanismos pelos quais as relações sociais e de trabalho são impregnadas pela exploração e transformam-se em produtos “coisificados” de consumo: “O Mercado do Gozo”, de 2003, examina as raízes da violência urbana e a exploração da prostituição na São Paulo de 1917, por ocasião da grande greve operária; “Visões Siamesas”, de 2004, inspira-se parcialmente no conto “As Academias de Sião”, de Machado de Assis [8], e em escritos da literatura clássica oriental, fazendo a partir deles a síntese simbólica da história da classe trabalhadora brasileira.
O terceiro bloco, “Releituras”, abrange duas peças que, extraindo reflexões de outros trabalhos dramatúrgicos e literários, voltam-se à discussão dos desafios que se apresentam à consciência revolucionária. A primeira é “Ensaio para Danton”, de 1996, que parte de “A Morte de Danton”, de George Büchner [9], e faz a crítica das contradições da revolução burguesa e de seus ideais revolucionários. A segunda, “Equívocos Colecionados”, de 2004, inspira-se em ideias extraídas de entrevistas de Heiner Müller [10], em sugestões apresentadas pelo teórico Hans Thies Lehmann [11] e em trechos do filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha [12], colocando em foco, sob a forma espectral de personagens mortos-vivos, os remanescentes do processo de cooptação e de desqualificação da consciência revolucionária dos anos 1960, que comparecem como depoentes em um tribunal.
O teatro dialético de base brechtiana envolve dois preceitos fundamentais de método quanto à criação artística: o emprego de processos coletivos de reflexão e trabalho, e a busca de uma distância crítica em relação ao conceito de “obra”, característico das relações de consumo cultural. O resultado ostenta, propositalmente, os sinais processuais das diversas camadas de trabalho mobilizadas, ao contrário do que ocorre no âmbito da mercadoria, em que essas camadas tendem a ser ocultadas.
A estrutura de trabalho criador desenvolvida pelo Latão decorre diretamente da aplicação prática dessa linha de ação e pensamento: seus processos colaborativos apoiam-se em pesquisa e constante discussão do material histórico-crítico, político ou filosófico relacionado ao assunto ou recorte estabelecido. A dramaturgia resultante é fruto das diversas etapas coletivas de trabalho atravessadas na composição de conteúdos e de elementos gestuais e corporais depurados e definidos na sala de ensaios.
O aspecto dialético ganha peso, no trabalho resultante, porque seu fundamento é a análise dialética dos processos históricos e das contradições envolvidas, mais do que a figuração dramatúrgica dos conteúdos narrados.
O foco artístico é buscado nas relações sociais e históricas do mundo produtivo, o que significa que a análise das peças demanda, necessariamente, o inventário crítico das condições sócio-históricas exteriores às quais elas remetem.
A radicalidade desta opção manifesta-se não apenas na matéria dramatúrgica, mas também no experimentalismo dinâmico que caracteriza a forma dramatúrgica, e no materialismo dialético, método de análise das questões representadas. Trata-se daquilo que Sérgio de Carvalho designa como “estética das contradições”, entendendo-se a contradição como o pivô do processo dialético.
O objetivo é o de construir um trabalho em que a sociedade seja apresentada como passível de transformação revolucionária. Ainda que a perspectiva de uma revolução não se mostre historicamente próxima, o trabalho estimula percepções críticas e raciocínios analíticos como formas de preparar e construir uma consciência revolucionária na sua forma de pensamento e de manifestação.
O Latão não ignora o fato de que esta perspectiva é alvo, nos dias atuais, de sistemático processo de descrédito e desqualificação, mas não ignora, tampouco, que, como observa Fredric Jameson em “O Método Brecht” [13], se a perspectiva da práxis foi importante no passado porque estava na ordem do dia, ela o é, nos dias atuais, precisamente por não estar.
O processo de criação e pensamento desenvolvido, apoiado na análise dialética das contradições históricas da sociedade, fundamenta-se também numa tomada radical de posição em face da cultura globalizada e submetida às leis do mercado: todo o empenho de criação e raciocínio é mobilizado no sentido de investigar meios de conferir substância dramatúrgica e discussão crítica de relações e estruturas alienadas e “coisificadas” de vida e pensamento.
Esse tipo de operação requer distanciamento dos setores pós-modernos da pesquisa artística contemporânea, para os quais as formas exacerbadas do lirismo subjetivista e da desconstrução abstrata são as únicas capazes de flagrar e de figurar com profundidade os descompassos e contradições entre gesto e fala e entre pensamento e ação.
Dada a natureza do trabalho que resulta da sua linha de pensamento e criação, a dramaturgia da Companhia do Latão demanda do espectador comum um padrão de recepção bastante diverso do usual no campo da cultura dominante e do entretenimento. Isso ocorre, em grande parte, pelo fato de o grupo empregar uma estrutura episódica moldada de forma a figurar os grandes processos históricos e coletivos através de uma tessitura de ações desligadas de qualquer sequência dramática ordenadora, mas diretamente vinculadas às grandes disputas e aos grandes processos históricos e coletivos de sua época.
A forma de tratamento do conteúdo narrativo se diferencia pelo emprego de situações concretas, que suscitam e fazem emergir a análise. Um exemplo pode ser citado a fim de ilustrar uma das muitas formas pelas quais esse tratamento formal se apresenta: na cena 17 de “O Mercado do Gozo” (2003), cujo título episódico é “Burgó espanca um mendigo à maneira de Baudelaire” (CARVALHO & MARCIANO, Op. cit., p. 247). Burgó, jovem burguês em crise, é levado pelo cáften Bubu ao encontro de um vendedor de cocaína. No caminho encontram um mendigo que lhes pede uma moeda, e Bubu aproveita o fato para ilustrar na prática a resposta que dera a Burgó a propósito da ideia de liberdade: “só é digno de liberdade aquele que a conquista na marra” (Ibidem, p. 248). Para Burgó é “sempre perfeita a teoria. Mas no Brasil elas não funcionam” (Loc. cit.). Bubu, desejando provar a pertinência de seu ponto de vista, incita o rapaz a esmurrar e chutar violentamente o velho mendigo encontrado. A conclusão que extrai da cena (“É um verme, está provado, não tem orgulho nem vontade de homem livre.”) (Loc. cit.), é desmentida a seguir, pois o mendigo aproveita o momento de distração de Burgó e revida com vigor.
