Resenha de “Panorama do Rio Vermelho. Ensaios sobre teatro norte-americano moderno”. Iná Camargo Costa. São Paulo, Nankin Editorial, 2001. Por Maria Sílvia Betti


Resenha de “Panorama do Rio Vermelho. Ensaios sobre teatro norte-americano moderno”. Iná Camargo Costa. São Paulo, Nankin Editorial, 2001. Por Maria Sílvia Betti [1]






“Panorama do rio Vermelho”, de Iná Camargo Costa, nasceu do interesse da autora pelo teatro brasileiro e pela observação dos destinos do drama no país. O conhecimento da dramaturgia e da crítica estadunidense colocou-se, inicialmente, como etapa prévia do estudo da dramaturgia brasileira, remetendo a constatações resultantes de pesquisas anteriores relatadas em “A produção tardia do teatro moderno no Brasil”.
As dificuldades não foram poucas: a hipótese sugerida pela bibliografia disponível, de que a modernidade teria sido introduzida no teatro estadunidense a partir da experiência dos grupos de teatro independentes, revelou-se equivocada, já que isto ocorria apenas no que diz respeito ao seu caráter anti-comercial
Pouco a pouco, Iná foi sendo levada a uma série tão reveladora quanto perturbadora de constatações, capazes de abalar profundamente as convicções até então existentes acerca do nascimento e das características do teatro estadunidense moderno. A supressão do componente político das experiências teatrais era a regra, tanto no tocante à especificidade dos conteúdos na arena política como no que se refere a seus aspectos estéticos e formais.
Em decorrência dessa constatação apresenta-se, no trabalho de Iná, todo um enorme filão de debate acerca das “supressões” de referências documentais e de reflexões críticas. Por um lado, essas supressões acarretam a retirada, dos capítulos oficiais, de toda e qualquer ressonância que experiências de grande alcance (como as do Federal Theater Project, por exemplo) possam ter tido; por outro,contribui para que se empobreça o teor da discussão acerca do teatro estadunidense em termos amplos, fato que, para um país da periferia capitalista como o Brasil tem consequências importantes.
Utilizando-se do conceito de “ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz, Iná ressalta o fato de, até a 2a guerra, os Estados Unidos terem sido um país também periférico culturalmente falando, e consequentemente dotado de uma dinâmica interna diversa da existente nos centros hegemônicos. Isso permitiria entender por que a produção de um dramaturgo expressivo como Elmer Rice não chegou a exercer papel marcante, a despeito dos aspectos política e formalmente pioneiros que apresenta.
O trabalho de Iná constitui-se, basicamente, na reconstituição crítica deste percurso de descobertas e de seus resultados heterodoxos, que alinham desde a pesquisa sobre as experiências cênicas e dramatúrgicas do início do século XX até a carreira de James Dean, ator cujo status de ídolo cinematográfico precocemente morto é alardeado em detrimento da menção à formação desenvolvida no Actors Studio sob a direção de Lee Strassberg. O processo de desmonte implícito das conquistas presentes no trabalho do Actors, é flagrante, numa era de liquidação cultural e de clichês.
O foco inicial de interesse do trabalho são as condições de aparecimento do chamado teatro moderno dentro do contexto estadunidense. A autora concentra-se, a este respeito, no levantamento dos bastidores políticos e estéticos do teatro estadunidense nas três primeiras décadas do século XX. Com base no livro de Elmer Rice, “Teatro Vivo”, aponta o caráter dominante do aspecto comercial, materializado com a constituição da Broadway, a partir de 1900, como seu centro hegemônico.
Em seguida, seu olhar se volta para as determinações que teriam levado ao aparecimento de uma modernidade artística dentro do teatro estadunidense quando, a partir da 3a geração pós-guerra civil, cresce o interesse pela cultura e o desejo de um contato mais sistemático e direto com a experiência europeia.
