“Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna
Filho: Perspectivas formais da representação sócio-histórica. Por Maria
Sílvia Betti
Rasga Coração (2007): Zécarlos Machado (Manguari) e
Pedro Rocha (Luca).
NOTA PRELIMINAR:
Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico
anterior, publicado entre 2010 e 2011 na Revista UniABC - Humanas,
publicação da UniABC. Essa Universidade encontrava-se então sob o controle
administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton,
criando assim a maior companhia de educação do mundo.
Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo
realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a
essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica
empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho docente.
A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem
a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma
luta continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo
exercido pelos professores em todos os seus níveis.
“Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna
Filho: Perspectivas formais da representação sócio-histórica [1]. Por Maria Sílvia Betti
[2]
Rasga Coração (1979): Tomil Gonçalves (Luca) e Raul
Cortez (Manguari).
Resumo
Este artigo discute a forma
dramatúrgica empregada na representação das transformações sócio-históricas e
das questões políticas da esquerda brasileira na peça “Rasga Coração”, de
Oduvaldo Vianna Filho.
Palavras-chave: Dramaturgia, teatro brasileiro, história, política.
Abstract
This article deals with the formal aspects in the representation
of social and historical transformations and of the conflicts of the Brazilian
left in Oduvaldo Vianna Filho’s play “Rasga Coração”.
Keywords:
Playwriting, Brazilian theater, history, politics.
Resumen
Este artículo discute la forma dramaturgica
empleada en la representación de las transformaciones socio-históricas y de las
cuestiones políticas de la izquierda brasileña en la pieza “Rasga Corazón”, de
Oduvaldo Vianna Filho.
Palabras-llaves:
Dramaturgia, teatro
brasileño, historia, política.
Proibida pela censura logo após ter sido
unanimemente classificada com o primeiro lugar no Concurso de Dramaturgia do
Serviço Nacional de Teatro, em 1974, “Rasga Coração”, último trabalho de Oduvaldo
Vianna Filho, passou a circular em edições mimeografadas clandestinas, e se
tornou o texto teatral mais lido e discutido nos setores ligados à cultura e ao
pensamento crítico no país. A expectativa em torno de sua liberação passou a
nortear a maior parte das discussões sobre o teatro e as perspectivas culturais
do país.
Tratava-se de uma peça que construía a
síntese épica de setenta anos da vida política do país, no século XX, a partir
da experiência das militâncias de esquerda, o que era sem dúvida uma empreitada
corajosa e inédita.
O movimento de cultura política popular anterior
ao golpe de 1964 havia sido brutalmente abortado pelas forças do regime
ditatorial instaurado, e a sensação generalizada entre os militantes dos
movimentos de esquerda era a de uma crescente falta de perspectivas. Logo após
o golpe, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) havia passado a ser considerado
responsável pelas ilusões políticas que haviam criado condições para o golpe.
Com isso, rachas e dissidências passaram a ocorrer mesmo entre alguns de seus
quadros históricos. Paralelamente, o grande impacto gerado pela Revolução
Cubana, de 1958, havia passado a motivar uma crescente articulação de
organizações de luta armada, atraindo até mesmo militantes de longa data do PCB
como Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira [3].
A situação de Vianna diante desse
contexto não era tranquila ou confortável: mesmo tendo ele, em momentos
anteriores, adotado posições que divergiam das preconizadas pelo Partido, sua
empatia com a velha guarda militante jamais sofrera abalo de qualquer natureza.
Isso contribuiu para que, dentro do debate cultural da época, Vianna nunca
tenha deixado de ser identificado aos que se alinhavam com as teses do PCB e
nunca tenha sido poupado por todos os que criticavam o partido.
O meio teatral propriamente dito não se
mostrou menos difícil para Vianna como autor nos anos que se seguiram ao golpe:
se o show “Opinião” (de 1964) e a peça “Se correr o Bicho pega, se ficar o
Bicho come...” (de 1965) haviam tido êxito de público e de crítica, espetáculos
pouco posteriores e que empregavam recursos análogos, como “Meia volta vou ver”
(de 1966) e “Dura Lex, sed Lex, no cabelo só Gumex” (de 1967), acabaram ficando
aquém da receptividade esperada de público.
Entre 1965 e 1968, Vianna escreveu três
peças que apontavam e discutiam as contradições políticas e históricas do país
por meio da linguagem épica, de simultaneidades de tempo e espaço e de técnicas
dramatúrgicas pouco frequentes, até então, na dramaturgia brasileira: “Moço em
Estado de Sítio” (de 1965), “Mão na luva” (de 1966) e “Papa Highirte” (de
1968), que recebeu o primeiro prêmio no Concurso Nacional de Dramaturgia do SNT
nesse mesmo ano.
O veto sumário da censura recaiu sobre
“Moço em Estado de sítio” e sobre a premiada “Papa Highirte”, peças em que as
questões políticas recentes eram centrais. “Mão na luva”, por sua vez, teve um
destino diferente do da maioria dos trabalhos de Vianna: ao invés de colocá-la
em discussão com seus companheiros e interlocutores, como habitualmente fazia,
Vianna guardou-a entre seus escritos sem compartilhá-la, e o texto só veio a
ser publicado postumamente, na antologia “O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho”,
organizada por Yan Michalski no décimo aniversário da morte do dramaturgo, na mesma
época da publicação da edição antológica de seus textos ensaísticos organizada
por Fernando Peixoto [4].
Apesar
das proibições sucessivas pela censura, Vianna conseguiu ter cinco peças
encenadas entre o início da década de 1970 e o ano de sua morte: na seara do cômico,
“Mamãe, Papai está ficando roxo” (de 1972) e “Allegro Desbum” (de 1972-73), que
procuravam um novo ângulo crítico para a comédia de costumes, com a qual Vianna
tinha grande familiaridade; no campo dos dramas sociais, o monólogo “Corpo
a corpo” (de 1971) e o drama familiar “Nossa vida em família” (de 1972), que
tratavam das contradições da classe média urbana cooptada pelo próprio sistema
que a explorava e esvaziava sua vida de sentido; e finalmente “A longa noite de
Cristal” (de 1970, encenada em 1973), que colocava pioneiramente em foco a
manipulação de interesses no meio televisivo, dentro do setor dos noticiários
políticos cotidianos sob a ditadura. Essas peças, mesmo empreendendo um
diagnóstico crítico bastante profundo dos impasses e angústias da classe média,
passaram pelo crivo da censura e permitiram a Vianna voltar a ter trabalhos
encenados.