O pensamento de Bubu se recompõe rapidamente diante do acontecido: “Milagre, a carcaça reagiu. Agora sim. [Controla a briga e fala ao mendigo.] O senhor provou que é igual a ele. Merece a moeda.” (Loc. cit.)
A cena evoca, desde a sugestão do título, o conteúdo de um poema em prosa de Baudelaire escrito em 1863 e intitulado “Espanquemos os pobres” [14] (“Assomons les Pauvres”): depois de quinze dias mergulhado em leituras do socialismo utópico, o poeta sai às ruas, inebriado e entorpecido, em busca de ar livre e descontração, e à entrada de um cabaret encontra um velho mendigo que lhe estende o chapéu pedindo uma moeda. Em seus ouvidos a voz de um “Anjo bom” ou de um “Demônio bom” sussurra que só é igual ao outro aquele que dá prova disso, e que a liberdade verdadeira só é conquistada por aqueles que provam merecê-la.
Ao ouvir essas palavras, o poeta passa a espancar violentamente o mendigo, que por sua vez se levanta e se põe a revidar com energia os golpes recebidos. A conclusão final extraída pelo poeta constitui a pseudolegitimação paródica da teoria expressa pela voz demoníaca ou angelical provinda de sua própria consciência: “Com a minha enérgica medicação eu lhe restituíra o orgulho e a vida.”
Apoiando-se no poema a ponto de remeter explicitamente “à maneira de Baudelaire” no título episódico, a peça corrobora e exacerba o seu sentido crítico por meio da paródia e do paradoxo. A cena é representada de modo desconstruído e os atores dirigem-se abstrata e ficticiamente a câmeras que supostamente registram suas imagens, como informa a rubrica. A distorção e a neutralização das oposições de classe entre o moço burguês e o mendigo figuram cenicamente como ilustrações típicas de relações historicamente constituídas.
Bubu, a quem Burgó não casualmente chama de “meu demônio” (CARVALHO & MARCIANO, Op. cit., p. 248), postula a ideia de que a liberdade é uma conquista, e incita o moço a experimentá-la espancando o mendigo a fim de apontar na natureza deste a ausência dos traços do homem livre. Burgó não crê que a “teoria” funcione no contexto do Brasil, mas mesmo assim executa o ato de agressão. A conclusão extraída por Bubu (“Não é teoria, eu disse. Veja como ele entendeu. É universal.”) é uma exacerbação cínica e paródica do final do não menos cínico do poema baudelairiano: neste, o poeta se coloca como o suposto deflagrador da consciência revolucionária entorpecida do mendigo, e assume diante dele um tom falsamente libertário e moralizante. Na cena de “O Mercado do Gozo”, por outro lado, é Bubu, em sua função de “voz demoníaca”, que afirma cinicamente que o mendigo “entendeu” o sentido pragmático e “universal” do “aprendizado” contido no ato do espancamento.
O estranhamento manifestado pelo pedinte ao retirar-se é compartilhado pelo espectador. Na encruzilhada de impressões que a cena suscita fica implícita uma pequena síntese da estrutura de pensamento que preside as relações sociais nela figuradas: entre a sugestão do cáften e o revide do mendigo são flagrados e expostos, de forma eficaz, o cinismo e a ambiguidade da moral burguesa impregnada nas relações sociais instituídas.
O sentido crítico se constrói através do processo de pensamento que a cena materializa, expondo concretamente a estratégia ideológica de expropriação simbólica do sentido da reação do despossuído ao ato de violência.
O aguçamento analítico na cena ilustra o processo épico de trabalho do Latão, evidenciando não apenas o mergulho de pesquisa num copioso repertório de leituras, mas também a capacidade de extrair desse repertório imagens e estratégias de raciocínio que desencadeiam o debate crítico de processos representados.
Trata-se de um trabalho de caráter dialético que se debruça de forma constante e sistemática sobre a pesquisa das contradições e das descontinuidades históricas do país. Essa pesquisa dá base aos questionamentos e diagnósticos críticos em que se apoiam as peças; dela decorrem, ao mesmo tempo, os eixos temáticos de figuração dramatúrgica e cênica do trabalho.
O mapeamento resultante permite tratar de questões desafiadoras, dotadas de ampla envergadura histórica, crítica e figurativa. É a sua realização que dá margem à representação de aspectos cruciais do processo histórico brasileiro (como os mecanismos pelos quais a intelectualidade do país racionaliza e justifica o fato de se deixar instrumentalizar pelo poder), ou de aspectos inerentes ao capitalismo contemporâneo (como, por exemplo, a impregnação dos bens simbólicos e das relações sociais pela lógica da mercadoria, e o contraste entre o desmonte do trabalho e a multiplicação mercadológica de empreendimentos culturais geridos por industriais e banqueiros). A forma como o Latão realiza o processamento dramatúrgico e cênico de questões de tão amplo espectro histórico e tão grande densidade conceitual é ímpar, no teatro brasileiro, como trabalho de caráter efetivamente dialético.
O percurso de leituras, estudos e debates internos e externos envolve, paralelamente, a discussão crítica dos trabalhos de autores como Jorge Andrade [15], Gianfrancesco Guarnieri [16], Antonio Callado [17] e Oduvaldo Vianna Filho [18], fundamentais para a constituição de uma moderna dramaturgia brasileira.
Também exercem papel crucial a leitura problematizada da ficção machadiana e o diálogo constante com a crítica materialista de Roberto Schwarz, particularmente em “Ideias fora do lugar” e em “Nacional por subtração” [19].
O grande diferencial do trabalho dramatúrgico do Latão provém do fato de que o uso dos processos dialéticos de trabalho é determinado por necessidades concretas de figuração como, por exemplo, a de representar cenicamente massas de explorados ou situações e processos historicamente determinantes da exploração. Essas necessidades são frutos de análises que detectam os pontos de estrangulamento no solo socioeconômico representado, lidando assim com elementos que não são plenamente figuráveis por meio dos processos formais inerentes ao drama convencional ou à dramaturgia contemporânea de molde formal “pós-moderno”.
A crítica e pesquisadora Iná Camargo Costa menciona, no Prefácio ao volume de peças, o fato de a representação cênica do povo emblematicamente abrir e fechar a releitura dramatúrgica de Büchner na primeira criação dramatúrgica do Latão, em 1996: a manifestação cênica coletiva dos miseráveis e prostitutas da Paris revolucionária cria um contraponto implícito ao discurso revolucionário burguês, contextualizando-o desde o início em suas contradições:

