Um teórico posto em questão: o teatro político na abordagem de Hans Thies Lehmann. Por Maria Sílvia Betti
NOTA PRELIMINAR:
Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico
anterior, publicado entre 2010 e 2011 na Revista UniABC - Humanas,
publicação da UniABC. Essa Universidade encontrava-se então sob o controle
administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton,
criando assim a maior companhia de educação do mundo.
Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo
realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a
essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica
empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho
docente.
A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem
a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma luta
continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo exercido
pelos professores em todos os seus níveis.
Um teórico posto em questão: o teatro político na abordagem de Hans Thies Lehmann. Por Maria Sílvia Betti [1]
É grande a exaustividade dos expedientes retóricos empregados, no livro, direcionados no sentido de diluir as fronteiras conceituais entre o teatro épico e o pós-dramático e de reforçar uma dimensão política latente neste (ou seja, no pós-dramático) para descaracterizar a efetividade politizante naquele (ou seja, no teatro político propriamente dito).
Resumo – Este artigo discute o livro Escritura política no texto teatral. Ensaios
sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Büchner, Jahnn, Bataille, Brecht,
Benjamin, Müller, Schleef, de Hans Thies Lehmann, procurando apontar e discutir alguns dos recursos argumentativos
utilizados pelo autor na relativização e na descaracterização da eficácia
representativa do teatro político em geral e do teatro dialético brechtiano em
particular.
O nome do crítico e teórico alemão Hans
Thies Lehmann tornou-se conhecido no Brasil a partir da tradução e divulgação de
seu livro “O teatro pós-dramático”, escrito em 1999 e lançado no mercado
editorial brasileiro em 2007. Nele o autor partia da superação histórica da
forma do drama e colocava em foco as modalidades de teatro contemporâneas que
se apoiavam em outros parâmetros que não os do texto e os da ação cênica
simbólica e mimética (LEHMANN, 2007, p. 76-77).
O conceito de “pós-dramático” ali
introduzido aplicava-se às poéticas caracterizadas pela fragmentação da
narrativa e pela desconstrução da mímese, e teve rápida acolhida tanto no
âmbito acadêmico como nos meios ligados à criação teatral e à encenação. Uma inegável
afinidade ligava-o ao conceito de “pós-moderno”, formulado nos anos 1990 e
prontamente acatado por setores hegemônicos da crítica literária e artística.
Esse aspecto, sem dúvida, contribuiu para a rápida assimilação do “pós-dramático”
como perspectiva de atualização teórica amplamente acolhida nos estudos de
teatro no Brasil.
Em “O teatro pós-dramático” Lehmann
apontava a tendência do teatro contemporâneo de absorver e incorporar elementos
da arte performática e de rituais e cerimônias de diferentes naturezas, e
enfatizava o fato de, nas modalidades ditas “pós-dramáticas” de teatro, o
trabalho “não mais aspirar à expressão de uma totalidade” (LEHMANN, 2007, p.
90).
Por um lado, sua abordagem tratava como
instigantes e profícuas as poéticas que se apoiavam na descontinuidade e nas
fraturas e lacunas da representação simbólica; por outro, subentendia como
obsoletas e equivocadas as poéticas que procuravam estabelecer conexões,
analisar perspectivas de conjunto e historicizar a relação do teatro com a
matéria sócio-política simbolicamente representada por meio dele.
Tratava-se de um trabalho de fôlego que
via como problemático e desafiador o teatro político ou politizante no mundo
contemporâneo, particularmente o apoiado nos princípios dialéticos do teatro épico
de Bertolt Brecht [2].
“Escritura política no texto teatral”, publicado
na Alemanha em 2002 com o título de “Das politische Schreiben. Essays zu
Theatertexten” e lançado no Brasil no final de 2009, é a compilação de uma
série de escritos em que o autor coloca em questão, especificamente, o aspecto
político no teatro contemporâneo e suas implicações no campo da forma
dramatúrgica e cênica. Apesar da indicação do título em português, que faz
referência direta à escritura, o livro não trata apenas de textos dramatúrgicos,
mas também, e em larga medida, de concepções cênicas e de seus desdobramentos.