Os trabalhos desenvolvidos no CPC
anteriormente, como “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (de 1960-61), “Brasil
versão brasileira” (de 1962), “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os
Benevides” (de 1963-64), ou mesmo as criações imediatamente posteriores ao
golpe, como “Opinião” e “Se correr o Bicho pega...”, tinham avançado
significativamente na representação crítica das relações entre as classes e das
questões socioeconômicas mais amplas.
As peças do período seguinte ao golpe,
por sua vez, haviam passado a fazer a discussão crítica das contradições e
cooptações da classe média sob a ditadura, tarefa que se impunha com urgência diante
das próprias circunstâncias políticas do país: afinal, essa classe havia, em
larga medida, apoiado as forças golpistas, tendo tido, assim, papel decisivo
nos rumos políticos do país e na instauração do regime civil militar.
No período seguinte ao golpe, metáforas
e alegorias lítero-musicais representando o alinhamento dos setores progressistas
da sociedade haviam sido calorosamente acolhidas pelo público, trazendo assim
algum alento por meio de espetáculos como o show “Opinião” e “Liberdade, liberdade”.
Após a decretação do AI-5 (Ato Institucional número 5, de 1968), porém, com a
implantação da censura prévia, a utilização desses recursos se tornou inviável.
Vianna teve sempre clara consciência a
respeito das condições concretas que se colocavam para seu trabalho, e embora
nunca tenha manifestado qualquer repúdio ao teatro comercial como horizonte de
trabalho, conhecia perfeitamente as limitações inerentes a ele e as restrições implicadas
em suas perspectivas de criação e de pensamento crítico. Já no programa da
montagem de “Dura Lex sed lex, no cabelo só Gumex”, de 1967, ele havia apontado
a necessidade que sentia de ir além do caráter de urgência com que havia sempre
trabalhado até então. O rigor da autocrítica levou-o a desmerecer o próprio
valor artístico dos trabalhos que havia realizado “na boca do cofre”,
como escreveu no programa de “Dura lex...” referindo-se a circunstâncias que
demandavam um rápido poder de resposta e de reflexão diante de fatos políticos
e situações históricas que se apresentavam.
Esse pode ter sido o primeiro passo dado
por ele na procura de um método diferente de trabalho, capaz de lhe permitir
pesquisar e depurar o material histórico concretamente representado, como viria
a fazer, posteriormente, em “Rasga Coração”.
As questões centrais ligadas à gênese de
“Rasga Coração” não se separam do olhar afetivo, mesmo quando crítico, que
Vianna lançava sobre a posição do PCB. Ele próprio, como autor, via-se
crucialmente premido entre a perseguição movida pelos órgãos de repressão por
um lado e a crítica de outros setores da esquerda, por outro.
A conjunção de circunstâncias de sua
vida pessoal com alguns acontecimentos do contexto artístico e cultural do país
foi decisiva para o recorte histórico dado por ele à peça: em 1972 morrera
Oduvaldo Vianna (seu pai, ligado por laços de amizade e por afinidade política
aos quadros mais tradicionais do PCB); aproximadamente na mesma época Vianinha
começou e se ver diante dos efeitos da entrada de seu filho primogênito na
adolescência, marcada pela contestação das escolhas partidárias e da linha
política da família. Não é mero detalhe, portanto, o fato de Vianinha, num
pequeno prefácio à peça, apresentá-la como homenagem à velha guarda partidária
que conhecera desde a infância na casa paterna, e logo a seguir dedicá-la
precisamente ao filho primogênito que o questionava.
No campo da cultura em geral e do teatro
em particular, a articulação da Tropicália entre 1967 e 1968 e a ascensão da
contracultura, nos anos 1970, tinham vindo colocar-se na contramão do trabalho
praticado pelos dramaturgos e grupos teatrais de esquerda. Desde os seus
primórdios a Tropicália vinha questionando os liames que eventualmente ligassem
os espectadores ao mundo das instituições, e entre estas incluía-se a
participação na militância política partidária.
Em 1972 estreou em São Paulo o
contundente e transgressivo “Gracias Señor”, criação coletiva do Teatro
Oficina. O espetáculo apoiava-se, como Vianna observou em uma de suas últimas
entrevistas, na ideia da morte do teatro, ou pelo menos na do desaparecimento
dos parâmetros pelos quais o teatro vinha sendo praticado, com base no trabalho
dramatúrgico e interpretativo e na separação entre artistas e público.
No mesmo ano, prefaciando a publicação
de “Corpo a corpo” pela Revista da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais), Vianna manifestou-se especificamente sobre a crescente multiplicação
dos espetáculos e grupos identificados a essa linha: o extraordinário vigor
humano detectado em trabalhos desse tipo parecia-lhe empenhado principalmente
na intimidação do público e na negação de qualquer valor ou sentido que pudesse
ser atribuído a outra forma de existência que não a do artista transgressor no
palco, confrontando e desafiando o espectador de classe média, um ser visto
como medíocre e confinado numa existência sem sentido.
Dentro desse contexto, o interesse de
Vianna volta-se para o campo diametralmente oposto, ou seja, o das lutas
anônimas dos pequenos militantes do PCB, premidos pelas questões domésticas,
pela necessidade de sobrevivência, pelas mazelas pessoais e por um cotidiano
obscuro e cheio de dificuldades.