No meio de uma praça, em meio à multidão que se aglomera em torno da guilhotina à espera da execução do revolucionário Hébert, uma jovem prostituta, Cristininha, come uma maçã do amor e cantarola. Ela flerta com um ou outro; a certa altura vê um conhecido.

CRISTININHA   Gauché! Você tem alguma moeda para mim, hoje?
GAUCHÉ           [Tenta enxergar o condenado.] Chegou a vez dele, Cristininha, é por isso que a corja está feliz. Dá para acreditar? O pai Hébert? [Ergue-se na ponta dos pés, movimenta-se até encontrar um lugar para assistir.] Que vergonha, ele está chorando, o pai Hébert chorando.
CRISTININHA   Me levanta, Gauché, levanta para eu ver. [Sobe nos ombros dele e vê.] Que covarde, chora no cadafalso.
GAUCHÉ           Eu não quero ver isso.
CRISTININHA   Espera, eu quero ver, eu quero ver. Já está amarrado na prancha. Por que eles estão demorando?
GAUCHÉ           Tem muito sangue na lâmina.
CRISTININHA   O carrasco fez o sinal. Vai ser agora. [Suspensão do ruído da multidão. Após uma pausa, ela grita.] Viva a República!

(CARVALHO, Sérgio & MARCIANO, Márcio. “Ensaio para Danton”. Op. cit., p. 374.)

A multidão que assiste à decapitação do radical Jacques Hébert, chancelada pelo moderado Robespierre, está presente também na última cena da peça, em que é Robespierre que sobe ao cadafalso. E é novamente a partir do ponto de vista da massa de miseráveis que a perspectiva crítica se constrói, novamente por meio da prostituta Cristininha:

CRISTININHA   Quem vai morrer agora?
GUACHÉ           Robespierre. Quer subir para ver? [Ela se senta sobre os ombros de Gauché.]
CRISTININHA   Aquele é o Robespierre?
GAUCHÉ           Quem podia dizer que veríamos isso? [Grita.] Ei, Robespierre, quem mandou mexer com os ricos?
CRISTININHA   Cala a boca, Gauché. Se prenderem você de novo, é por sua conta.
GAUCHÉ           Eu sou um homem livre, um cidadão.
CRISTININHA   Livre, muito livre mesmo, não é Gauché? Livre para andar para lá, para cá, livre para fazer montes de coisas. Podia me comprar um sapato. Eu queria tanto um vermelho...
GAUCHÉ           Cristininha, o carrasco fez o sinal, vai ser agora!

