“Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho: Perspectivas formais da representação sócio-histórica. Por Maria Sílvia Betti


“Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho: Perspectivas formais da representação sócio-histórica. Por Maria Sílvia Betti

Rasga Coração (2007): Zécarlos Machado (Manguari) e Pedro Rocha (Luca).


NOTA PRELIMINAR:

Este texto foi reelaborado a partir de um artigo acadêmico anterior, publicado entre 2010 e 2011 na Revista UniABC - Humanas, publicação da UniABC. Essa Universidade encontrava-se então sob o controle administrativo do grupo Anhanguera, que em 2013 fundiu-se à rede Kroton, criando assim a maior companhia de educação do mundo. 

Demissões em massa dos professores da UniABC vinham sendo realizadas desde 2010, e a fusão com a Kroton deu prosseguimento acelerado a essas megademissões, numa demonstração cabal da prevalência da lógica empresarial predatória e precarizante em relação ao ensino e ao trabalho docente.

A publicação dele no blog da Editora Cia. Fagulha tem a finalidade de alertar os leitores sobre a necessidade da articulação de uma luta continuada e intensa pela defesa da educação e do trabalho formativo exercido pelos professores em todos os seus níveis.


“Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho: Perspectivas formais da representação sócio-histórica [1]. Por Maria Sílvia Betti [2]


Rasga Coração (1979): Tomil Gonçalves (Luca) e Raul Cortez (Manguari).


Resumo
Este artigo discute a forma dramatúrgica empregada na representação das transformações sócio-históricas e das questões políticas da esquerda brasileira na peça “Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho.

Palavras-chave: Dramaturgia, teatro brasileiro, história, política.

Abstract
This article deals with the formal aspects in the representation of social and historical transformations and of the conflicts of the Brazilian left in Oduvaldo Vianna Filho’s play “Rasga Coração”.
                                                                                                  
Keywords: Playwriting, Brazilian theater, history, politics.

Resumen
Este artículo discute la forma dramaturgica empleada en la representación de las transformaciones socio-históricas y de las cuestiones políticas de la izquierda brasileña en la pieza “Rasga Corazón”, de Oduvaldo Vianna Filho.

Palabras-llaves: Dramaturgia, teatro brasileño, historia, política.