Abordar o coletivo de militantes que
aplicavam suas vidas nas tarefas partidárias era assunto praticamente inédito no
teatro brasileiro. Para representá-lo era preciso investigar as marcas das
transformações e das lutas históricas deixadas em seu cotidiano. Era preciso,
ainda, depurar criteriosamente o material em bruto da vida desses cidadãos sem
pretensas grandezas, e registrá-lo, dentro do possível, a partir da
documentação e da iconografia levantada a partir de anúncios de bonde, reclames
de jornais, panfletos, tabloides, pregões, dizeres populares e registros
sonoros dos primórdios do rádio.
O mergulho histórico de Vianna nesse
farto e diversificado material permitiu-lhe flagrar, registrar e discutir
dramaturgicamente algumas das principais transformações sociais e históricas do
país ao longo do século XX.
O cerne narrativo central de “Rasga
Coração” apoia-se num arcabouço dramático que enfoca as relações e os
enfrentamentos de três gerações sucessivas à luz das questões políticas e das
transformações sociais do país: Custódio Manhães, funcionário público
significativamente apelidado de Manguari Pistolão, tem 57 anos e é militante do
PCB desde a sua juventude. O empenho nas tarefas partidárias e nas lutas
políticas levou-o a adiar sucessivas vezes o momento de se tornar pai, o que
fez que sua mulher, Nena, se submetesse a uma série de abortos: o filho Luca,
de dezessete anos, havia nascido apenas em 1954, quatorze anos após o casamento
dos pais.
Manguari tem um salário modesto e mora
com a família num apartamento pequeno e antigo no bairro de Copacabana, no Rio
de Janeiro. Apesar das dificuldades financeiras ele sonha em ver o filho formado
em medicina, e economiza o que pode para, um dia, custear um consultório bem
montado para o rapaz. Sua maior expectativa, porém, é a de politizar o filho,
ou seja, sensibilizá-lo para as questões da luta política e da militância
partidária de esquerda dentro do PCB.
Luca, adepto convicto de hábitos e
preceitos associados à contracultura e ao orientalismo, não tem grande sintonia
com as questões políticas das quais trata seu pai, mas uma circunstância
inusitada o leva, subitamente, a envolver-se em uma grande mobilização coletiva
dos alunos do Liceu Castro Cott, onde estuda: a proibição sumária do uso de cabelos
longos e em estilo hippie pelos alunos no interior da escola.
A atitude autoritária da direção e as
implicações dela levam Manguari a acreditar que está diante da oportunidade
ideal para a tão esperada iniciação política do rapaz. Entusiasmado, ele imediatamente
se põe a esboçar planos de ação e esquemas táticos para a luta dos estudantes
rebeldes, e transmite-os ao filho.
Num primeiro momento, Luca se mostra
receptivo às estratégias de ação apresentadas pelo pai, mas, ao se colocar como
porta-voz delas na assembleia com os demais estudantes, sofre o impacto da
crítica contundente feita por sua colega e namorada Milena, e revê
imediatamente as posições que havia acabado de defender. O plano tático que
apresenta é acusado de ser reverente em excesso com as instituições e
desprovido de combatividade: um “plano de calça arriada”, nas palavras
da moça. Ao voltar para casa, Luca demonstra ter assimilado ponto a ponto a
crítica que ouvira e que agora repete, deixando Manguari perplexo e indignado.
Dispostos a adotar uma linha radical e a
partir para a ação, os alunos votam pela invasão do colégio. O confronto com os
inspetores de disciplina os expõe à violência repressiva da escola: Luca é
ferido e expulso, e várias semanas se passam sem que o rapaz vislumbre qualquer
saída para sua situação. O vestibular se aproxima, mas ele não poderá
prestá-lo, já que não conseguiu concluir as provas do ensino médio.
Uma visita súbita vem tirá-lo do
marasmo: Camargo Moço, aluno de outra unidade da mesma escola e sobrinho de
Camargo Velho, antigo companheiro de lutas políticas de Manguari, lhe traz a
notícia de um frei dominicano disposto a acolher, no colégio que dirige, os
estudantes expulsos do Liceu Castro Cott, para que possam fazer as provas
finais e prestar o vestibular. Manguari, Nena e Camargo Moço estão eufóricos
com a possibilidade surgida com a iniciativa do frei de ideias libertárias.
Luca, porém, mostra-se refratário e comunica, um tanto constrangido, que não
prestará o vestibular, pois não deseja qualificar-se dentro de um sistema que
repudia.
O tempo para a tomada de qualquer
decisão é curto e a sequência dos acontecimentos traz novas complicações:
embora a unidade do Liceu Castro Cott onde estuda Camargo Moço, no bairro do Meyer,
não tenha aderido ao movimento contestatório, o rapaz é denunciado à direção
por ter apoiado os rebeldes, e acaba cogitando se Luca teria sido o autor da
denúncia. Manguari inquire vigorosamente o filho a esse respeito. Luca irrompe
em pranto negando a delação, e o pai prontamente assegura sua inocência a
Camargo Moço.
A tensão crescente entre as posições de
Manguari e de Luca chega a seu ápice quando o rapaz explode em críticas ao pai
e à perspectiva de luta política que ele abraça. Manguari replica com
virulência e Luca retira-se. A ruptura entre ambos é inevitável, e Luca
prepara-se para deixar a casa dos pais. No momento da despedida, ao final, sob
os apelos doloridos de Nena, Manguari mantém-se impassível, e dá sequência aos
contatos telefônicos de rotina para o agendamento das reuniões e tarefas
partidárias.
A partir desse cerne central do presente
dramático, “Rasga Coração” desdobra outros planos espaço-temporais com
situações e ações representativas de momentos histórico-políticos do passado,
compreendidos entre a Revolta da Vacina, de 1904, a Campanha pela Petrobrás, no
início dos anos 1950, e o contexto da ditadura militar, no início da década de
1970. Na maioria das vezes esses desdobramentos se materializam em cena a
partir do fluxo de memória de Manguari; em outras ocorrências, porém,
elas eclodem em plano simultâneo ao do presente sem qualquer liame
rememorativo, e frisam, ora por contraste e ora por semelhança, a natureza
das experiências históricas, afetivas ou políticas vivenciadas pelas diferentes
gerações.