(Loc. cit.)

O comentário arguto de Cristininha ressalta as limitações contraditórias de uma igualdade não extensiva ao direito de propriedade, e prepara a culminação crítica, no desfecho, após a inserção integral de um artigo da Declaração do Direito do Homem e do Cidadão, de 1793, lida pelo ator que interpreta Robespierre (“Quando o governo viola os direitos do povo, a revolta é para o povo, e para cada parte do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres.”) (“Ensaio para Danton”. In “Ensaio para Danton”. Loc. cit.). Ironicamente a leitura é seguida pelo som da lâmina da guilhotina e pela aclamação que Cristininha repete, agora de olhos fechados e cabeça erguida: “Viva a República!”
Tanto intelectuais como massas populares são representados extensivamente na dramaturgia do Latão, seja no contexto de um diagnóstico analítico das contradições do passado, seja na construção de uma crítica sobre os paradoxos do presente.
O trabalho dramatúrgico do grupo caracteriza-se, também, pelos recursos particularmente variados e contundentes de representação das classes dominantes, figurando-as ora no processo de exploração dos subalternos, ora no contato com intelectuais ou camadas médias que ascendem socialmente através de processos de cooptação.
Uma ocorrência do primeiro caso (o de exploração dos subalternos) se apresenta, entre outras, em “O Nome do Sujeito”, onde o imigrante português Antonio Lyra questiona a natureza da dívida que o sujeita aos juros extorsivos praticados por Carneiro, o comerciante para o qual trabalha:

ANTÔNIO          [A Carneiro, já no fundo do armazém.] Quando tratamos a viagem o senhor não me falou em juros.
CARNEIRO       Nem de juros, nem de alíquotas bancárias, demandas tributárias, diferenças cambiais, porque são coisas inalcançáveis para um sujeito simplório como tu. Me deves o dinheiro e pagarás.
ANTÔNIO          [Com todas as suas forças.] Pois estou decidido a não mais trabalhar para o senhor.
CARNEIRO       [Com desprezo.] O quê? Tu não és livre para decidir nada.

(CARVALHO & MARCIANO), “O Nome do Sujeito”. Op. cit., p. 49)

Dois exemplos representativos do segundo caso, de ascensão social por meio de cooptação, podem ser ilustrados, entre tantos outros, dentro da mesma peça envolvendo exatamente o mesmo personagem, Antonio Lyra: o primeiro deles encontra-se na cena 14-D, em que Antonio é subornado por Wagner, encarregado de ordens do poderoso Barão local, para calar-se sobre as circunstâncias que inculpavam o patrão no atropelamento de um mendigo:

ANTÔNIO          Foi o Barão, eu vi.
WAGNER          Como pode afirmar?
ANTÔNIO          Ele estava debaixo do poste, debaixo da lamparina.
WAGNER          Conhece bem o Barão para jurar o que viu?
ANTÔNIO          Segure as pernas dele, ajude-me a levá-lo.
WAGNER          Ninguém pode confiar nos sentidos, o olho engana. [Mostra o saco de moedas.] Vê isto?
ANTÔNIO          O que é?
WAGNER          Isto não é nada, uma ilusão noturna. [Joga-lhe o saco de moedas.]

A segunda das cenas que ilustram o mecanismo histórico de cooptação das classes ascendentes em “O Nome do Sujeito” é a de número 22, onde o “aprendizado”, que já assegurou a esta altura a ascensão social de Antonio Lyra, se prova devidamente consolidado. É o próprio Antonio que o demonstra quando, em plena ópera (ironicamente o “Fausto”, de Gounod, com Mefistófeles em cena) relata a Wagner, o encarregado de ordens do Barão, a solução que deu a um “pequeno problema” que se apresentou:

ANTÔNIO Tivemos um pequeno problema. Um velho. Não quis deixar o casebre de jeito nenhum.
WAGNER Esses pobres cheios de orgulho. Sempre acham a oferta pequena.
ANTÔNIO Nem quis ouvir a quantia e ameaçou-me com uma enxada.
[...]
ANTÔNIO Tive de provocar um pequeno acidente. Deixei cair a lâmpada e o mocambo pegou fogo.

(“O Nome do Sujeito” In Op. cit., p. 79.)