             
Proibida pela censura logo após ter sido unanimemente classificada com o primeiro lugar no Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, em 1974, “Rasga Coração”, último trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, passou a circular em edições mimeografadas clandestinas, e se tornou o texto teatral mais lido e discutido nos setores ligados à cultura e ao pensamento crítico no país. A expectativa em torno de sua liberação passou a nortear a maior parte das discussões sobre o teatro e as perspectivas culturais do país.
Tratava-se de uma peça que construía a síntese épica de setenta anos da vida política do país, no século XX, a partir da experiência das militâncias de esquerda, o que era sem dúvida uma empreitada corajosa e inédita.
O movimento de cultura política popular anterior ao golpe de 1964 havia sido brutalmente abortado pelas forças do regime ditatorial instaurado, e a sensação generalizada entre os militantes dos movimentos de esquerda era a de uma crescente falta de perspectivas. Logo após o golpe, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) havia passado a ser considerado responsável pelas ilusões políticas que haviam criado condições para o golpe. Com isso, rachas e dissidências passaram a ocorrer mesmo entre alguns de seus quadros históricos. Paralelamente, o grande impacto gerado pela Revolução Cubana, de 1958, havia passado a motivar uma crescente articulação de organizações de luta armada, atraindo até mesmo militantes de longa data do PCB como Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira [3].
A situação de Vianna diante desse contexto não era tranquila ou confortável: mesmo tendo ele, em momentos anteriores, adotado posições que divergiam das preconizadas pelo Partido, sua empatia com a velha guarda militante jamais sofrera abalo de qualquer natureza. Isso contribuiu para que, dentro do debate cultural da época, Vianna nunca tenha deixado de ser identificado aos que se alinhavam com as teses do PCB e nunca tenha sido poupado por todos os que criticavam o partido.
O meio teatral propriamente dito não se mostrou menos difícil para Vianna como autor nos anos que se seguiram ao golpe: se o show “Opinião” (de 1964) e a peça “Se correr o Bicho pega, se ficar o Bicho come...” (de 1965) haviam tido êxito de público e de crítica, espetáculos pouco posteriores e que empregavam recursos análogos, como “Meia volta vou ver” (de 1966) e “Dura Lex, sed Lex, no cabelo só Gumex” (de 1967), acabaram ficando aquém da receptividade esperada de público.
Entre 1965 e 1968, Vianna escreveu três peças que apontavam e discutiam as contradições políticas e históricas do país por meio da linguagem épica, de simultaneidades de tempo e espaço e de técnicas dramatúrgicas pouco frequentes, até então, na dramaturgia brasileira: “Moço em Estado de Sítio” (de 1965), “Mão na luva” (de 1966) e “Papa Highirte” (de 1968), que recebeu o primeiro prêmio no Concurso Nacional de Dramaturgia do SNT nesse mesmo ano.
O veto sumário da censura recaiu sobre “Moço em Estado de sítio” e sobre a premiada “Papa Highirte”, peças em que as questões políticas recentes eram centrais. “Mão na luva”, por sua vez, teve um destino diferente do da maioria dos trabalhos de Vianna: ao invés de colocá-la em discussão com seus companheiros e interlocutores, como habitualmente fazia, Vianna guardou-a entre seus escritos sem compartilhá-la, e o texto só veio a ser publicado postumamente, na antologia “O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho”, organizada por Yan Michalski no décimo aniversário da morte do dramaturgo, na mesma época da publicação da edição antológica de seus textos ensaísticos organizada por Fernando Peixoto [4].
  Apesar das proibições sucessivas pela censura, Vianna conseguiu ter cinco peças encenadas entre o início da década de 1970 e o ano de sua morte: na seara do cômico, “Mamãe, Papai está ficando roxo” (de 1972) e “Allegro Desbum” (de 1972-73), que procuravam um novo ângulo crítico para a comédia de costumes, com a qual Vianna tinha grande familiaridade; no campo dos dramas sociais, o monólogo “Corpo a corpo” (de 1971) e o drama familiar “Nossa vida em família” (de 1972), que tratavam das contradições da classe média urbana cooptada pelo próprio sistema que a explorava e esvaziava sua vida de sentido; e finalmente “A longa noite de Cristal” (de 1970, encenada em 1973), que colocava pioneiramente em foco a manipulação de interesses no meio televisivo, dentro do setor dos noticiários políticos cotidianos sob a ditadura. Essas peças, mesmo empreendendo um diagnóstico crítico bastante profundo dos impasses e angústias da classe média, passaram pelo crivo da censura e permitiram a Vianna voltar a ter trabalhos encenados.
Os trabalhos desenvolvidos no CPC anteriormente, como “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (de 1960-61), “Brasil versão brasileira” (de 1962), “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os Benevides” (de 1963-64), ou mesmo as criações imediatamente posteriores ao golpe, como “Opinião” e “Se correr o Bicho pega...”, tinham avançado significativamente na representação crítica das relações entre as classes e das questões socioeconômicas mais amplas.