Dentro desta perspectiva historiográfica, Iná ressalta a importância da experiência dos chamados teatrinhos (“little theaters”), como o Washington Square Players e o Theater Guild, que, graças ao sistema de assinantes reuniram condições para exercer a importante função de atualização cultural da cena e da dramaturgia estadunidense a partir da produção de Ibsen, Tchekhov, Granville Barker e Shaw.
Como legado dessa geração, é destacada a seguir a importância do conteúdo da reflexão teórica assim produzida, com a absorção das experiências de Adolphe Appia e Gordon Craig no que diz respeito à construção cênica, e de Gyorgy Lúkacs e Walter Benjamin na senda da crítica.
Com esses novos componentes, a discussão acerca da própria construção cênica se enriquece e gera polêmicas significativas, como a que discute a teatralidade e autonomia da performance, defendida por Stark Young, R. E. Jones e Norman Bel Geddes de um lado, e o respeito à integridade do texto defendido por Granville Barker e Lee Simonson, do outro.
Ainda dentro deste olhar histórico, Iná ressalta a importância da incorporação da experiência trazida pela enorme massa de imigrantes, dentre os quais uma parcela não desprezível era devidamente familiarizada com os trabalhos de inovadores do porte de Antoine, Ibsen, Hauptmann e Gorki.
Este mapeamento do nascedouro do teatro estadunidense moderno não poderia ter se realizado, porém, sem o acompanhamento crítico paralelo da trajetória da esquerda estadunidense das três primeiras décadas do século XX. Iná procura, por isso, acompanhar passo a passo as estratégias do Partido Comunista estadunidense no sentido da conquista e da manutenção de uma posição hegemônica dentro do movimento operário. O objetivo inicial, de penetração no âmbito do sindicalismo industrial dominado pela American Federation of Labor (AFL), levou-o à estratégia de arregimentação através de iniciativas culturais. O PC encontrava-se bem aparelhado, neste sentido, em virtude do grande número de intelectuais de prestígio existente em seus quadros. Na fase seguinte, porém, de meados dos anos 30 até 40, as dificuldades crescem, levando a uma série de capitulações (abandono das críticas à AFL, adesão ao governo Roosevelt e ao realismo).
Evidentemente o objetivo de Iná não é o de apresentar os lineamentos políticos e ideológicos da esquerda como mero pano de fundo das questões teatrais, mas o de questionar qual o tipo de papel por eles exercido na história cultural estadunidense. Essa questão ilumina diretamente as investigações que faz acerca das grandes representações coletivas de episódios políticos e históricos denominadas pageants (o livro irá tratar de um deles, o “Patterson Pageant”, particularmente) e da International Workers of the World, entidade anarcossindicalista de luta pelos direitos dos trabalhadores. Interessa-lhe em igual medida discutir qual o peso intelectual da corrente ortodoxa da esquerda na definição dos valores determinantes para os rumos do teatro estadunidense moderno.
Uma vez traçadas estas linhas gerais de contextualização e crítica, Iná debruça-se sobre o questionamento dos fatores que teriam legitimado, dentro do campo da crítica institucionalizada, o poder de passar ao largo de experiências de grande envergadura estética e política.
O primeiro desses fatores encontra-se, em sua análise, no conjunto de medidas governamentais designado como Red Scare (Ameaça Vermelha), que se materializa com o Espionage Act (Ato da Espionagem), e o Sedition Act |(Ato da Traição), de 1918, instituindo uma verdadeira paranoia nacional em relação à possível articulação de um movimento conspiratório para a tomada do poder por parte dos comunistas.
Essas medidas, claramente associáveis ao temor inspirado pela Revolução Russa de 1917, tornam explicáveis as razões pelas quais as experiências teatrais desenvolvidas pelos militantes da International Workers of the World (IWW) não entraram sequer para o cômputo documental do período, tendo sido suprimidas no que diz respeito ao possível interesse das gerações posteriores.
