Lillian Hellman: marco do teatro estadunidense moderno no século
XX. Por Maria Sílvia Betti
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em: Betti, Maria Sílvia. “Lillian Hellman: marco do teatro estadunidense
moderno no século XX.” In HELLMAN, Lilian. As pequenas raposas.
Apresentação de Maria Sílvia Betti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
Lillian Hellman: marco do teatro estadunidense moderno no século XX. Por Maria Sílvia Betti
VIDA E PENSAMENTO
Lillian Hellman é um dos nomes centrais da dramaturgia das
décadas de 1930 a 1950, e uma das mais importantes escritoras de sua geração no
contexto estadunidense e internacional. Hellman vivenciou intensamente e com
grande coerência de pensamento e ação as três facetas essenciais de sua própria
condição: a de mulher numa época predominantemente machista, judia num momento
em que o antissemitismo ganhava força e adepta inequívoca do pensamento
político de esquerda numa sociedade como a estadunidense e numa era de “caça às
bruxas” e perseguições em todos os níveis.
Calúnia, de 1934, e As pequenas
raposas, de 1939, traduções de The Children’s Hour e de The
Little Foxes, foram as duas obras que a transformaram num dos nomes
centrais do teatro de seu país do século XX. Muito mais tarde, em 1977, Pentimento,
um de seus livros de memórias, viria trazer-lhe novo influxo de celebridade na
glamourizada adaptação cinematográfica intitulada Julia e estrelada por
Jane Fonda e Vanessa Redgrave.
Contemporânea de grandes renovadores da dramaturgia nos Estados
Unidos, como Eugene O’Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller, Lillian
Hellman preferiu, ao contrário deles, manter-se fiel à estrutura dramática
padrão, evitando arriscar-se em rupturas com a forma da chamada “peça bem
feita”. Por isso suas obras caracterizam-se, do ponto de vista formal, por uma
construção bastante próxima dos preceitos clássicos do drama: uma introdução
expositiva da ação dramática, seu desenvolvimento e ascensão rumo a um clímax
tensional e sua resolução final por meio de um desfecho.
Como escritora, Hellman transitou por diferentes gêneros. Sua
produção é composta por oito peças teatrais, quatro adaptações e sete roteiros
cinematográficos, quatro volumes de escritos autobiográficos e um livro de
receitas.
Como intelectual, desfrutou sempre, ao longo de sua carreira, da
amizade de artistas de diferentes setores e de diferentes gerações, como
Dorothy Parker, Leonard Bernstein e Mike Nichols, além de ter sido casada com o
famoso escritor de romances policiais, roteirista e ativista político Dashiell
Hammett.
Tendo vivido numa época de grandes e drásticas transformações
históricas, Hellman enfrentou um duplo desafio ao longo das diversas fases de
seu trabalho: enfrentar o machismo dominante nos meios intelectuais em sua
época e manter, como intelectual, a coerência de seu pensamento crítico sem
fazer concessões ao reacionarismo dominante nos Estados Unidos. Cumprindo seu
papel de cidadã, posicionou-se com firmeza ao ser inquirida pelo terrível
Comitê de Atividades Antiamericanas presidido pelo senador republicano Joseph
McCarthy, em 1951.
A obra dramatúrgica de Lillian Hellman, ainda que não volumosa,
desenvolveu-se dentro do período em que o teatro estadunidense se constituiu como
um dos mais importantes pontos de referência para a modernização da dramaturgia
e da encenação no século XX.
Embora seus trabalhos não tenham relações diretas com os
expedientes dessa modernização, Hellman foi contemporânea de manifestações de
extraordinária força renovadora e significado político, como, por exemplo, o
Federal Theatre Project (projeto nacional de cultura implantado pelo governo
Roosevelt durante o New Deal), o grande movimento de grupos teatrais de
esquerda dos anos 1930 e o trabalho dramatúrgico e teórico do pensador alemão
Bertolt Brecht.