Lehmann não deixa dúvidas de que sua
empreitada, desde o início, será a de desacreditar a efetividade das
perspectivas épicas e políticas de teatro: em primeiro lugar declara abertamente
seu ceticismo quanto à possibilidade de o teatro atuar como elemento de reflexão
política de caráter analítico (LEHMANN, 2009, p. 3). Ao fazê-lo, introduz os fios
condutores do raciocínio que passará a expor por meio de inúmeras variações e
estratégias argumentativas: por um lado, Lehmann relativiza a eficácia da perspectiva
política enquanto por outro aponta e enfatiza, nas poéticas teatrais inequivocamente
políticas, uma série de afinidades que, à revelia dos seus postulantes, poderiam
vinculá-las a inúmeros aspectos “pós-modernos”.
O recurso aí implícito é o do paradoxo, sob
cujo efeito impactante o leitor é instigado a acompanhar o passo a passo do
texto com grau considerável de curiosidade receptiva: é o que ocorre com a declaração
de que aquilo que é “verdadeiramente político” só pode aparecer como tal “de
modo oblíquo” (Ibid., p. 8), ou seja, por meio da interrupção do conteúdo
extraído da realidade sócio-política referenciada (Loc. cit.). Lehmann afirma,
sem meias palavras, que o conteúdo político tomado à esfera social precisa ser
bloqueado, e na sequência passa a definir as formas de representação que tendem
a surgir em lugar do material suprimido. Essa operação o leva, a seguir, a tratar
da questão da representabilidade: em uma longa sequência de reflexões que tem o
provocativo título de 30 abordagens sobre
a privação da representação, ele passa a expor e a discutir categorias
conceituais intituladas o pudor (Ibid., p. 33), o sublime (Ibid., p. 56),
o inquietante (Ibid., p. 63), o cênico (Ibid., p. 67), o obsceno (Ibid., p. 74)
e o dispêndio (Ibid., p. 85), todas apresentando em comum o fato de exprimirem,
de alguma maneira e em alguma medida, formas de supressão, de ausência, de fratura
e de descontinuidade.
Dessa forma, tornam-se mais flexíveis as
fronteiras epistemológicas implicadas nas modalidades de trabalho pós-dramáticas,
o que permite que o autor argumente, por meio de uma série de análises, que peças
de molde pós-dramático podem ser mais eficazes na representação do político do
que peças de forma épica ou abertamente politizante. Para efeito de
fundamentação dessa ideia, seu olhar analítico recai sobre obras significativas
do contexto do século XX: na natureza fragmentária ou desconstruída que as
caracteriza, ele aponta representações latentes de diferentes modalidades de
matéria sócio-política. Isso dá a seu texto coerência argumentativa suficiente para
legitimar formalmente o argumento central: o de que essas peças pós-dramáticas
apresentariam um nível superior de objetivação (e portanto de eficácia representativa)
em relação às do teatro político.
A forma de
análise aplicada por Lehmann toma cada obra como um campo de forças em aberto,
tanto no que diz respeito aos expedientes artísticos como ao pensamento crítico
e teórico. Para desenvolver as abordagens Lehmann lança mão de um repertório bastante
híbrido de referências teóricas: formulações analíticas de Adorno articulam-se
com observações de François Lyotard sobre o sublime (Ibid., p. 68-69), e Georges
Bataille fornece elementos para uma complexa teia de conexões teóricas ligadas
à análise do obsceno (Ibid., p. 74). O olhar analítico do leitor é constantemente
atraído para a esfera do desvio e da discrepância, entendidos como sintaxe
análoga à das composições de John Cage: nestas, ao invés de canção, há ocorrências
sonoras acompanhadas pela atenção sensorial do ouvinte (Ibid., p. 70), sem que
isso caracterize um nexo combinatório capaz de articulá-las numa estrutura
orgânica de relações melódicas. É exatamente esse o efeito pós-dramático que
Lehmann postula e cuja eficácia (inclusive política) procura legitimar.