Iná frisa as consequências disto: mesmo críticos e intelectuais de esquerda algumas vezes, incorrem em laconismo excessivo ou mesmo em omissão no mergulho analítico neste período e em suas implicações. Esse é o caso de Ben Blake (que ignora os antepassados teatrais da geração de artistas ligados ao New York Armory Show e da geração pós 1a guerra), e de Michael Denning (que, apesar de observar a existência de um material de interesse no que diz respeito às primeiras décadas do século, aponta uma “falta de continuidade” entre esse material e o teatro político da década de 30). Ambos os casos são contestados por Iná: o primeiro, de Blake, através do estudo documental e crítico dos “pageants” dos anos 10, e o segundo, de Denning, através do estudo do livro de uma figura exponencial (Elizabeth Gurley Flyn), com participação expressiva tanto no célebre “Patterson Pageant”, de 1913, como nos quadros da militância no Partido Comunista estadunidense dos anos 30.
Estabelecidas estas balizas históricas e as perspectivas para o questionamento das ocorrências levantadas, Iná adentra a seara mais ampla e fértil de seu livro: a do estudo dos casos de supressões de experiências cênicas e dramatúrgicas de interesse, alijadas nos capítulos da grande historiografia do teatro estadunidense.
Procura sempre, a este respeito, não perder de vista a sequência cronológica dos fatos, e mesmo quando o material discutido pede que ela avance ou retroceda na linha temporal, isto é feito sempre de modo a esclarecer quase que didaticamente os fatores conjunturais determinantes das experiências discutidas e de seus pressupostos estéticos.
Trata-se, assim, do que a própria Iná designa como uma história contada a contrapelo, ou seja, na contramão da historiografia corrente nos estudos acadêmicos e no âmbito da crítica propriamente dita.
O material resultante é de surpreendente extensão, diversidade e riqueza no que diz respeito a seus componentes e pressupostos não apenas políticos mas também estéticos, e produz um mapeamento tanto do trabalho de grupos independentes de artistas e intelectuais (Workers Laboratory Theater, de 30, Theter Guild, de 31, Theater of Action e Theater Union de 34/35) como do grande movimento de articulação dos pageants, cujo expoente maior, em termos de representatividade e ressonância, é o organizado a partir da greve dos trabalhadores de uma indústria têxtil da seda em Patterson, New Jersey, em 1913. Iná ressalta, em relação ao “Patterson Pageant”, a não casual ligação entre sua realização com a experiência da Freie Bühne e, dentro dela, com o trabalho de Max Reinhardt.
O filão central no que poderíamos chamar de capítulo das supressões é, porém, o da discussão que traz a respeito do Federal Theater Project, iniciativa do governo Roosevelt vinculada ao Workers Progress Administration. Fatores conjunturais de importância são discutidos (a existência de uma facção anti-Roosevelt, visceralmente contrária à criação de um “welfare state” e a campanha aberta da imprensa contra o projeto) assim como o balanço das revelações decorrentes. O trabalho cinematográfico de Orson Welles é apresentado à luz de aspectos do trabalho desenvolvido por ele próprio dentro do Federal Theater Project. Também o aparecimento do grande cânone dramatúrgico estadunidense do pós 2a guerra (Arthur Miller e Tennessee Williams) é debatido à luz de um quadro referencial diretamente ligado ao projeto teatral do FTP.
Este é, aliás, outro filão de importância dentro do trabalho de Iná: o de investigação e releitura do trabalho de nomes expressivos da dramaturgia, seja no que diz respeito à forma seja no tocante à recepção crítica suscitada por seus trabalhos.