No decorrer da década de 1950, dentro da atmosfera política e
cultural da Guerra Fria, Hellman testemunhou a ascensão do movimento beatnik,
o surgimento do movimento hippie e as primeiras raízes da contracultura, que
eclodiria com força na década seguinte. Nos anos 1960 tornou-se inequívoco o
contraste que suas peças apresentavam com o experimentalismo radical dos grupos
teatrais de vanguarda como o Living Theater e o Open Theater.
Parte em função disso e parte em função da própria concepção
dramatúrgica praticada por Hellman, sua obra foi consideravelmente preterida,
ainda que muitas vezes peças como Calúnia e As pequenas raposas tenham
sido objetos de adaptações para a televisão nos Estados Unidos e em vários
outros países.
Mesmo sem ter enveredado pelo campo das estruturas épicas e
politizantes, o conteúdo político das peças de Hellman é inegável no que diz
respeito aos temas: o foco crítico recai sobre as classes médias que lutam pela
ascensão social, sobre o individualismo competitivo que as respalda e sobre a
forma como as relações sociais e os laços afetivos se deixam moldar, dentro e
fora do mundo familiar, pelos jogos de poder e de interesse.
DRAMATURGIA
O estilo de criação de Hellman é minucioso e bem elaborado em
todos os seus detalhes: nada fica pendente ou sem função, cada pormenor da
caracterização das personagens ou da concepção do contexto sociocultural
representado revela um criterioso levantamento de informações factuais,
históricas e estatísticas que dá consistência e credibilidade ao trabalho
final.
Ao contrário de Clifford Odets, o grande expoente da dramaturgia
de esquerda dos anos 1930 nos Estados Unidos, Hellman nunca teve o respaldo de
um coletivo de atores e diretores, como foi o caso daquele autor e da filosofia
colaborativa de trabalho que estabeleceu com o Group Theater, de Nova Iorque.
Introduzida no mundo da criação literária por seu marido,
Dashiell Hammett, Hellman identificou-se desde o início de sua carreira com o
pensamento da esquerda antifascista e participou de várias importantes
organizações culturais diretamente ligadas ao Partido Comunista nos Estados
Unidos.
Seu vigoroso empenho na luta contra o fascismo foi alimentado,
paralelamente, por sua grande sensibilidade crítica e pela experiência política
extraída da viagem que fez a Moscou, passando pela Espanha de Franco e pela
Berlim de Hitler em plena época de expansão do nazismo, em meados dos anos
1930.
As peças de Hellman fazem uso razoavelmente frequente de
elementos melodramáticos como forma de intensificar a ligação emocional do
espectador/leitor ao assunto tratado. São comuns, também, recursos de caráter
figurativo, destinados a representar os embates entre justiça e injustiça ou
entre socialismo e fascismo, e o caráter ilusório do dinheiro e do poder
econômico, potenciais agentes de corrupção e de crueldade social.
O trabalho de analista e roteirista cinematográfica, que levou
Hellman a mudar-se para Hollywood, não afetou sua veia criadora como
dramaturga, como prova sua produção dos anos 1940. Mas a necessidade de atender
ao que lhe pedia o diretor Harold Clurman e adaptar sua técnica de criação às
novas plateias colocou-a numa posição diversa da ocupada por outros escritores
de esquerda como o já citado Clifford Odets, cuja dramaturgia tinha um caráter
de inequívoca conclamação à militância e à construção de uma consciência
política de esquerda.
Pode-se dizer que Hellman contribuiu significativamente para a
renovação do drama social estadunidense sem nunca ter sido, efetivamente, uma
revolucionária no sentido artístico da palavra. Há quem julgue, como o crítico
R. C. Reynolds em seu livro Stage left: the development of the American
Social on the Thirties [A esquerda do palco: o desenvolvimento do social
americano nos anos 1930], que Hellman evitou desenvolver um trabalho de
natureza política mais declarada e radical a fim de não prejudicar seu sucesso
profissional como autora.