Sua proposta torna-se mais clara e
objetiva quando ele propõe a “desliterarização” radical das artes, defendendo a
ideia de que o teatro deve impregnar-se de processos tomados à performance, de
cujas descontinuidades ou opacidades representativas o livro faz indisfarçável
apologia. O efeito produzido é inequívoco: uma chamada estética de risco, capaz
de representar até mesmo “o mal que fascina”, é preconizada por Lehmann, o que
implica permissão para que o teatro corra o risco de violar o pudor, a
dignidade, a integridade do espectador (Ibid., p. 97). O foco da atenção do
leitor é direcionado para a forma como as aspirações e energias humanas são
investidas e despendidas através das obras. Esse é o mote para que, a seguir,
seja introduzida a categoria analítica que Lehmann designa de “dispêndio”. Com
base em Bataille ele defende, a partir dela, os dispêndios desligados da
“economia racional dos objetivos”, ou seja, assumidos como doação em si, pura e
simples (Ibid., p. 91).
O desenvolvimento dessa ideia aponta inequivocamente
para a relativização da natureza politizante do teatro, e ganha matizes
marcadamente religiosos quando Lehmann postula a “alegria da morte dionisíaca,
que transforma a caducidade da vida em intensidade” e que toma o estado do
imediato como possível fusão universal dos seres vivos (Ibid., p. 82).
Apesar de afirmar, com base em Bataille,
que a subsistência do valor humano está em sua capacidade de doação, Lehmann apressa-se
em frisar que essa ideia não envolve qualquer aplicação “útil” (Ibid., p. 94).
Mais uma vez aqui ele prepara o terreno para a etapa de análise que se segue,
em que os elementos políticos e historicizantes do teatro épico serão
sistematicamente relativizados, e a descontinuidade e a desconstrução de molde
pós-dramático serão valorizadas como expedientes fecundos para a representação
do mundo contemporâneo em todas as suas instâncias, inclusive a política.
Ao propor que o teatro mergulhe de
cabeça no que chama de estética do risco, Lehmann coloca-se abertamente contra
a preparação pedagógica da arte (Ibid., p. 104). O prazer revolucionário, seja o
figurado pelo teatro, seja o associado às ações políticas e militantes
propriamente ditas, é vinculado ao masoquismo, constituindo o que Lehmann
denomina uma “constelação motivacional” (Ibid., p. 121). Ao caracterizar o
prazer revolucionário como “inacessível” e “não submetido aos princípios da
autoconservação”, ele procura validar as associações que faz entre o masoquismo
e psicologia revolucionária (Ibid., p. 129). Expediente assemelhado é empregado
na passagem em que ele aponta uma “cumplicidade” entre uma consciência de cunho
iluminista, que procura presidir um destino encaminhando-o a um fim, e a
progressão histórica de fundo teleológico (Ibid., p. 152).
A culminação dessa linha de ideias
permitirá, mais adiante, que Lehmann classifique o teatro épico como “última
tentativa de salvamento da dramaturgia clássica” (Ibid., p. 226), embora ele próprio
evoque, paralelamente, a assimilação dos efeitos de distanciamento por parte da
mídia contemporânea (Ibid., p. 220).
Os raciocínios que fundamentam as
análises do teatro épico são invariavelmente validados por meio da
relativização: o épico é examinado com base em expedientes que atenuam a sua contundência
e efetividade política ou historicizante (Ibid., p. 227). Lehmann procura
imputar ao nome de Brecht um caráter de chancela que se sobrepõe aos próprios
textos que escreveu.
Paralelamente, a existência de um
“consenso” é invocada no que diz respeito à posição do dramaturgo alemão diante
dos partidos leninistas ou à sua suposta omissão no que se refere aos crimes de
Stálin (Ibid., p. 220). Esta colocação, particularmente, é digna de nota, já
que Brecht morreu precisamente no ano em que Krushev , por ocasião do Congresso do PC
Soviético, tornou públicos os crimes, os expurgos e o culto à personalidade que
haviam caracterizado o regime stalinista.
Lehmann interessa-se em constituir, a
partir de seu trabalho, a figura conceitual do que designa como um “outro
Brecht”, cujos traços procura expor e cujas vinculações procura estabelecer
para além da esfera épica do teatro dialético. Apoiando-se em um artigo de Hans
Henny Jahn [3], ele propõe o que se constitui, talvez, na mais contundente estratégia
argumentativa de todo o livro: a proposta de que a aproximação com o trabalho
brechtiano deixe de se realizar “pelo lado marxista”.