As classes dominantes são figuradas de modo a suscitar a análise dos processos de cooptação, que corroboram o status quo e perenizam a exploração dos trabalhadores. Elas se apresentam replicadas através de figuras serviçais como Wagner, em “O Nome do Sujeito”, que eficazmente agenciam os interesses dos poderosos e legitimam-nos de modo a fazê-los parecerem naturais e justificáveis.
Em “A Comédia do Trabalho” a representação da classe dominante se realiza no contexto capitalista contemporâneo, onde Leonid e Creonid, dois banqueiros gêmeos, são expostos ao impacto de uma importantíssima e impactante constatação. O sentido crítico desta cena é tão crucial, que seria possível, a partir dela, designar parodicamente a própria peça como “A Luta de Classes não acabou, seu Edgar”, aproximando-a assim, por afinidade formal e temática, do título da peça de Oduvaldo Vianna Filho, “A Mais-Valia vai acabar, seu Edgar”, de 1961: duas figuras tomadas ao Coro das Ninfas Comunistas, que desde muito antes assombravam como arautos perturbadores o sono de Creonid, induzido por calmantes, voltam agora para trazer-lhe a impactante revelação:

CREONID                                 O que é isso? Vocês de novo?
NINFA-MARTELADORA        Viemos livrar-te do trabalho nojento de superexplorar e superconsumir que pesa sobre ti desde que nasceste.
NINFA-CEIFADORA               Lembra, Creonid, a fúria dos de baixo é impossível de conter.
NINFA-ANUNCIADORA        E vai confiando que isso é só um sonho.
CREONID                                 Horror! Horror! A Luta de classes não acabou? Que merda! Fora, esquerdistas, fora, eu não quero mais ouvir falar em alienação, mais-valia, exploração do homem pelo homem. A História acabou, a História acabou. Socorro, socorro, socorro! [Os convidados correm para acudi-lo.]

(“O Nome do Sujeito” In Op. cit., p. 141.)
        
O uso cênico de coros é um recurso recorrente na dramaturgia do Latão. Se é emblemática, como observa Iná Camargo Costa, a escolha do Latão de abrir e fechar “Ensaio para Danton” com a representação das massas de miseráveis e de explorados, a presença recorrente e marcante dessas massas em praticamente todo o percurso histórico representado nas demais peças também o é. Nos deslocamentos e enfrentamentos cênicos desses despossuídos e expropriados fundamenta-se um dos mais importantes aspectos do épico na dramaturgia do grupo.
Em “O Mercado do Gozo, por exemplo, a luta coletiva é representada através da inserção de um “Intermezzo de agit prop: declaração de greve geral”, recurso que traz estrategicamente nas cenas 6 e 14 uma massa coral de atores como espectadores de uma projeção de imagens históricas da greve operária de 1917 em São Paulo. A rubrica informa, significativamente, que a cena se constitui em “um corpo estranho na narrativa do espetáculo”, ao qual não deve, propositalmente, harmonizar-se: “É como se fizesse parte de um estudo preparatório que foi banido do roteiro do filme.” (“O Mercado do Gozo”. In Op. cit., p. 220)
O uso expressivo da música nesta cena ilustra, por outro lado, outro importante recurso épico utilizado frequentemente como forma de introduzir sínteses analíticas ou palavras de ordem de ação coletiva:

CORO DE GREVISTAS            Aos poderosos diremos:
   [Cantam] Oferecemos nosso braço
   Nosso tempo e nossas vidas
   E vós ofereceis vossas leis.
   E prometeis felicidade.
SOLO DA MULHER GREVISTA      Mas ela não chega nunca!
CORO DE GREVISTAS             Por isso resolvemos tomar...
SOLO DA OPERÁRIA                A exata decisão.
CORO DE GREVISTAS             A greve geral é nossa arma contra a ganância dos donos da vida.    
SOLO DE OPERÁRIO               Abaixo essa República de cartaz e lantejoulas, em que as leis são ficções e cada governante um bufo de comédia.

(“O Mercado do Gozo”. In Op. cit., p. 221.)

Além de agregar a possibilidade da síntese crítica, a música apresenta uma dimensão alegorizante inseparável da própria concepção do épico, pois dá margem, entre as tantas potencialidades expressivas que possui, à incorporação de citações e de elementos extraídos de outras fontes. No caso específico de “O Mercado do Gozo” há a remissão ao poema-libretto da ópera-coral “Café” [20], de Mário de Andrade, estudada (entre outros textos) pelo diretor Sérgio de Carvalho em sua tese de doutorado intitulada “O drama impossível: o teatro modernista de Antonio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade” [21]:

CORO DE GREVISTAS         [Canta.] Acaso não vedes
         Que o ponteiro está chegando sempre na hora.
         Que o ponteiro chega sempre na hora.
         Do crime hediondo
Ruirão não por milagre
         Os muros
         Ruirão forças e fortalezas
         Acaso não vedes...

CORO DE MULHERES         [Canta] ...que a mão da criança
         Se arma de espanto?
         Entre os motores
         As tramas do medo.