A ordem das situações passadas
presentificadas em cena nunca é a cronológica. A iluminação se encarrega de
diferenciar as épocas, e a intercalação de canções serve para criar e ilustrar
a atmosfera sócio-histórica relacionada a cada uma delas. Logo na abertura o
refrão da valsa-título, “Rasga Coração”, de Anacleto de Medeiros com letra de
Catulo da Paixão Cearense, é cantado com a presença em cena de todas as
personagens. A apresentação de cada uma delas, a seguir, também é apoiada em
recortes musicais ilustrativos: o integralista Castro Cott apresenta-se fazendo
a saudação típica (“Anauê!”) ao som do hino “Avante”, composto por Plínio
Salgado em 1932 [5]; o pai de Manguari, fiscal das Brigadas Sanitárias
pitorescamente identificado pelo número 666 (o número da besta, no texto do
Livro do Apocalipse), é apresentado ao som de “Rato, rato, rato”, polca de 1904
[6]; Camargo Velho, companheiro de militância política de Manguari,
apresenta-se com o Hino a João Pessoa, de 1930 [7], e Lorde Bundinha, impagável
companheiro boêmio de Manguari, ao som do “Corta-Jaca”, gravado sucessivas
vezes entre 1904 e 1908 [8].
Ao longo da peça, a música demarca e
comenta, por contraste, por paródia ou por associação de ideias e imagens, os
momentos de transição histórica: Manguari e Lorde Bundinha, nos anos 1930,
ganham seu parco sustento vendendo partituras de modinhas pelas ruas do Rio, e
aparecem entoando “Noite cheia de estrelas”, valsa romântica de Cândido das
Neves” (de 1932 [9]); Bundinha é exímio dançarino de tango, gênero que teve sua
época áurea entre os anos 1920 e 1930, mas entoa paródias políticas de
marchinhas carnavalescas como “Grau Dez”, de Lamartine Babo (de 1934) [10], e
“Linda Lourinha”, de João de Barro (de 1935) [11] ; Manguari, que na juventude
chegou a sonhar com uma carreira de cantor de rádio, relembra a valsa
“Fascinação” [12], que consagrou o cantor Carlos Galhardo em 1943.
O fio histórico que perpassa a estrutura
de “Rasga Coração” representa um corte transversal ao longo de setenta anos da
vida do país sob o prisma das lutas políticas travadas pela esquerda —
entenda-se que a esquerda, no caso, é vista a partir do percurso do PCB,
personificado na perspectiva de Manguari Pistolão, o protagonista, e de seu
camarada Camargo Velho, que abrira mão da própria juventude em prol do empenho
pela luta política dentro do partido.
A peça acompanha o processo de declínio
das oligarquias rurais e da Primeira República, no início do século XX, a crise
de 1929, a ascensão do Tenentismo em meados dos anos 1920, a queda de
Washington Luís, em 1930, o Estado Novo, instituído em 1937, a chamada Intentona
Comunista, de 1935, o Levante Integralista, de 1938, o processo de
industrialização nos anos 1940, a implantação das leis trabalhistas, a campanha
pelo petróleo, no início da década de 1950 e, finalmente, a época da ditadura
militar e da contracultura na década de 1970.
O foco crítico incide sempre, durante
toda a peça, sobre as camadas médias da sociedade: logo no início, Camargo
Velho, Manguari e o próprio Lorde Bundinha aparecem usando o lenço vermelho
associado ao movimento dos Tenentes. A cena seguinte apresenta a referência à
queda de Washington Luís, em 1930, data que assinala o fim da República Velha e
a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. O choque entre um modelo agrário de país
e outro, industrializado e tecnicista, se constrói no diálogo entre 666, que
lamenta a “carestia” dos novos tempos, e Manguari, que se entusiasma com as
perspectivas de mobilização que entrevê no processo de crescimento industrial.
Não é mera coincidência que essa cena seja, justamente, precedida por outra, no
presente, em que Manguari revela sua preocupação com os gastos mensais da
família, e com a dispendiosa alimentação macrobiótica do filho.
Igualmente significativo é o fato de
Castro Cott, integralista ferrenho dos anos 1930, apresentar-se transformado,
no plano do presente, no diretor do Liceu onde Luca estuda. Em várias obras de
Plínio Salgado [13], fundador do integralismo, a educação é definida como um
esteio importante do movimento. A tríade “Deus-Pátria-Família”, norteadora dos
setores da classe média que apoiaram o golpe militar de 1964, também tem claras
raízes no ideário integralista. Dentro da tessitura histórica da peça é
emblemático o alinhamento de 666 à milícia integralista comandada por Castro
Cott. O recorte histórico frisa o caráter regressivo do pensamento econômico
dos integralistas (e de Plínio Salgado, em particular), apoiado numa
idealização da tradição ruralista brasileira [14].
O integralismo tinha fortes raízes nas
Ligas Nacionalistas da República Velha, e apresentava um caráter de resposta
conservadora ao socialismo libertário que começava a crescer entre as massas
operárias [15].
666 sonha encaminhar Manguari para um emprego
no Serviço de Endemias Rurais, e irrita-se com as ideias políticas do rapaz,
que atua no movimento operário e nas lutas trabalhistas ao lado do companheiro
Camargo Velho.
Com a industrialização promovida a
partir da ascensão de Vargas, o país passava a enfrentar as questões sociais e
econômicas das sociedades urbanas e capitalistas. O tenentismo, que havia
apoiado o governo provisório instalado em 1931, dissolvia-se: o Clube 3 de
Outubro, sede dos “tenentes”, foi fechado em 1935.
O recorte histórico da peça põe em cena
desde o início o conjunto das forças sócio-políticas desse momento: Castro
Cott, imbuído de exacerbado civismo, faz a saudação integralista “anauê”
enquanto 666 cultiva o sonho de um Brasil agrícola e Camargo Velho procura
esconder-se após o fechamento do Clube 3 de Outubro, sede dos tenentes
conflagrados.