Jahn enxerga um Brecht “cético”, e
Lehmann aproveita a deixa para afirmar que o ceticismo é o estilo e o fermento
de toda a escrita brechtiana (Op. cit., p. 224). O trabalho brechtiano,
paralelamente, é ligado a conceitos e operações de pensamento de Artaud e de
Nietszche para que um “outro Brecht” se caracterize e seja legitimado nas argumentações
apresentadas.
O “outro Brecht”, para Lehmann, tem como
motivo central de seu trabalho a morte, o frio, o desaparecimento e a solidão.
É grande a exaustividade dos expedientes retóricos empregados, no livro, direcionados
no sentido de diluir as fronteiras conceituais entre o teatro épico e o pós-dramático
e de reforçar uma dimensão política latente neste (ou seja, no pós-dramático) para
descaracterizar a efetividade politizante naquele (ou seja, no teatro político
propriamente dito).
Lehman emprega uma imagem sugestiva ao
observar que eram íngremes e pouco explorados os caminhos pelos quais os
postulados de Brecht foram estabelecidos (Ibid., p. 226). O rendimento que
extrai dessa ideia, porém, atua como recurso para referendar a figura de um Brecht
aclimatado à agenda teórica pós-dramática: “somente onde a provocação é
suportada, não é evitada ou renegada, fica visível Brecht, que sempre foi o
outro do outro” (Loc. cit.).
O empenho reflexivo e analítico de
Lehmann é sem dúvida sedutor, numa primeira leitura, pelo fato de aparentemente
introduzir uma perspectiva nova para a recepção dominante do teatro dialético
de Brecht. É preciso observar, porém, que aos argumentos sobre o caráter
“obsoleto” ou “datado” do teatro brechtiano, que predominaram em décadas
anteriores, o trabalho do autor contrapõe um padrão de leitura do qual emerge,
ao final, um Brecht devidamente desbastado de seu vigor dialético. Precisamente
por se mostrar supostamente mais sensível à detecção de uma “autenticidade”
brechtiana, Lehmann introduz uma perspectiva analítica cujos efeitos tendem a
ser, ao mesmo tempo, mais sutis em seu modo de operar e mais penetrantes em
seus efeitos.
Como o assunto deste livro específico de
Lehmann é o teatro político, um dos recursos centrais utilizados consiste precisamente
em “des-epicizar” o épico de modo a ressaltar nele inusitadas afinidades com as
modalidades pós-dramáticas, e nestas, por sua vez, uma sensível latência e
eficácia na representação de aspectos verdadeiramente políticos.
Esta operação, que é realizada com diferentes
gradações ao longo de todo o livro, ganha mais evidência e objetividade na sua
parte central, quando Lehmann observa, por exemplo, que o teatro épico mantém o
conceito de fábula, o que o aproximaria, supostamente, do coração aristotélico do
teatro (Ibid., p. 227 ).
A peça didática representaria, no que se
refere à efabulação, uma provocação do exercício teatral, pois a fábula, nela, é
aberta a uma colaboração real de que participa o espectador (Ibid., p. 227-228).
O que interessa a Lehmann ressaltar a esse respeito é que a imprevisibilidade
acarretada por essa abertura participativa dá novo significado à linguagem
corporal e ao gesto, e este, por sua vez, confere poder de expressão a
conteúdos de caráter translinguístico.
Apesar da centralidade e da importância
do “gestus”, elemento fundamental da poética cênica do teatro de Brecht,
Lehmann apresenta o dramaturgo como “um artista da língua”, desejoso de
“literarizar” o teatro (Ibid., p. 228), mas consciente da existência de uma
realidade que “não pode competir com uma conceitualização, desde que pretenda
transformar de volta a experiência sensorial em certeza política” (Loc. cit.).