As peças do período seguinte ao golpe, por sua vez, haviam passado a fazer a discussão crítica das contradições e cooptações da classe média sob a ditadura, tarefa que se impunha com urgência diante das próprias circunstâncias políticas do país: afinal, essa classe havia, em larga medida, apoiado as forças golpistas, tendo tido, assim, papel decisivo nos rumos políticos do país e na instauração do regime civil militar.
No período seguinte ao golpe, metáforas e alegorias lítero-musicais representando o alinhamento dos setores progressistas da sociedade haviam sido calorosamente acolhidas pelo público, trazendo assim algum alento por meio de espetáculos como o show “Opinião” e “Liberdade, liberdade”. Após a decretação do AI-5 (Ato Institucional número 5, de 1968), porém, com a implantação da censura prévia, a utilização desses recursos se tornou inviável.
Vianna teve sempre clara consciência a respeito das condições concretas que se colocavam para seu trabalho, e embora nunca tenha manifestado qualquer repúdio ao teatro comercial como horizonte de trabalho, conhecia perfeitamente as limitações inerentes a ele e as restrições implicadas em suas perspectivas de criação e de pensamento crítico. Já no programa da montagem de “Dura Lex sed lex, no cabelo só Gumex”, de 1967, ele havia apontado a necessidade que sentia de ir além do caráter de urgência com que havia sempre trabalhado até então. O rigor da autocrítica levou-o a desmerecer o próprio valor artístico dos trabalhos que havia realizado “na boca do cofre”, como escreveu no programa de “Dura lex...” referindo-se a circunstâncias que demandavam um rápido poder de resposta e de reflexão diante de fatos políticos e situações históricas que se apresentavam.
Esse pode ter sido o primeiro passo dado por ele na procura de um método diferente de trabalho, capaz de lhe permitir pesquisar e depurar o material histórico concretamente representado, como viria a fazer, posteriormente, em “Rasga Coração”.
As questões centrais ligadas à gênese de “Rasga Coração” não se separam do olhar afetivo, mesmo quando crítico, que Vianna lançava sobre a posição do PCB. Ele próprio, como autor, via-se crucialmente premido entre a perseguição movida pelos órgãos de repressão por um lado e a crítica de outros setores da esquerda, por outro.
A conjunção de circunstâncias de sua vida pessoal com alguns acontecimentos do contexto artístico e cultural do país foi decisiva para o recorte histórico dado por ele à peça: em 1972 morrera Oduvaldo Vianna (seu pai, ligado por laços de amizade e por afinidade política aos quadros mais tradicionais do PCB); aproximadamente na mesma época Vianinha começou e se ver diante dos efeitos da entrada de seu filho primogênito na adolescência, marcada pela contestação das escolhas partidárias e da linha política da família. Não é mero detalhe, portanto, o fato de Vianinha, num pequeno prefácio à peça, apresentá-la como homenagem à velha guarda partidária que conhecera desde a infância na casa paterna, e logo a seguir dedicá-la precisamente ao filho primogênito que o questionava.
No campo da cultura em geral e do teatro em particular, a articulação da Tropicália entre 1967 e 1968 e a ascensão da contracultura, nos anos 1970, tinham vindo colocar-se na contramão do trabalho praticado pelos dramaturgos e grupos teatrais de esquerda. Desde os seus primórdios a Tropicália vinha questionando os liames que eventualmente ligassem os espectadores ao mundo das instituições, e entre estas incluía-se a participação na militância política partidária.
Em 1972 estreou em São Paulo o contundente e transgressivo “Gracias Señor”, criação coletiva do Teatro Oficina. O espetáculo apoiava-se, como Vianna observou em uma de suas últimas entrevistas, na ideia da morte do teatro, ou pelo menos na do desaparecimento dos parâmetros pelos quais o teatro vinha sendo praticado, com base no trabalho dramatúrgico e interpretativo e na separação entre artistas e público.
No mesmo ano, prefaciando a publicação de “Corpo a corpo” pela Revista da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), Vianna manifestou-se especificamente sobre a crescente multiplicação dos espetáculos e grupos identificados a essa linha: o extraordinário vigor humano detectado em trabalhos desse tipo parecia-lhe empenhado principalmente na intimidação do público e na negação de qualquer valor ou sentido que pudesse ser atribuído a outra forma de existência que não a do artista transgressor no palco, confrontando e desafiando o espectador de classe média, um ser visto como medíocre e confinado numa existência sem sentido.
Dentro desse contexto, o interesse de Vianna volta-se para o campo diametralmente oposto, ou seja, o das lutas anônimas dos pequenos militantes do PCB, premidos pelas questões domésticas, pela necessidade de sobrevivência, pelas mazelas pessoais e por um cotidiano obscuro e cheio de dificuldades.