Todas as suas peças estrearam na Broadway, e a Broadway foi
sempre sinônimo de um teatro altamente profissionalizado, com investimentos
elevados em produção e a necessidade implícita de sucesso entre as plateias
pagantes.
O fato é que, dentro dessa estrutura de produção e da opção
formal que fez pelo drama padrão, Hellman construiu uma obra de inequívoco
sentido político, representando com grande vigor dramático questões sociais de
grande relevância: Calúnia trata do tema da disseminação da mentira
dentro de mecanismos socialmente estabelecidos. Days to Come [Dias por
vir], de 1936, trata de questões sindicais e da ética política num contexto de
lutas trabalhistas e de fura-greves, Watch on the Rhine, [Vigília sobre
o Reno], de 1941 e The Searching Wind [O vento penetrante], de 1944,
colocam em foco o fascismo no contexto da Segunda Grande Guerra e a omissão da classe
média estadunidense diante da sua expansão e Toys in the Attic [Brinquedos
no sótão] trata da erosão das relações familiares sob o impacto da usurpação do
patrimônio compartilhado e da cobiça material.
Representar tais assuntos e dar a eles consistência cênica e
qualidade dramatúrgica não constituía uma opção simples ou cômoda do ponto de
vista da execução, e Hellman soube tratá-los de forma artisticamente bem
realizada e politicamente comprometida com uma visão crítica da sociedade estadunidense
e de seus valores estabelecidos.
AS PEQUENAS
RAPOSAS
“Por exemplo; nós as raposas, as pequenas raposas que estragam
as vinhas; pois nossas vinhas têm tenras uvas.’ A citação bíblica da qual foi
extraído o título serve de metáfora para a imagem central da peça de Lillian
Hellman. Os procedimentos associados ao jogo capitalista de disputa pela
riqueza e a denúncia das distorções da sociedade estadunidense fazem do texto
um clássico da moderna dramaturgia do século XX.
O contexto socioeconômico dos Estados Unidos no início do século
XX caracteriza-se pelo rápido crescimento urbano e industrial, pelo grande
empreendedorismo generalizado e pela confiança inabalável no progresso material.
O país vinha crescendo num ritmo sem precedentes e se tornara
atraente tanto para os investidores estrangeiros como para as massas de
imigrantes que afluíam em busca de oportunidades. Os grandes impérios coloniais
europeus declinavam enquanto os Estados Unidos emergiam como a grande potência
econômica internacional. Mais do que isso, o país passava a ser visto como
modelo de nação moderna onde a livre iniciativa e a competição eram alardeadas
como caminhos de busca supostamente igualitária pela felicidade, associada à
ascensão social e ao sucesso econômico.
As expectativas de enriquecimento crescente da família Hubbard —
cujos irmãos Ben, Oscar e Regina são convidados a participar de empreendimentos
no setor de algodão — são representativas da mentalidade estadunidense que, na
virada do século XIX para o XX, vislumbrava um futuro de prosperidade com o
avanço da industrialização e sua prevalência sobre o mundo agrário e
patriarcal. Os Hubbard representam, em seu pensamento e conduta, a nova
burguesia estadunidense que ganhara terreno, política e economicamente, a
partir do final da Guerra Civil, em 1865. Para Lillian Hellman essa nova classe
que emergira no período incorporava de forma extrema os expedientes predatórios
da mentalidade capitalista, mostrando-se assim tão daninhos quanto as pequenas
raposas, que na imagem bíblica destroem as vinhas.
O microcosmo familiar dos
Hubbard encontra-se impregnado dos valores desse sistema econômico, e serve de
imagem típica das relações humanas que se reproduzem em seu interior, apoiadas
na rapina material e moral. Apesar da concepção melodramática de algumas cenas,
esta é uma peça contundente e comprometida com a crítica ao modo como os
valores do enriquecimento a qualquer preço são absorvidos e legitimados no
âmbito da família, e como reproduzem, no microcosmo das relações parentais, os
grandes mecanismos de manipulação e de conquista do poder econômico.