Embora esse fechamento tenha sido
deliberado pelos próprios membros, a questão representada na peça através do
percurso político de Camargo Velho é a das opções táticas do Partido Comunista
como entidade estruturada, apoiada na organização, na disciplina e nos esquemas
de ação fundamentados em análises conjunturais.
Não casualmente Camargo Velho é o jovem
que abdica de viver sua própria mocidade em prol da luta política: seu modelo
para a militância é o soviético, inspirado no “camarada Stálin”, e sua frente
de luta dentro do Estado Novo é a da coalizão dos setores de esquerda: a
Aliança Nacional Libertadora e o Partido Comunista Brasileiro.
A trajetória de Camargo Velho na peça apoia-se
claramente na figura de Luís Carlos Prestes [16], fundador do PCB, apresentado
desde a participação no movimento dos tenentes até as lutas dentro do próprio
Partido nos contextos políticos das décadas de 1940 em diante.
Um dos principais focos críticos dentro
da tessitura histórica de “Rasga Coração” recai precisamente sobre a constituição
de alianças de apoio a movimentos revolucionários: tanto no tenentismo como no
movimento de 1935, a opção por alianças táticas teve grande poder de
determinação sobre os objetivos atingidos.
A nação aparece, simbolicamente, como
resultado do alinhamento de diferentes setores sociais. Inúmeras vezes, em
momentos políticos cruciais, Camargo Velho aparece empunhando a bandeira
nacional, conclamando as massas à luta e anunciando a vitória iminente. A
repetição dessa imagem e sua entusiasmada exortação produzem, a cada
ocorrência, o efeito crescente de um alerta crítico.
Também a rebelião dos estudantes contra
o conservadorismo do Liceu Castro Cott é vista de forma crítica: o ponto em
questão refere-se à estratégia política das alianças, e transparece claramente
no questionamento agudo feito por Milena à manifestação de solidariedade de
Camargo Moço, externo ao movimento, mas mobilizado pela convicção política.
Vianna utiliza-se da transversalidade
histórica dos tempos e das questões políticas representadas para constituir, na
contraposição deles, o caráter dialético da reflexão e o foco crítico sobre os
processos históricos envolvidos. Mais importante do que aquilo que cada cena,
personagem ou situação apresenta sobre cada determinado problema é aquilo que a
tessitura do conjunto apresenta e revela. Não são apenas os elos concretos e
ilustrativos entre os tempos e as experiências que contam: são também, e
principalmente, as elipses e os paradoxos entre semelhanças e os antagonismos,
verdadeiros ou falsos.
O nervo histórico da questão das
alianças e pactos entre setores sociais vinha sendo exposto por Vianna desde
“Brasil versão brasileira”, de 1962, de “Quatro quadras de terra” e “Os
Azeredos mais os Benevides”, de 1963, do show “Opinião”, de 1964, e de “Moço em
estado de sítio”, de 1965.
Também peças como “Mão na luva” (de
1966) e “Corpo a corpo” (de 1970) discutiam o significado político dos
princípios de “solidariedade” e de coalizão entre classes, ainda que o fizessem
com o foco centrado em personagens de classe média, e não no grande conjunto
das forças históricas do país.
Do ponto de vista do olhar histórico
lançado sobre os movimentos das esquerdas, esta escolha trouxe a Vianna
desafios importantes do ponto de vista da forma, e foi fundamental para o uso
do épico como base para a estrutura formal em “Rasga Coração”. Afinal, só seria
possível chegar ao âmago desejado de questões como as abordadas através de
mecanismos formais que transcendessem o patamar dos conflitos intrafamiliares e
interpessoais, e que permitissem colocar em foco a tessitura histórica e a
experiência política presente nas experiências e ações representadas. O eixo recortado
de tempos e de situações desempenha, na peça, uma função épica por excelência,
colocando no epicentro da matéria figurada os processos históricos e as
transformações políticas.
A leitura histórica do país construída
em “Rasga Coração” fundamenta-se na ideia exposta por Vianna no pequeno texto
de apresentação da peça: o “novo” não é necessariamente revolucionário, e o
verdadeiramente revolucionário não é necessariamente “novo” em suas estratégias
e metas. O “velho” de hoje e o “novo” de ontem relacionam-se num jogo temporal
de simultaneidades e de sequências cênicas, ora aproximando-se pela analogia,
ora distanciando-se pelas contradições: Manguari é surpreendido por Luca, no
plano do presente, enquanto espia a nudez da vizinha pela janela; em plano
paralelo, no passado, é ele próprio, adolescente, que surpreende o pai com uma
mulher nua em pleno expediente das Brigadas Sanitárias.
O contraponto histórico de
comportamentos e atitudes repete-se quando, no presente, Nena escandaliza-se
com a tranquila liberdade sexual de que desfrutam Milena e Luca em seu próprio
apartamento; no plano do passado, em paralelo, ela própria e o jovem Manguari
são os flagrados em nervosa intimidade sexual, para escândalo e indignação do
falsamente moralista 666.
Ao longo da peça as ocorrências deste
recurso se multiplicam. O efeito que se produz, via de regra, é o de um olhar
crítico sobre o liame que se apresenta entre o sentido político contido nas
experiências das diferentes gerações. A concatenação dramatúrgica e cênica
evidencia continuidades e ligações, no plano sócio-histórico, precisamente onde
o pensamento dominante costuma apontar fragmentações e descontinuidades.
Ao mesmo tempo, a efetividade e as
implicações das eventuais rupturas que se apresentam são postas em foco e
examinadas: Luca, no presente, volta da escola com o rosto ensanguentado após
ser agredido por um inspetor de alunos; no passado, em paralelo, é Manguari que
retorna em estado deplorável à pensão após ter sido espancado por uma milícia
de “galinhas verdes” (integralistas). No passado, já em plena era getulista,
Manguari recusa rispidamente a ajuda pedida por Bundinha para formar o elenco
de um musical que poderá trazer-lhe algum alento financeiro: para Manguari, o
que o amigo lhe pede são os seus princípios, já que o musical a ser apresentado
apoia Getúlio. Em cena simultânea, no presente, é Manguari que faz a Luca uma
proposta comprometedora: a de alegar que atua profissionalmente em um conjunto
de rock para ser liberado do corte obrigatório de cabelos no Liceu
Castro Cott.