Abordar o coletivo de militantes que aplicavam suas vidas nas tarefas partidárias era assunto praticamente inédito no teatro brasileiro. Para representá-lo era preciso investigar as marcas das transformações e das lutas históricas deixadas em seu cotidiano. Era preciso, ainda, depurar criteriosamente o material em bruto da vida desses cidadãos sem pretensas grandezas, e registrá-lo, dentro do possível, a partir da documentação e da iconografia levantada a partir de anúncios de bonde, reclames de jornais, panfletos, tabloides, pregões, dizeres populares e registros sonoros dos primórdios do rádio.
O mergulho histórico de Vianna nesse farto e diversificado material permitiu-lhe flagrar, registrar e discutir dramaturgicamente algumas das principais transformações sociais e históricas do país ao longo do século XX.
O cerne narrativo central de “Rasga Coração” apoia-se num arcabouço dramático que enfoca as relações e os enfrentamentos de três gerações sucessivas à luz das questões políticas e das transformações sociais do país: Custódio Manhães, funcionário público significativamente apelidado de Manguari Pistolão, tem 57 anos e é militante do PCB desde a sua juventude. O empenho nas tarefas partidárias e nas lutas políticas levou-o a adiar sucessivas vezes o momento de se tornar pai, o que fez que sua mulher, Nena, se submetesse a uma série de abortos: o filho Luca, de dezessete anos, havia nascido apenas em 1954, quatorze anos após o casamento dos pais.
Manguari tem um salário modesto e mora com a família num apartamento pequeno e antigo no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Apesar das dificuldades financeiras ele sonha em ver o filho formado em medicina, e economiza o que pode para, um dia, custear um consultório bem montado para o rapaz. Sua maior expectativa, porém, é a de politizar o filho, ou seja, sensibilizá-lo para as questões da luta política e da militância partidária de esquerda dentro do PCB.
Luca, adepto convicto de hábitos e preceitos associados à contracultura e ao orientalismo, não tem grande sintonia com as questões políticas das quais trata seu pai, mas uma circunstância inusitada o leva, subitamente, a envolver-se em uma grande mobilização coletiva dos alunos do Liceu Castro Cott, onde estuda: a proibição sumária do uso de cabelos longos e em estilo hippie pelos alunos no interior da escola.
A atitude autoritária da direção e as implicações dela levam Manguari a acreditar que está diante da oportunidade ideal para a tão esperada iniciação política do rapaz. Entusiasmado, ele imediatamente se põe a esboçar planos de ação e esquemas táticos para a luta dos estudantes rebeldes, e transmite-os ao filho.
Num primeiro momento, Luca se mostra receptivo às estratégias de ação apresentadas pelo pai, mas, ao se colocar como porta-voz delas na assembleia com os demais estudantes, sofre o impacto da crítica contundente feita por sua colega e namorada Milena, e revê imediatamente as posições que havia acabado de defender. O plano tático que apresenta é acusado de ser reverente em excesso com as instituições e desprovido de combatividade: um “plano de calça arriada”, nas palavras da moça. Ao voltar para casa, Luca demonstra ter assimilado ponto a ponto a crítica que ouvira e que agora repete, deixando Manguari perplexo e indignado.
Dispostos a adotar uma linha radical e a partir para a ação, os alunos votam pela invasão do colégio. O confronto com os inspetores de disciplina os expõe à violência repressiva da escola: Luca é ferido e expulso, e várias semanas se passam sem que o rapaz vislumbre qualquer saída para sua situação. O vestibular se aproxima, mas ele não poderá prestá-lo, já que não conseguiu concluir as provas do ensino médio.
Uma visita súbita vem tirá-lo do marasmo: Camargo Moço, aluno de outra unidade da mesma escola e sobrinho de Camargo Velho, antigo companheiro de lutas políticas de Manguari, lhe traz a notícia de um frei dominicano disposto a acolher, no colégio que dirige, os estudantes expulsos do Liceu Castro Cott, para que possam fazer as provas finais e prestar o vestibular. Manguari, Nena e Camargo Moço estão eufóricos com a possibilidade surgida com a iniciativa do frei de ideias libertárias. Luca, porém, mostra-se refratário e comunica, um tanto constrangido, que não prestará o vestibular, pois não deseja qualificar-se dentro de um sistema que repudia.
O tempo para a tomada de qualquer decisão é curto e a sequência dos acontecimentos traz novas complicações: embora a unidade do Liceu Castro Cott onde estuda Camargo Moço, no bairro do Meyer, não tenha aderido ao movimento contestatório, o rapaz é denunciado à direção por ter apoiado os rebeldes, e acaba cogitando se Luca teria sido o autor da denúncia. Manguari inquire vigorosamente o filho a esse respeito. Luca irrompe em pranto negando a delação, e o pai prontamente assegura sua inocência a Camargo Moço.
A tensão crescente entre as posições de Manguari e de Luca chega a seu ápice quando o rapaz explode em críticas ao pai e à perspectiva de luta política que ele abraça. Manguari replica com virulência e Luca retira-se. A ruptura entre ambos é inevitável, e Luca prepara-se para deixar a casa dos pais. No momento da despedida, ao final, sob os apelos doloridos de Nena, Manguari mantém-se impassível, e dá sequência aos contatos telefônicos de rotina para o agendamento das reuniões e tarefas partidárias.