Também a este respeito existem omissões constatadas a reportar, como é o caso da de Elmer Rice, responsável pela realização da peça considerada a obra prima do expressionismo teatral estadunidense, “A máquina de somar”, recentemente encenada pelo grupo Ocamorana, de São Paulo. Premido por cobranças da direita (que o considera subversivo) e da esquerda (que se ressente da falta de posições mais programáticas e o acusa de esquematismo), Rice é responsável pela adoção de soluções formais que realizam pioneiramente, em 1914, rupturas em relação à estrutura da peça bem feita, e que posteriormente, em 1933, antecipam o épico na dramaturgia estadunidense. Apenas recentemente esses dados começaram a ser levados em consideração no campo da reflexão crítica e da pesquisa acadêmica.
Bem diversos são os casos dos dramaturgos componentes da célebre tríade da dramaturgia estadunidense do século XX, Eugene O’Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams. A adoção do recorte biográfico como estratégia de abordagem é sintomaticamente recorrente na extensa fortuna crítica existente a respeito. Os paralelos estabelecidos entre a experiência individual dos autores e suas concepções formais e temáticas tornaram-se estratégicos, como observa Iná ao adequar o teor das abordagens ao âmbito do desejado dentro do contexto da Red Scare e posteriormente da Guerra Fria.
Também a este respeito o aspecto das supressões é o aspecto mais conclusivo em “Panorama do Rio Vermelho”: em O’Neill suprime-se a natureza política de peças das fases iniciais de seu trabalho, dentre as quais “Emperor Jones” (“Imperador Jones”), “All God’s chillun got wings” (“Todos os filhos de Deus têm asas”) e “The hairy Ape” (“O macaco peludo”), que ela analisa detalhadamente.
A respeito da recepção da obra de Tennessee Williams, Iná destaca a forma como o próprio público da Broadway já se encontrava, a essa altura, condicionado a fixar o olhar numa direção predominante onde, com o aval da grande crítica, as questões políticas não se apresentam, o que confere centralidade aos aspectos biográficos associados ao uso da memória.
No caso de Miller, em cujo trabalho a obsessão biográfica da crítica tem menos preponderância do que nos casos de O’Neill e Williams, o resultado não se altera tanto no sentido do teor da análise: os elementos épicos são subestimados ou omitidos, e o argumento de que as peças políticas “pregam a convertidos” é evocado de modo a chancelar as prerrogativas do sistema empresarial estadunidense, que consagra a perspectiva realista e psicologizante como padrão de excelência e de profundidade insuperável.
Como requer a natureza de trabalho em processo que o caracteriza, o livro de Iná não apresenta conclusão, apontando, como frisa sua prefaciadora Maria Elisa Cevasco, para desenvolvimentos futuros das pesquisas nele esboçadas. Um balanço do percurso crítico empreendido nele deve ressaltar a natureza diferenciada da base teórica que o respalda, que aponta para uma conjunção de elementos das áreas de estudos da cultura e da literatura comparada. Paralelamente respalda-se no trabalho de Roberto Schwarz acerca das “ideias fora do lugar”, e no recém-traduzido trabalho de Szondi sobre as questões teóricas do drama moderno.
O material tratado ilumina questões de indiscutível interesse não apenas para o processo de aclimatação da dramaturgia estadunidense no Brasil, mas para a abertura de novos parâmetros para se pensar a própria experiência brasileira. Empreendendo seu panorama sem receio dos preconceitos que o termo poderá suscitar no meio acadêmico, Iná não se furta a levantar bandeiras e a desafiar seu leitor, seja no sentido de olhar velhas questões com novos olhos, seja no de procurar, nas sendas históricas das lutas do teatro do século XX, remar contra a corrente e percorrer as águas caudalosas do rio vermelho do teatro estadunidense.



[1] Professora de Letras Modernas da FFLCH-USP. É organizadora da coleção de peças de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal, de São Paulo. Autora de Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1997, de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), entre outros trabalhos.





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de Maria Sílvia Betti (organizadora da edição de Rasga Coração)

Dramaturgia Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria Sílvia Betti
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ISBN 13:       978-85-68844-03-8
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