Embora algumas vezes o passado irrompa
em cena a partir da carga associativa das lembranças de Manguari, como já
observamos anteriormente, o contraponto cênico de acontecimentos é exterior à
sua subjetividade, e se apresenta como um eixo épico que estrutura e propele o
desenrolar dramatúrgico do material figurado. Manguari e Camargo Velho chegam à
pensão trazendo carabinas embrulhadas, no contexto histórico de 1935. Nesse
mesmo plano histórico Castro Cott e 666, em cena simultânea, embrulham armas e
punhais, envolvidos que estão com a articulação armada das forças
integralistas. Em paralelo, no plano do presente, os estudantes estão reunidos
em assembleia: Milena e Camargo Moço defendem posições representativas,
respectivamente, da esquerda armada (defesa da ação direta desencadeada por
vanguardas revolucionárias), e da militância pecebista (crítica à atuação de
grupos de elite e defesa do alinhamento estratégico de setores mais amplos da
sociedade). A peça atinge, nesse momento, o ponto central da figuração
sócio-histórica das forças políticas em atuação no país.
A ironia é o recurso estrutural que
norteia as relações construídas entre os diferentes momentos históricos e as
experiências das personagens. Seu efeito principal é o de fazer que o foco da
atenção recaia não sobre a substância individual das ações representadas,
mas sobre o fio histórico que correlaciona e compara os mecanismos de
atuação e de pensamento de diferentes gerações em diferentes momentos do
processo histórico.
O
uso estrutural da ironia produz um efeito importante, também, na relação entre
a matéria histórica representada na peça e os acontecimentos políticos dos anos
que se seguiram a sua criação: não deixa de ser irônico assistir ou ler a
exortação de Camargo Velho aos camaradas das lutas sindicais no passado (década
de 1930) tendo presenciado a erosão das bases sindicais do PCB, em curso já no
final dos anos 1970. Igualmente irônico é o fato de a liberação da peça ter
acontecido, não casualmente, no período em que o Ato Institucional n. 5 e a
decretação da anistia viriam abrir uma fase de delicadas disputas internas [17]
que precede o período derradeiro de vida do PCB.
A figuração da matéria histórica na peça
transcende o microcosmo das relações domésticas e do cotidiano, mas o faz sem
permitir, porém, que eles desapareçam de cena, e sem sufocar neles a substância
reveladora que apresentam para a representação da grande tessitura épica
desejada por Vianna.
O contraponto cênico entre os tempos tem
natureza essencialmente política no efeito que produz, ressaltando as
implicações e contradições das experiências das diferentes gerações
representadas dentro dos diferentes planos temporais em cena. Esse recurso
permite, ainda, quebrar o que poderia de outra forma ser erroneamente entendido
como um mero determinismo entre passado e presente, baseado numa suposta crença
na ideia de que o passado determina o presente, que por sua vez repete, com
poucas variações, as percepções e experiências sócio-históricas anteriores.
Se algo efetivamente se repete do
passado para o presente, a repetição não resulta do que possa ser considerado
“natural” e intrínseco às diferentes gerações; resulta, antes, dos pontos de
estrangulamento e das contradições impostas pelas formas sociais de pensamento
e de convívio estabelecidos.
O mesmo sistema social que levara Nena e
Manguari a tentarem nervosamente afrontar a repressão de costumes leva Nena,
décadas depois, a sentir-se agredida pela liberdade sexual de que usufrui seu
filho. O foco recai no mecanismo histórico figurado, não no suposto
determinismo entre uma atitude passada e uma presente, e nem tampouco, na ação
volitiva e individual das personagens envolvidas. O que se coloca é, antes, o
paradoxo evidenciado na repetição e na contradição entre os comportamentos e
reações. Se há eventualmente repetições ou redundâncias entre passado e
presente, há também e principalmente paradoxos e contradições, e é a eles,
particularmente, que a peça dirige seu foco.
As personagens não determinam os
processos de ação ou os padrões de pensamento que as envolvem: a força das
grandes estruturas sociais e ideológicas instituídas as leva de roldão. A teia
de relações e de afetos que elas constroem se fragiliza e se rompe em momentos
cruciais, levando ao limite a sensibilidade que as personagens potencialmente
possam ter para perceber de forma crítica a sua condição.
Via de regra as personagens não percebem
com clareza as contradições que as aproximam ou distanciam, absorvidas que
estão com suas próprias questões e enfrentamentos. Enxergá-las é tarefa
facultada ao espectador, que olha de fora e vê o conjunto dinâmico de imagens e
ações.
O olhar do espectador sobre o torvelinho
dos acontecimentos incide sobre o quadro mais amplo do processo histórico
figurado na urdidura das situações. Tudo o que vê lhe é familiar, ainda que
enfocado à luz de consideráveis pontos de estrangulamento: Luca sensibiliza-se
com as questões ambientais e comportamentais inerentes ao capitalismo, mas não
consegue perceber a dimensão política da luta cotidiana de seu pai. Manguari
compadece-se diante da opressão e da solidão dos trabalhadores em canteiros de
obras pela cidade, mas não se dá conta da solidão de Nena a seu lado, e nem do
caráter autoritário da relação que mantém com ela. Como lutador e militante ele
critica o equívoco político que detecta na opção contracultural da geração de
Luca, mas sua reação a ela se dá no plano das relações puramente familiares e
pessoais. O hedonismo hippie assumido por Luca parece-lhe ter forte
analogia com a boêmia anárquica de Lorde Bundinha no passado. No entanto, a
irreverência malandra de Bundinha, amigo inseparável da mocidade, é lembrada
carinhosamente em suas noites insones, fustigado pela artrite, ao passo que a
decisão de Luca em romper com as expectativas paternas é dolorosamente recusada
e torna-se o estopim da ruptura que se dá ao final.