A partir desse cerne central do presente dramático, “Rasga Coração” desdobra outros planos espaço-temporais com situações e ações representativas de momentos histórico-políticos do passado, compreendidos entre a Revolta da Vacina, de 1904, a Campanha pela Petrobrás, no início dos anos 1950, e o contexto da ditadura militar, no início da década de 1970. Na maioria das vezes esses desdobramentos se materializam em cena a partir do fluxo de memória de Manguari; em outras ocorrências, porém, elas eclodem em plano simultâneo ao do presente sem qualquer liame rememorativo, e frisam, ora por contraste e ora por semelhança, a natureza das experiências históricas, afetivas ou políticas vivenciadas pelas diferentes gerações.
A ordem das situações passadas presentificadas em cena nunca é a cronológica. A iluminação se encarrega de diferenciar as épocas, e a intercalação de canções serve para criar e ilustrar a atmosfera sócio-histórica relacionada a cada uma delas. Logo na abertura o refrão da valsa-título, “Rasga Coração”, de Anacleto de Medeiros com letra de Catulo da Paixão Cearense, é cantado com a presença em cena de todas as personagens. A apresentação de cada uma delas, a seguir, também é apoiada em recortes musicais ilustrativos: o integralista Castro Cott apresenta-se fazendo a saudação típica (“Anauê!”) ao som do hino “Avante”, composto por Plínio Salgado em 1932 [5]; o pai de Manguari, fiscal das Brigadas Sanitárias pitorescamente identificado pelo número 666 (o número da besta, no texto do Livro do Apocalipse), é apresentado ao som de “Rato, rato, rato”, polca de 1904 [6]; Camargo Velho, companheiro de militância política de Manguari, apresenta-se com o Hino a João Pessoa, de 1930 [7], e Lorde Bundinha, impagável companheiro boêmio de Manguari, ao som do “Corta-Jaca”, gravado sucessivas vezes entre 1904 e 1908 [8].
Ao longo da peça, a música demarca e comenta, por contraste, por paródia ou por associação de ideias e imagens, os momentos de transição histórica: Manguari e Lorde Bundinha, nos anos 1930, ganham seu parco sustento vendendo partituras de modinhas pelas ruas do Rio, e aparecem entoando “Noite cheia de estrelas”, valsa romântica de Cândido das Neves” (de 1932 [9]); Bundinha é exímio dançarino de tango, gênero que teve sua época áurea entre os anos 1920 e 1930, mas entoa paródias políticas de marchinhas carnavalescas como “Grau Dez”, de Lamartine Babo (de 1934) [10], e “Linda Lourinha”, de João de Barro (de 1935) [11] ; Manguari, que na juventude chegou a sonhar com uma carreira de cantor de rádio, relembra a valsa “Fascinação” [12], que consagrou o cantor Carlos Galhardo em 1943.
O fio histórico que perpassa a estrutura de “Rasga Coração” representa um corte transversal ao longo de setenta anos da vida do país sob o prisma das lutas políticas travadas pela esquerda — entenda-se que a esquerda, no caso, é vista a partir do percurso do PCB, personificado na perspectiva de Manguari Pistolão, o protagonista, e de seu camarada Camargo Velho, que abrira mão da própria juventude em prol do empenho pela luta política dentro do partido.
A peça acompanha o processo de declínio das oligarquias rurais e da Primeira República, no início do século XX, a crise de 1929, a ascensão do Tenentismo em meados dos anos 1920, a queda de Washington Luís, em 1930, o Estado Novo, instituído em 1937, a chamada Intentona Comunista, de 1935, o Levante Integralista, de 1938, o processo de industrialização nos anos 1940, a implantação das leis trabalhistas, a campanha pelo petróleo, no início da década de 1950 e, finalmente, a época da ditadura militar e da contracultura na década de 1970.
O foco crítico incide sempre, durante toda a peça, sobre as camadas médias da sociedade: logo no início, Camargo Velho, Manguari e o próprio Lorde Bundinha aparecem usando o lenço vermelho associado ao movimento dos Tenentes. A cena seguinte apresenta a referência à queda de Washington Luís, em 1930, data que assinala o fim da República Velha e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. O choque entre um modelo agrário de país e outro, industrializado e tecnicista, se constrói no diálogo entre 666, que lamenta a “carestia” dos novos tempos, e Manguari, que se entusiasma com as perspectivas de mobilização que entrevê no processo de crescimento industrial. Não é mera coincidência que essa cena seja, justamente, precedida por outra, no presente, em que Manguari revela sua preocupação com os gastos mensais da família, e com a dispendiosa alimentação macrobiótica do filho.
Igualmente significativo é o fato de Castro Cott, integralista ferrenho dos anos 1930, apresentar-se transformado, no plano do presente, no diretor do Liceu onde Luca estuda. Em várias obras de Plínio Salgado [13], fundador do integralismo, a educação é definida como um esteio importante do movimento. A tríade “Deus-Pátria-Família”, norteadora dos setores da classe média que apoiaram o golpe militar de 1964, também tem claras raízes no ideário integralista. Dentro da tessitura histórica da peça é emblemático o alinhamento de 666 à milícia integralista comandada por Castro Cott. O recorte histórico frisa o caráter regressivo do pensamento econômico dos integralistas (e de Plínio Salgado, em particular), apoiado numa idealização da tradição ruralista brasileira [14].