A perspectiva alegórica de expressão, reconhecida por Fredric Jameson como intrínseca ao teatro épico brechtiano, aparece, muitas vezes, por meio do duplo sentido como forma de tensionar determinadas falas ou trechos estendendo ao limite as suas possibilidades de significação. É o que acontece, em “O Nome do Sujeito”, na fala do Regente, que finaliza a peça falando do caráter precário e não confiável das “reformas” a que foi submetido o teatro. No subtexto encontra-se representada e criticada a perspectiva reformista de transformação, que preserva e corrobora o status quo e que contrasta semanticamente com a ideia latente da outra perspectiva, ou seja, a da revolução:

REGENTE         [...] Por isso eu digo: nunca confiem nas reformas! Elas pintam a fachada, trocam o sistema elétrico, mas não se preocupam com o sujeito que trabalha. Eu estava até agora na rua gritando “me tragam um especialista, preciso de um especialista”, sou um homem comum, ora bolas, e não entendo mais o processo desses complicados sistemas de hoje. Sozinho, tudo o que posso fazer é achar um fio desencapado. [Pausa.] O que fazer?

(“O Nome do Sujeito”. Op. cit., p. 85.)

São densamente alegorizantes os processos figurativos empregados também em “Visões Siamesas” e em “Equívocos Colecionados”, ambas criadas em 2004.
Na primeira coloca-se em foco o intercâmbio de almas como imagem alegórica de uma hipotética forma de evasão da miséria. A estrutura crítica da peça põe em foco a representação dos intelectuais e o modo como formulam e divulgam teorias que encaram a desgraça social como fruto de fatores imutáveis ou transcendentais.
O coro, na verdade, repete e assimila aquilo que lhe foi incutido pelos Intelectuais, que atendem pelos expressivos nomes de Sai-Bile e Sai-Baba:

SAI-BABA          Nós não temos culpa. [...] Não temos! A desgraça social provém de uma causalidade sistêmica...
SAI-BILE            ... de um determinismo congênito...
SAI-BABA          ... uma fatalidade randômica...
SAI-BILE            ... uma esqualidez famélica...
SAI-BABA          ... uma idiossincrasia climática...

(“Visões Siamesas”, Op. cit., p. 307.)

Já em “Equívocos Colecionados”, escrita no mesmo ano, a perspectiva alegórica articula a representação perturbadora de um tribunal e põe em foco manifestações típicas de formas diversas das militâncias revolucionárias da década de 1960. Nada na peça se apresenta de modo “natural” ou explícito. No tribunal nenhuma enunciação tem caráter ou tom acusatório, e o Juiz, que deve ouvir e julgar os mortos-depoentes, hesita e revela-se sintomaticamente desprovido da capacidade de proferir julgamentos.
Os depoentes são designados e descritos como Ex-Estudante, moça engajada nos anos 1960 e frequentadora de shopping centers duas décadas depois, Ex-Operário e líder sindical, Ex-Intelectual leitor de “O Capital” e cineasta nos anos 60, e Ex-Artista Popular, dançarina e cantora nos anos 1960.
Um Hamlet-Pianista e um Fausto-Iluminador acompanham-nos em cena, e um Assistente interage com o Juiz, a cuja função dá relevo dialógico e dialético, tanto nos trechos falados como nas canções inseridas em suas falas:

ASSISTENTE DO JUIZ          Quem é o cadáver da história
         Por quem tanto se chora
         E tanto se triunfa?
         O cadáver é um velho samba-enredo.
Trama, projeto, o povo no tempo.
‘[Falado.] No retrocesso de sua marcha, o desfile das catástrofes.

(“Equívocos Colecionados”. In Op. cit., p. 381.)

A perspectiva histórica alegorizada está resumida no aforisma enunciado pelo Juiz: “Necrofilia é amor ao futuro.” (Loc. cit.). O passado é, alegoricamente, uma dimensão de enfrentamentos latentes, porém, inconclusos, que as circunstâncias históricas sufocaram e interromperam. As tensões desdobram-se, assim, a partir do confronto implícito nas falas dos próprios depoentes, e não da situação formal do julgamento:

EX-OPERÁRIO Eu era um homem pobre, presidente do meu sindicato. Acho que está tudo errado... Eu não sei mesmo o que dizer. O país está numa grande crise, e não há mais tempo para a esperança.
[...]
EX-OPERÁRIO Mas uma voz me impele para o sim. Eu acredito na vocação nacional. Um dia terei trabalho, e meus filhos uma vida melhor que a minha. E os anjos trarão a fome atrelada a seus corcéis de fogo. E a fome libertará. A fome libertará!
EX-INTELECTUAL [Tapa a boca do Ex-Operário. A fala da personagem Paulo Martins em Terra em Transe, ouvida de fora de cena, se sobrepõe à fala do Ex-Intelectual.] É isso que é o povo? Um imbecil. Um analfabeto. Um despolitizado. Já imaginaram um operário no poder?

(Op. cit., p. 401)

A história, figurada alegoricamente no samba-enredo final, suscita tanto a ideia de processo em andamento como a de uma súmula meta-alegorizante de conteúdos, apresentada emblematicamente como matéria de figuração.
Duas perspectivas se antagonizam exemplarmente em meio ao samba, que se torna agora “excessivo” e “descontrolado”, como informa a rubrica, tornando explícito o “desacordo entre os membros”. (Ibid., p. 402)
As palavras de Heiner Müller, incorporadas à fala do Ex-Intelectual, condensam emblematicamente uma visão de mundo “pós-moderna” e contemporânea”, em tensão com a perspectiva brechtiana, postulante da transformação revolucionária:

EX-INTELECTUAL      Não há nada a fazer. “Dentro da massa existe o homem e o homem é muito mais difícil de se dominar do que a massa.”
[...]
EX-ESTUDANTE         A culpa não é do povo! A culpa não é do povo! A culpa não é do povo!