Se distanciar é ver em termos
históricos, “Rasga Coração” representa um passo fundamental na figuração
dramatúrgica e na leitura crítica do processo histórico do país. A peça avança
significativamente para muito além da própria meta estabelecida por Vianna, de
resgatar a importância da luta cotidiana dos pequenos militantes anônimos do
PCB: ela discute, com complexidade e pertinência formal, a dialética das
questões macro-históricas e das transformações registradas no processo de
ascensão e consolidação do modelo de capitalista no país.
Não casualmente a criação do texto se
deu num momento crucial da história da esquerda no país. Concluída em 1974,
“Rasga Coração” é poucos anos anterior ao início da articulação do Partido dos
Trabalhadores, fruto da organização de setores de ponta do capitalismo que
contaram com o apoio tanto de organizações de esquerda revolucionária como de
setores da intelectualidade progressista.
O PT logo se definiria como uma
alternativa situada, no contexto da década seguinte, à esquerda do PCB, com a
defesa de um oposicionismo que repudiava a ideia de ocupar “brechas” oferecidas
pelo sistema e via como reformistas as posições que os pecebistas defendiam.
É significativo, na peça, que Camargo
Moço seja apresentado como o sucessor e herdeiro potencial tanto da militância
do tio, Camargo Velho, quanto das posições do próprio Manguari, a quem admira.
A convicção política de Vianna revigora a opção do ativismo associado à
personagem, fazendo do “Moço” Camargo o continuador do “Velho”, e realizando a síntese
de um “novo” que deseja também ser revolucionário.
É igualmente decisivo o tratamento dado
às posições figuradas através de Luca (a contracultura ligada ao orientalismo e
à ecologia) e de Milena (a opção pela ação direta da esquerda armada). Como o
Lúcio de “Moço em Estado de sítio”, Luca foge ao enfrentamento diante das
forças da repressão. Milena, a única personagem dotada de contundência crítica
e articulação diante do pensamento de Manguari e de Camargo Moço, desaparece
sintomaticamente do solo histórico representado, entregue à própria sorte. O
rompimento final entre pai e filho constrói, na imagem cênica da despedida do
rapaz, a representação simbólica do coração nacional que se rasga.
Para quem a assiste ou lê nos dias
atuais, “Rasga Coração” faz pensar no quanto a sucessão posterior de
transformações conjunturais e políticas vividas pelo país acrescentou de
trágica ironia a essa imagem: basta lembrar, por exemplo, das recorrentes
interpretações sociológicas e historiográficas apontando para o chamado
“colapso de um projeto nacional”, nas décadas seguintes, e, no final da
primeira década do século XXI, para a denominada “brasilianização” do trabalho
em escala mundial, conceito que designa a avassaladora disseminação do trabalho
informal e a coexistência e determinação recíproca do centro e da periferia do
capitalismo no mesmo espaço social [18].
Vianinha não viveu para presenciar essas
ocorrências, nem tampouco para assistir os impasses da esquerda no decorrer dos
anos 1980-1990, a configuração do novo capitalismo corporativo, a
mercantilização da arte conduzida inclusive por egressos dos movimentos
radicais dos anos 1960, o destino do potencial utópico e a banalização das
injustiças sociais.
Para todos os que o fizeram, “Rasga
Coração” registra, perturbadoramente, quantas sucessivas gerações andaram em
círculo e marcaram passo no solo histórico nacional.
Referências
Bibliográficas
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mundo. In: Zero à Esquerda. São Paulo: Conrad, 2004.
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Sítios
da Internet
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(Mestrado) - Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências
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VIANNA FILHO, Oduvaldo et alii. Opinião. Texto Completo do show. In <https://drive.google.com/file/d/0B3-LotHPgkDhdzZGWlozbV9reGc/view>.
__________________________
NOTAS
[1]
Este artigo é a versão revista de “Forma Dramatúrgica e Representação
sócio-histórica em ‘Rasga Coração’, de Oduvaldo Vianna Filho”, elaborado
para a Revista Scripta, do Programa de Pós-Graduação da Uniandrade, de
Curitiba, Paraná, em janeiro de 2008 e de sua posterior reelaboração para a Revista UniABC Humanidades - v. 1, n. 1,
2010.
[2]
Professora de Letras Modernas da FFLCH-USP. É organizadora da coleção de peças
de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal, de São Paulo. Autora de Oduvaldo
Vianna Filho. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1997, de Dramaturgia Comparada
Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br),
entre outros trabalhos.
[3] Carlos Marighella [1911-1969]
requereu seu desligamento do Partido Comunista Brasileiro em dezembro de 1966,
explicitando sua intenção de participar da luta revolucionária junto às massas.
Joaquim Câmara Ferreira [1913-1970] foi
um dos signatários do Manifesto do Agrupamento Comunista de São Paulo, embrião
da Ação Libertadora Nacional, entidade de luta armada organizada em fevereiro
de 1968. Cf. Escritos de Carlos
Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 6, e Netto, José
Paulo. Pequena História da ditadura
brasileira 1964-1985. São Paulo: Cortez Editora, 2016.
[4] Michalski, Yan (org.). O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho.
São Paulo: Global Editora, 1984. Peixoto, Fernando (org.) Vianinha. Teatro. Televisão. Política. São Paulo: Brasiliense,
1984.
[5] Plínio Salgado. Disponível em: Dicionário Político. <https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/salgado_plinio.htm>.
Anauê! Plínio Salgado e a guinada à
direita do nacionalismo brasileiro. Disponível em: <http://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/1635/IV%20JIPLA_364-377.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[6]
“Em 1902, uma epidemia de peste bubônica fez com que Oswaldo Cruz criasse um
agrupamento que passou a percorrer os bairros do Rio espalhando raticida e
removendo lixo. Eles também foram autorizados a pagar cem réis por bicho morto
entregue pela população. A iniciativa gerou um comércio de ratos, inclusive com
criadouros dos roedores.” Disponível em: <https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/916-revolta-sonora-oswaldo-cruz-as-vacinas-e-a-ironia-dos-carnavais?showall=>.