O integralismo tinha fortes raízes nas Ligas Nacionalistas da República Velha, e apresentava um caráter de resposta conservadora ao socialismo libertário que começava a crescer entre as massas operárias [15].
 666 sonha encaminhar Manguari para um emprego no Serviço de Endemias Rurais, e irrita-se com as ideias políticas do rapaz, que atua no movimento operário e nas lutas trabalhistas ao lado do companheiro Camargo Velho.
Com a industrialização promovida a partir da ascensão de Vargas, o país passava a enfrentar as questões sociais e econômicas das sociedades urbanas e capitalistas. O tenentismo, que havia apoiado o governo provisório instalado em 1931, dissolvia-se: o Clube 3 de Outubro, sede dos “tenentes”, foi fechado em 1935.
O recorte histórico da peça põe em cena desde o início o conjunto das forças sócio-políticas desse momento: Castro Cott, imbuído de exacerbado civismo, faz a saudação integralista “anauê” enquanto 666 cultiva o sonho de um Brasil agrícola e Camargo Velho procura esconder-se após o fechamento do Clube 3 de Outubro, sede dos tenentes conflagrados.
Embora esse fechamento tenha sido deliberado pelos próprios membros, a questão representada na peça através do percurso político de Camargo Velho é a das opções táticas do Partido Comunista como entidade estruturada, apoiada na organização, na disciplina e nos esquemas de ação fundamentados em análises conjunturais.
Não casualmente Camargo Velho é o jovem que abdica de viver sua própria mocidade em prol da luta política: seu modelo para a militância é o soviético, inspirado no “camarada Stálin”, e sua frente de luta dentro do Estado Novo é a da coalizão dos setores de esquerda: a Aliança Nacional Libertadora e o Partido Comunista Brasileiro.
A trajetória de Camargo Velho na peça apoia-se claramente na figura de Luís Carlos Prestes [16], fundador do PCB, apresentado desde a participação no movimento dos tenentes até as lutas dentro do próprio Partido nos contextos políticos das décadas de 1940 em diante.
Um dos principais focos críticos dentro da tessitura histórica de “Rasga Coração” recai precisamente sobre a constituição de alianças de apoio a movimentos revolucionários: tanto no tenentismo como no movimento de 1935, a opção por alianças táticas teve grande poder de determinação sobre os objetivos atingidos.
A nação aparece, simbolicamente, como resultado do alinhamento de diferentes setores sociais. Inúmeras vezes, em momentos políticos cruciais, Camargo Velho aparece empunhando a bandeira nacional, conclamando as massas à luta e anunciando a vitória iminente. A repetição dessa imagem e sua entusiasmada exortação produzem, a cada ocorrência, o efeito crescente de um alerta crítico.
Também a rebelião dos estudantes contra o conservadorismo do Liceu Castro Cott é vista de forma crítica: o ponto em questão refere-se à estratégia política das alianças, e transparece claramente no questionamento agudo feito por Milena à manifestação de solidariedade de Camargo Moço, externo ao movimento, mas mobilizado pela convicção política.
Vianna utiliza-se da transversalidade histórica dos tempos e das questões políticas representadas para constituir, na contraposição deles, o caráter dialético da reflexão e o foco crítico sobre os processos históricos envolvidos. Mais importante do que aquilo que cada cena, personagem ou situação apresenta sobre cada determinado problema é aquilo que a tessitura do conjunto apresenta e revela. Não são apenas os elos concretos e ilustrativos entre os tempos e as experiências que contam: são também, e principalmente, as elipses e os paradoxos entre semelhanças e os antagonismos, verdadeiros ou falsos.
O nervo histórico da questão das alianças e pactos entre setores sociais vinha sendo exposto por Vianna desde “Brasil versão brasileira”, de 1962, de “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os Benevides”, de 1963, do show “Opinião”, de 1964, e de “Moço em estado de sítio”, de 1965.
Também peças como “Mão na luva” (de 1966) e “Corpo a corpo” (de 1970) discutiam o significado político dos princípios de “solidariedade” e de coalizão entre classes, ainda que o fizessem com o foco centrado em personagens de classe média, e não no grande conjunto das forças históricas do país.
Do ponto de vista do olhar histórico lançado sobre os movimentos das esquerdas, esta escolha trouxe a Vianna desafios importantes do ponto de vista da forma, e foi fundamental para o uso do épico como base para a estrutura formal em “Rasga Coração”. Afinal, só seria possível chegar ao âmago desejado de questões como as abordadas através de mecanismos formais que transcendessem o patamar dos conflitos intrafamiliares e interpessoais, e que permitissem colocar em foco a tessitura histórica e a experiência política presente nas experiências e ações representadas. O eixo recortado de tempos e de situações desempenha, na peça, uma função épica por excelência, colocando no epicentro da matéria figurada os processos históricos e as transformações políticas.