Com esse expediente, o “gestus” passa a ser visto como reconhecimento de uma
evidência alheia ao princípio constitutivo do teatro do dramaturgo. A índole do
teatro brechtiano, para Lehmann, seria residualmente aristotélica e literária:
aristotélica por preservar a fábula, literária por valorizar a linguagem verbal
e apenas secundariamente gestual e corporal por se dar conta da prevalência da
experiência sensorial, com a qual “não pode competir” (Loc. cit.).
O “Brecht de Lehmann”, se podemos
designar assim ao conjunto de aspectos que o teórico ressalta no trabalho
brechtiano, é apresentado, como “bússola” de pesquisas teatrais e paradigma do
teatro político por um lado, e como o incômodo dramaturgo que Lehmann taxa de
ideólogo e de simplificador (Ibid., p. 236). Lehmann constrói, no livro, uma
progressão de ideias em forma de espiral, revisitando o exame de aspectos anteriores
a partir de estratégias ou enfoques que vão progressivamente acrescentando-lhe
variações e dessa forma reiterando os pontos previamente discutidos.
Na verdade, são os elementos do teatro
pós-dramático e não os do teatro político que são reverenciados ao longo do
trabalho. Mesmo as passagens em
que Lehmann aparentemente se aproxima do teor de formulações
do próprio Brecht acabam funcionando, no livro, como variantes de validação de ideias
pós-dramáticas apresentadas anteriormente.
É à esfera teórica que Lehmann dirige o
grau maior de relativização da natureza épica e política em foco: para o
teórico os textos brechtianos poéticos e dramáticos devem ser tomados como
“corretivos” dos textos teóricos, já que apresentam, como ele frisa,
contradições produtivas e pistas em aberto (Ibid., p. 239).
Lehmann imputa a Brecht um desejo implícito
de salvar e preservar a fábula, e chega a designar o teatro brechtiano como
“the last minute rescue” da tradição aristotélica (Loc. cit.). Para o teórico,
a fábula não apresenta a “figura definitiva” evidenciada pelo material gestual (Ibid.,
p. 244). Ao apontar a relação não harmônica e assimétrica de tensão existente
entre fábula e gesto, Lehmann faz a balança mais vez pender no sentido da “des-epicização”
do teatro épico brechtiano, associando ao gesto, fragmentação e concretude, e à
fábula, totalidade e abstração (Ibid., p. 246). O princípio da fábula
pressupõe, para ele, uma realidade homogênea em que certas regras compreensíveis
dominam o mundo. A tensão apontada entre fábula e gesto representaria, por sua
vez, a possibilidade de encarar as peças de Brecht como “fábulas simuladas” (Ibid.,
p. 248).
É sensível, da parte de Lehmann, o
empenho analítico em associar o teatro brechtiano a uma racionalidade que a seu
ver é posta em xeque pela performance poética e teatral latente nas peças (Ibid.,
p. 249). Ao mesmo tempo em que credita a Brecht uma opção fundamental pelos
princípios racionais da fabulação e da representação, Lehmann volta a apontar no
trabalho do dramaturgo uma tendência “contra a fixação”, o que lhe permite
afirmar que as teorias e textos brechtianos são “fendas em aberto” (Ibid., p. 251)
e que mesmo nas peças canônicas de Brecht não existe positivação propriamente dita
(Loc. cit.).
O que Lehmann realiza, da parte central
do livro em diante, é justamente a tentativa de desmonte analítico do teatro
brechtiano para, na sequência, “remontá-lo” de outra forma, ou seja, uma forma mais
afim com a perspectiva de um teatro “pós-dramático” e desconstruído. Ao afirmar
que a função das pesquisas sobre Brecht na atualidade é a de investigar as
quebras conceituais que se apresentam em suas peças (Ibid., p. 251), o teórico
resume aquilo de que consiste, na verdade, o seu próprio procedimento analítico
a respeito.
Alguns expedientes mais específicos de
validação de sua perspectiva são aplicados a partir deste ponto. Nas peças didáticas
(lehrstücke), sobre cuja análise o
teórico propõe inúmeras reformulações, é ressaltada a “gênese dos motivos de
culpa” e a recorrência do motivo das viagens, associada, à ideia de
desalojamento e de interrupção (Ibid., p. 282).