O pronunciamento final do Juiz sintetiza de forma contundente o desafio figurativo com que se depara o próprio teatro diante do processo histórico e das contradições e paradoxos contemporâneos, condensados novamente nas remissões a Heiner Müller:

CORO DOS RÉUS      Julgai. Julgai.
Longa pausa.
JUIZ                                O que devo fazer? Eu hesito. “No teatro, esse é o momento do ser humano.”
(Loc. cit.)

Se a hesitação do Juiz se resolve formalmente na opção pelo “ser humano”, entendido como categoria essencial e transcendente, a do Latão, em sua dramaturgia, aponta vigorosamente para a perspectiva oposta, ou seja, a da história, com toda a sua carga de materialidade e contingência, a da luta de classes e a da viabilidade e urgência da transformação do mundo em que se vive. É neste sentido que o caráter dialético se mostra fundamental no trabalho do grupo, por permitir a articulação entre forma e matéria representada, e por abrir a perspectiva para uma coerência de pensamento e ação.


Bibliografia

CARVALHO, Sérgio & MARCIANO, Márcio. Companhia do Latão. 7 peças. Prefácio: Iná Camargo Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 416 p.


_______________



Notas

[1] Obs. Este artigo é a versão revista da resenha intitulada “Companhia do Latão. 7 peças e Introdução ao Teatro Dialético”, publicada na Revista Sala Preta, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2009, p. 76-81, do artigo intitulado “Observações sobre o épico na dramaturgia da Companhia Do Latão”. In: GOMES, André Luís. (Org.). Leio Teatro. Dramaturgia Brasileira Contemporânea, Leitura e Publicação.1 ed. Vinhedo, São Paulo: Editora Horizonte, 2010, v. 1, p. 175-199, e de sua posterior reelaboração para a Revista UniABC Humanidades, v. 2, n. 1, 2011.

[2] Maria Sílvia Betti é Professora Livre Docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Orienta também no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

Livros:

Autora de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), e Oduvaldo Vianna Filho. v. 1. 338p. (EDUSP/FAPESP, 1997).


* Tradutora de O método Brecht, de Fredric Jameson (Vozes, 1998), depois relançado em edição revista com o título Brecht e a questão do método (Cosac & Naifiy), 2013. 
* É organizadora da coleção de peças de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal, de São Paulo: Rasga Coração (2018), Papa Highirte (2019) e A longa noite de Cristal (2019).
* Organizadora e prefaciadora de Patriotas e traidores. Escritos anti-imperialistas de Mark Twain (Fundação Perseu Abramo, 2003), O Povo do Abismo. Fome e miséria no coração do Império Britânico, de Jack London (Fundação Perseu Abramo, 2004). 
* Prefaciadora de Mr. Paradise e outras peças em um ato (´É Realizações, 2011) e 27 Carros de algodão e outras peças em um ato (É Realizações, 2013) ambos de Tennessee Williams. 

Artigos recentes:

* Ingrid, Brueghel e o teatro de figuras alegóricas. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2020/03/ingrid-brueghel-e-o-teatro-de-figuras.html>.

* Teatro e movimentos sociais na cidade de São Paulo: um recorte comentado. (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2020/01/teatro-e-movimentos-sociais-na-cidade.html>.

* O impulso e o salto: Boal em Nova Iorque (1953-1955). (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/11/o-impulso-e-o-salto-boal-em-nova-iorque.html>.

* Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho: apontamentos de análise dramatúrgica (In Blog da Cia. Fagulha). Disponível em: <https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2019/01/papa-highirte-de-oduvaldo-vianna-filho.html>.

[3] Movimento brasileiro de luta social originado na década de 1980 contra a concentração da propriedade da terra e em prol da reforma agrária no Brasil. O teatro foi sempre, desde o início, expressão contínua e importante no movimento. A este respeito veja-se a tese de doutorado de Rafael Litvin Villas Boas intitulada Teatro Político e Questão Agrária 1955-1965: Contradições, avanços e impasses de um momento decisivo, apresentada ao Instituto de Letras da Universidade de Brasília em 2009 e disponível em:

[4] Berliner Ensemble: companhia teatral fundada pelo pensador e dramaturgo alemão Bertolt Brecht [1898-1956] e por sua mulher Helène Weigel em 1949.

[5] BRECHT, Bertolt. A Compra do Latão: 1939-1955. Tradução de Urs Zuber e Peggy Berndt. Lisboa: Vega, 1999. Nesse texto Brecht parte da imagem de um comprador de ferro-velho que vai ouvir uma orquestra sinfônica e sai pensando sobre o preço do quilo da lata dos instrumentos que a compõem. Dentro do debate desencadeado sobre a função da arte nesse texto, essa posição materialista revela-se a mais avançada.