A leitura histórica do país construída em “Rasga Coração” fundamenta-se na ideia exposta por Vianna no pequeno texto de apresentação da peça: o “novo” não é necessariamente revolucionário, e o verdadeiramente revolucionário não é necessariamente “novo” em suas estratégias e metas. O “velho” de hoje e o “novo” de ontem relacionam-se num jogo temporal de simultaneidades e de sequências cênicas, ora aproximando-se pela analogia, ora distanciando-se pelas contradições: Manguari é surpreendido por Luca, no plano do presente, enquanto espia a nudez da vizinha pela janela; em plano paralelo, no passado, é ele próprio, adolescente, que surpreende o pai com uma mulher nua em pleno expediente das Brigadas Sanitárias.
O contraponto histórico de comportamentos e atitudes repete-se quando, no presente, Nena escandaliza-se com a tranquila liberdade sexual de que desfrutam Milena e Luca em seu próprio apartamento; no plano do passado, em paralelo, ela própria e o jovem Manguari são os flagrados em nervosa intimidade sexual, para escândalo e indignação do falsamente moralista 666.
Ao longo da peça as ocorrências deste recurso se multiplicam. O efeito que se produz, via de regra, é o de um olhar crítico sobre o liame que se apresenta entre o sentido político contido nas experiências das diferentes gerações. A concatenação dramatúrgica e cênica evidencia continuidades e ligações, no plano sócio-histórico, precisamente onde o pensamento dominante costuma apontar fragmentações e descontinuidades.
Ao mesmo tempo, a efetividade e as implicações das eventuais rupturas que se apresentam são postas em foco e examinadas: Luca, no presente, volta da escola com o rosto ensanguentado após ser agredido por um inspetor de alunos; no passado, em paralelo, é Manguari que retorna em estado deplorável à pensão após ter sido espancado por uma milícia de “galinhas verdes” (integralistas). No passado, já em plena era getulista, Manguari recusa rispidamente a ajuda pedida por Bundinha para formar o elenco de um musical que poderá trazer-lhe algum alento financeiro: para Manguari, o que o amigo lhe pede são os seus princípios, já que o musical a ser apresentado apoia Getúlio. Em cena simultânea, no presente, é Manguari que faz a Luca uma proposta comprometedora: a de alegar que atua profissionalmente em um conjunto de rock para ser liberado do corte obrigatório de cabelos no Liceu Castro Cott.
Embora algumas vezes o passado irrompa em cena a partir da carga associativa das lembranças de Manguari, como já observamos anteriormente, o contraponto cênico de acontecimentos é exterior à sua subjetividade, e se apresenta como um eixo épico que estrutura e propele o desenrolar dramatúrgico do material figurado. Manguari e Camargo Velho chegam à pensão trazendo carabinas embrulhadas, no contexto histórico de 1935. Nesse mesmo plano histórico Castro Cott e 666, em cena simultânea, embrulham armas e punhais, envolvidos que estão com a articulação armada das forças integralistas. Em paralelo, no plano do presente, os estudantes estão reunidos em assembleia: Milena e Camargo Moço defendem posições representativas, respectivamente, da esquerda armada (defesa da ação direta desencadeada por vanguardas revolucionárias), e da militância pecebista (crítica à atuação de grupos de elite e defesa do alinhamento estratégico de setores mais amplos da sociedade). A peça atinge, nesse momento, o ponto central da figuração sócio-histórica das forças políticas em atuação no país.
A ironia é o recurso estrutural que norteia as relações construídas entre os diferentes momentos históricos e as experiências das personagens. Seu efeito principal é o de fazer que o foco da atenção recaia não sobre a substância individual das ações representadas, mas sobre o fio histórico que correlaciona e compara os mecanismos de atuação e de pensamento de diferentes gerações em diferentes momentos do processo histórico.
 O uso estrutural da ironia produz um efeito importante, também, na relação entre a matéria histórica representada na peça e os acontecimentos políticos dos anos que se seguiram a sua criação: não deixa de ser irônico assistir ou ler a exortação de Camargo Velho aos camaradas das lutas sindicais no passado (década de 1930) tendo presenciado a erosão das bases sindicais do PCB, em curso já no final dos anos 1970. Igualmente irônico é o fato de a liberação da peça ter acontecido, não casualmente, no período em que o Ato Institucional n. 5 e a decretação da anistia viriam abrir uma fase de delicadas disputas internas [17] que precede o período derradeiro de vida do PCB.
A figuração da matéria histórica na peça transcende o microcosmo das relações domésticas e do cotidiano, mas o faz sem permitir, porém, que eles desapareçam de cena, e sem sufocar neles a substância reveladora que apresentam para a representação da grande tessitura épica desejada por Vianna.