A sintomática figura conceitual de uma
teoria “brechtnietzscheana” é criada e empregada por Lehmann na passagem em
que, ainda tratando das peças didáticas de Brecht, aborda a existência de um
“foco na culpabilidade” (Ibid., p. 286-287). Pode-se dizer que nesta passagem a
estratégia retórica em questão atinge um grau máximo de explicitação por
constituir um padrão de análise que se empenha em relativizar a eficácia de
representação do teatro épico e político em geral e do teatro brechtiano em
particular.
As formulações empregadas são extremamente
eficazes em suas estratégias e pressupostos, e por isso mesmo requerem de seus
interlocutores o exercício aplicado de uma atenção crítica constante. Ao fazer
do político o assunto central deste livro e ao se debruçar sobre ele aparentemente
sem o tom sumário de descarte que vigorou na maioria das abordagens até recente
data, as considerações de Lehmann parecem atender a uma demanda crescente de aprofundamento
de reflexões a respeito. Na verdade, porém, o que resulta da grande empreitada
reflexiva e argumentativa desenvolvida em seu livro é, basicamente, a
constituição de um repertório novo de estratégias de raciocínio que se mostram,
justamente, tão mais efetivas no descarte do teatro político quanto menos
explicitamente descartantes.
Perante os interessados em discutir os
desafios artísticos e críticos com os quais se confronta essa forma de teatro,
Lehmann se apresenta como um interlocutor de interesse não só por provir do contexto
de origem de Brecht, ou por se encontrar em contato constante com os principais
grupos e dramaturgos do teatro europeu contemporâneo experimental e político,
mas principalmente por colocar em foco, em suas reflexões, a dimensão política
da representação dramatúrgica e cênica.
No Brasil a circulação do trabalho de
Lehmann (não apenas este, mas também o anterior) coincidiu com o momento em que
se encontrava em curso o maior e mais efervescente movimento de teatro de
grupos que o país já conheceu. No bojo desse movimento a pesquisa em torno do
épico e do político tem caracterizado algumas das iniciativas mais prolíficas e
expressivas, seja no que se refere aos processos colaborativos de criação, seja
no âmbito da dramaturgia autoral.
Dentro desse contexto o debate acerca da
escritura política no teatro poderá ter, neste trabalho, um saudável
combustível de importantes discussões se seus pressupostos de análise forem
examinados e discutidos de forma crítica, fundamentada objetivamente no exame
das análises e argumentações nele apresentadas.
Se como afirma Lehmann é o princípio da
desmontagem (Ibid., p. 395) que configura o aspecto efetivamente político no
teatro brechtiano, é importante lembrar que as reflexões analíticas
desenvolvidas em seu livro, “Escritura política no texto teatral”, também
poderão ser submetidas a ele no interesse de um debate reflexivo e instigante.
Referências Bibliográficas
LEHMANN, Hans Thies. Escritura política
no texto teatral. Ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Büchner,
Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Müller, Schleef. Tradução de Werner Rotschild e Priscila
Nascimento. São Paulo: Perspectiva, 2009.
LEHMANN, Hans Thies. O teatro pós-dramático.
Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
___________________________
NOTAS
[1] Professora de Letras Modernas da
FFLCH-USP. É organizadora da coleção de peças de Oduvaldo Vianna Filho pela
Editora Temporal, de São Paulo. Autora de Oduvaldo Vianna Filho.
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1997, de Dramaturgia Comparada EstadosUnidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), entre outros trabalhos.
[2] Para uma
criteriosa análise crítica do conceito de “pós-dramático” formulado por
Lehmann, veja-se o trabalho de Agenor Bevilacqua Sobrinho, Atualidade/utilidade do trabalho de Brecht: uma abordagem a partir do estudo de quatro personagens femininas [A
mãe (1931), A alma boa de Setsuan (1938-1940), O círculo de giz caucasiano
(1943-1945) e O processo de Joana d'Arc em Rouen, 1431 (1952)]. São
Bernardo do Campo: Cia. Fagulha, 2016.
[3]
Hans Henny Jahn [1894-1959], dramaturgo alemão, autor de Pastor Efraim Magnus (1917).
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