[6] Para Brecht a função do ator não era a de exibir atitudes ou gestos associados às deliberações puras e simples do indivíduo. O conceito de gestus foi criado por ele para designar as técnicas corporais, faciais ou interpretativas empregadas por um ator com o objetivo de tornar explícito, no palco, o significado social de uma cena. Veja-se, a este respeito, o ensaio de Brecht sobre a “Ópera dos Três Vinténs” intitulado “Notas sobre a ópera Grandeza e Decadência da Cidade de Mahagonny” in BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Coletado por Siegfried Unseld. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1978.

[7] O termo é empregado por Sérgio de Carvalho no texto de apresentação do volume.

[8] ASSIS, Machado de. Histórias sem Data. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[9] Büchner, Georg. [1813-1837]: dramaturgo alemão caracterizado por seu espírito revolucionário e precursor de características formais que viriam a se apresentar posterirmente com o naturalismo e o expressionismo. Autor de “A Morte de Danton. Quadros Dramáticos da Época do Terror na França.” Tradução Mário da Silva.

[10] Müller, Heiner [1929-1995]. Dramaturgo alemão de orientação estética pós-moderna. Um dos nomes mais representativos do teatro contemporâneo (segunda metade do século XX).

[11] Lehmann, Hans Thies. Teórico e professor de Estudos de Teatro na Universidade de Frankfurt. Responsável pela formulação do conceito de “pós-dramático”, correlato, no campo de estudos teatrais, ao conceito de ‘pós-moderno” no campo de estudos da cultura. Autor de “Teatro Pós-Dramático”. Tradução: Pedro Süssekind. Apresentação: Sérgio de Carvalho. Coord. editorial: Ismail Xavier. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, e de Escritura Política no Texto Teatral. Ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Büchner, Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Müller, Schleef. Tradução Werner Rotschild e Priscila Nascimento. São Paulo: Perspectiva, 2009.

Para uma criteriosa análise crítica do conceito de “pós-dramático” formulado por Lehmann, veja-se o trabalho de Agenor Bevilacqua Sobrinho, Atualidade/utilidade do trabalho de Brecht: uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens femininas [A mãe (1931), A alma boa de Setsuan (1938-1940), O círculo de giz caucasiano (1943-1945) e O processo de Joana d'Arc em Rouen, 1431 (1952)]. São Bernardo do Campo: Cia. Fagulha, 2016.

[12] “Terra em Transe” (1967). Roteiro e direção: Glauber Rocha.Com Jardel Filho, José Lewgoy, Paulo Gracindo, Paulo Autran, Glauce Rocha.

[13] JAMESON, Fredric. O Método Brecht. Prefácio e Revisão técnica da tradução: Iná Camargo Costa. Tradução: Maria Sílvia Betti. Petrópolis: Vozes, 1999.
[14] BAUDELAIRE, Charles. “Pequenos Poemas em Prosa”. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Record, Coleção Grandes Traduções, 2008.

[15] [1922-1984]. Dramaturgo brasileiro autor de “A Moratória” (1954), marco de modernização dramatúrgica no Brasil, e de várias peças coligidas sob a forma de ciclo no volume Marta, a Árvore e o Relógio. São Paulo: Perspectiva, 1986.

[16] [1934-2006]. Dramaturgo nascido na Itália e radicado no Brasil. Ao ingressar para o teatro de Arena de São Paulo, em 1955, juntamente com Oduvaldo Vianna Filho e Vera Gertel, deu início à fase de dramaturgia nacional do grupo. Escreveu “Eles não usam Black-tie”, “A Semente”, “Arena conta Zumbi” e “Ponto de Partida” entre outras.

[17] [1917-1997]. Escritor, jornalista, diplomata e dramaturgo. Autor das peças “A Cidade Assassinada”, “Pedro Mico”, “O Tesouro de Chica da Silva”, “A Revolta da Cachaça” (coletânea de quatro peças), e dos romances “Quarup”, “Bar don Juan”, “Reflexos do Baile” e “Sempreviva”, entre outros.

[18] [1936-9174]. Dramaturgo e agitador cultural. Autor de “A Mais-Valia vai acabar, seu Edgar”, que deu origem ao surgimento do Centro Popular de Cultura, em 1961, e de várias das mais importantes peças da dramaturgia brasileira do século XX, como “Os Azeredos mais os Benevides”, “Moço em Estado de Sítio”, “Papa Highirte”, “Corpo a Corpo” e “Rasga Coração”.

[19] SCHWARZ, Roberto. in Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987 e Cultura e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

[20] ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo: Livraria Martins Editora/Editora INL. 4. Ed, 1972.

[21] SANTOS, Sérgio Ricardo de Carvalho. “O drama impossível: o teatro modernista de Antonio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade”. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Dr. José Antonio Pasta. Ano da obtenção: 2003.




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Conheça também:

de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
Editora: Cia. Fagulha
ISBN 13:       978-85-68844-03-8
Páginas:       360







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