Acesso em: 28 jul 2020.
Das várias melodias compostas sobre o
assunto, destaca-se “Rato, rato, rato”, de Casemiro da Rocha, que recebeu letra
de Claudino Costa. Disponível em: <https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/rato-rato.html>.
Gravação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RM53F7Xm-rU&list=PLN_ojX50FvlgOKzCeQej1ZZsKqcRXnXFX&index=4>. Acesso em: 28 jul 2020.
[7] “João Pessoa foi morto a tiros pelo
jornalista João Dantas, que apoiava o inimigo político de Pessoa, o coronel Zé
Pereira, da cidade de Princesa, na Paraíba. Considerado o grande mártir da
Revolução de 30, o hino em sua homenagem, um grande sucesso na época, foi
cantado na abertura da revista teatral “O Barbado” no Rio duas semanas depois
da vitória da Revolução. Seus autores são o maestro Eduardo Souto e Oswaldo
Santiago, poeta pernambucano e compositor de valsas e marchinhas de carnaval.”
[...] “Governador da Paraíba, João Pessoa foi candidato a vice-presidente na
chapa liderada por Getúlio Vargas, derrotada nas fraudulentas eleições de
1929/1930. Seu assassinato, em julho de 1930, no Recife, provocou comoção
nacional. O disco da gravadora Odeon com a voz de Chico Alves cantando o hino
fez um enorme sucesso.” Disponível em: <https://direitonamusicaufs.blogspot.com/2011/06/francisco-alves-hino-joao-pessoa-1930.html>. Acesso em: 28 jul
2020.
[8] “Conhecido desde 1895, quando foi
lançado na opereta-burlesca "Zizinha Maxixe", o tango
"Corta-Jaca", cujo título original é "Gaúcho", teve a
popularidade redobrada nove anos depois, ao reaparecer na revista Cá e Lá.
Comprovam o sucesso as oito gravações que recebeu entre 1904 e 1912 e sua
apresentação, em 26.10.1914, numa recepção oficial no Palácio do Catete, então
sede do Governo Federal. Na ocasião, foi interpretado pela primeira dama, Sra.
Nair de Teffé, fato explorado como escândalo pela oposição. “Corta-Jaca” ou
“Dança do ‘Corta-Jaca’”, como está classificado em uma de suas edições, é na
verdade um maxixe bem sacudido, característica que muito contribuiu para o seu
êxito. A fim de ser cantado em Cá e Lá, ganhou letra de Tito Martins e Bandeira
de Gouveia, autores da peça (“Ai! Ai! Que bom cortar a jaca / Ai! Sim, meu bem
ataca, sem descansar...”). Disponível em: <https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/corta-jaca.html>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[9] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=B2bxjUs9jlI&list=PLN_ojX50FvlgOKzCeQej1ZZsKqcRXnXFX&index=21&t=0s>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[10] Disponível em: <https://www.letras.mus.br/lamartine-babo/grau-dez-marchacarnaval-1935/>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[11] Disponível em: <https://www.discografiabrasileira.com.br/fonograma/40056/linda-lourinha>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[12] A canção original chama-se
“Fascination” e é uma valsa de Maurice de Féraudy (1859-1932) e Dante Pilade
“Fermo” Marchetti (1876-1940). Mais de uma versão em português foi feita. A
mais conhecida parece ser a de Armando Louzada. Cf.: <https://museudacancao.blogspot.com/2012/11/fascinacao-fascination.html>.
Acesso em: 28 jul 2020.
[13] Ver Palhares, Lenir. Educação Integral para o homem integral”: as escolas integralistas em Minas Gerais
(1932-1937). Dissertação apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da
Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AR5GG6/1/disserta__o_finalizada.pdf>.
[14] Ver Brusantin, Beatriz
de Miranda. Anauê Paulista: um estudo sobre a prática política da
primeira 'Cidade Integralista' do Estado de São Paulo (1932 - 1943). 2004. Dissertação
(Mestrado) - Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004, p. 19. Orientador
Prof. Dr. Michael Hall. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/279082/1/Brusantin_BeatrizdeMiranda_M.pdf>.
[15] “A Ação Integralista Brasileira leva adiante a bandeira nacionalista por
mediação de Plínio Salgado, que procura unir a ideologia nacionalista à defesa
da pequena propriedade e sua extensão em nível nacional. Seu ódio à
industrialização e urbanização define, nesse contexto, uma ideologia de nacionalismo defensivo, que não
procura como o fascismo a expansão
externa, militar ou não. Tem apoio nas classes médias urbanas, pequenos
proprietários rurais, grandes latifundiários e setores civis e militares da
burocracia estatal.” In Tragtemberg, Maurício. A falência da política. São Paulo:
Unesp, 2009, p. 180.
[16] Luís Carlos Prestes [1898-1990].
[17] Pereira, Fabrício. Utopia
Dividida – crise e extinção do PCB (1979-1992), PPGHIS da UFRJ, março de
2005. Disponível em: <http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/utopiadividida.pdf>.Acesso
em: 28 jul 2020.
[18] A propósito do conceito de
“brasilianização”, veja-se ARANTES, Paulo. A fratura brasileira no mundo.
In:_______ Zero à Esquerda.
São Paulo, Conrad, 2004. Veja-se, ainda, Fim de jogo. Entrevista concedida por
Paulo Arantes e Silva à Folha de São Paulo, em 18 jul. 2004, disponível
em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1807200427.htm>.
Acesso em: 28 jul 2020.
*****
Conheça também:
de Maria Sílvia Betti (organizadora da coleção Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal)
Dramaturgia
Comparada Estados Unidos / Brasil: Três estudos
Autora: Maria
Sílvia Betti
Editora: Cia.
Fagulha
ISBN
13: 978-85-68844-03-8
Páginas: 360
e-mail: editora@ciafagulha.com.br
WhatsApp: (11) 95119-8357
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