CRONOLOGIA
1905 Lillian Florence
Hellman nasce em New Orleans, em 20 de junho, filha de um comerciante de
calçados.
1922 Inicia seus estudos
na Universidade de Nova Iorque.
1924 Transfere-se para a
Universidade de Columbia.
1925 Abandona o curso e
começa carreira de crítica literária no jornal New York Herald Tribune.
Casa-se com o dramaturgo e assessor de imprensa Arthur Kober.
1930 Torna-se roteirista
para a empresa cinematográfica Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) em Hollywood. Conhece
e apaixona-se pelo escritor de histórias policiais Dashiel Hammet.
1932 Divorcia-se de Arthur
Kober. Passa a viver com Dashiell Hammett.
1934 Estreia de sua peça Calúnia
[The Children’s Hour] em 29 de novembro no Maxine Elliott’s Theatre na
Broadway em Nova Iorque, cumprindo uma temporada de 891 apresentações.
1936 Estreia de sua peça Days
to Come [Dias por vir] no Vanderbilt Theatre, na Broadway. A peça não é bem
recebida e cumpre apenas sete apresentações.
1939 Estreia de sua peça As
pequenas raposas no National Theatre na Broadway. A peça cumpre 410 apresentações.
1941 Estreia de sua peça Watch
on the Rhine [Vigília sobre o Reno] no Martin Beck Theatre, na Broadway. A
peça recebe o prêmio do New York Drama Critics Circle Award.
1942 Hellman é indicada
para o Oscar pelo roteiro cinematográfico de As pequenas raposas, de
1941.
1944 Hellman é indicada
para o Oscar pelo roteiro de The North Star, de 1943. Sua peça The Searching
Wind estreia no Fulton Theatre, na Broadway.
1946 A peça Another
part of the Forest [Uma outra parte da floresta] estreia no Fulton Theatre
na Broadway sob a direção da própria Hellman.
1949 Adaptação de Montserrat,
de Emmanuel Robles, estreia no Fulton Theatre na Broadway sob a direção de
Lillian Hellman. A versão musical de As pequenas raposas,
intitulada Regina, estreia no 46th Street Theatre, na Broadway.
1951 Sua peça The
Autumn Garden [O jardim de outono] estreia no Coronet Theatre, na Broadway.
1952 Hellman é intimada a
depor diante do Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado. Diante de
pressão para que revelasse nomes de artistas do meio teatral ligados a
organizações comunistas, ela recusa-se dizendo: “Não vou retalhar minha consciência
para me adequar à moda da estação.”
1956 O musical Candide,
adaptação da obra de Voltaire com libretto de Hellman, estreia no Martin Beck Theatre
na Broadway, e recebe o Tony Award na categoria de melhor musical.
1960 Sua peça Toys in
the Attic [Brinquedos no sótão] estreia no Hudson Theatre na Broadway, e
recebe o Tony Award na categoria de melhor peça, cumprindo
uma temporada de 556
apresentações.
1961 Dashiell Hammett
morre, vítima de câncer no pulmão.
1963 Sua peça My
Mother, My Father and Me [Minha mãe, meu pai e eu], baseada em romance de
Burt Blechman, estreia no Plymouth Theatre na Broadway. A peça não é bem
recebida e cumpre apenas 17 apresentações.
1964 Hellman recebe a
medalha de ouro na categoria de Dramaturgia pelo Instituto Nacional de Artes e
Letras.
1969 Hellman lança seu primeiro
livro de memórias, Uma mulher inacabada, e recebe o National Book Award
na categoria de autobiografia, mas é atacada pela crítica, que a acusa de ter
fantasiado muitos dos fatos relatados e de ter utilizado outras fontes que não
suas próprias reminiscências.
1973 Hellman lança seu
segundo volume autobiográfico, Pentimento.
1976 Hellman lança seu terceiro
volume autobiográfico, Caça às bruxas.
1984 Morre de um ataque
cardíaco em Martha’s Vineyard.
*****
Conheça também:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)
Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora:
Maria Sílvia Betti
Editora:
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ISBN 13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
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