O contraponto cênico entre os tempos tem natureza essencialmente política no efeito que produz, ressaltando as implicações e contradições das experiências das diferentes gerações representadas dentro dos diferentes planos temporais em cena. Esse recurso permite, ainda, quebrar o que poderia de outra forma ser erroneamente entendido como um mero determinismo entre passado e presente, baseado numa suposta crença na ideia de que o passado determina o presente, que por sua vez repete, com poucas variações, as percepções e experiências sócio-históricas anteriores.
Se algo efetivamente se repete do passado para o presente, a repetição não resulta do que possa ser considerado “natural” e intrínseco às diferentes gerações; resulta, antes, dos pontos de estrangulamento e das contradições impostas pelas formas sociais de pensamento e de convívio estabelecidos.
O mesmo sistema social que levara Nena e Manguari a tentarem nervosamente afrontar a repressão de costumes leva Nena, décadas depois, a sentir-se agredida pela liberdade sexual de que usufrui seu filho. O foco recai no mecanismo histórico figurado, não no suposto determinismo entre uma atitude passada e uma presente, e nem tampouco, na ação volitiva e individual das personagens envolvidas. O que se coloca é, antes, o paradoxo evidenciado na repetição e na contradição entre os comportamentos e reações. Se há eventualmente repetições ou redundâncias entre passado e presente, há também e principalmente paradoxos e contradições, e é a eles, particularmente, que a peça dirige seu foco.
As personagens não determinam os processos de ação ou os padrões de pensamento que as envolvem: a força das grandes estruturas sociais e ideológicas instituídas as leva de roldão. A teia de relações e de afetos que elas constroem se fragiliza e se rompe em momentos cruciais, levando ao limite a sensibilidade que as personagens potencialmente possam ter para perceber de forma crítica a sua condição.
Via de regra as personagens não percebem com clareza as contradições que as aproximam ou distanciam, absorvidas que estão com suas próprias questões e enfrentamentos. Enxergá-las é tarefa facultada ao espectador, que olha de fora e vê o conjunto dinâmico de imagens e ações.
O olhar do espectador sobre o torvelinho dos acontecimentos incide sobre o quadro mais amplo do processo histórico figurado na urdidura das situações. Tudo o que vê lhe é familiar, ainda que enfocado à luz de consideráveis pontos de estrangulamento: Luca sensibiliza-se com as questões ambientais e comportamentais inerentes ao capitalismo, mas não consegue perceber a dimensão política da luta cotidiana de seu pai. Manguari compadece-se diante da opressão e da solidão dos trabalhadores em canteiros de obras pela cidade, mas não se dá conta da solidão de Nena a seu lado, e nem do caráter autoritário da relação que mantém com ela. Como lutador e militante ele critica o equívoco político que detecta na opção contracultural da geração de Luca, mas sua reação a ela se dá no plano das relações puramente familiares e pessoais. O hedonismo hippie assumido por Luca parece-lhe ter forte analogia com a boêmia anárquica de Lorde Bundinha no passado. No entanto, a irreverência malandra de Bundinha, amigo inseparável da mocidade, é lembrada carinhosamente em suas noites insones, fustigado pela artrite, ao passo que a decisão de Luca em romper com as expectativas paternas é dolorosamente recusada e torna-se o estopim da ruptura que se dá ao final.
Se distanciar é ver em termos históricos, “Rasga Coração” representa um passo fundamental na figuração dramatúrgica e na leitura crítica do processo histórico do país. A peça avança significativamente para muito além da própria meta estabelecida por Vianna, de resgatar a importância da luta cotidiana dos pequenos militantes anônimos do PCB: ela discute, com complexidade e pertinência formal, a dialética das questões macro-históricas e das transformações registradas no processo de ascensão e consolidação do modelo de capitalista no país.
Não casualmente a criação do texto se deu num momento crucial da história da esquerda no país. Concluída em 1974, “Rasga Coração” é poucos anos anterior ao início da articulação do Partido dos Trabalhadores, fruto da organização de setores de ponta do capitalismo que contaram com o apoio tanto de organizações de esquerda revolucionária como de setores da intelectualidade progressista.
O PT logo se definiria como uma alternativa situada, no contexto da década seguinte, à esquerda do PCB, com a defesa de um oposicionismo que repudiava a ideia de ocupar “brechas” oferecidas pelo sistema e via como reformistas as posições que os pecebistas defendiam.
É significativo, na peça, que Camargo Moço seja apresentado como o sucessor e herdeiro potencial tanto da militância do tio, Camargo Velho, quanto das posições do próprio Manguari, a quem admira. A convicção política de Vianna revigora a opção do ativismo associado à personagem, fazendo do “Moço” Camargo o continuador do “Velho”, e realizando a síntese de um “novo” que deseja também ser revolucionário.
É igualmente decisivo o tratamento dado às posições figuradas através de Luca (a contracultura ligada ao orientalismo e à ecologia) e de Milena (a opção pela ação direta da esquerda armada). Como o Lúcio de “Moço em Estado de sítio”, Luca foge ao enfrentamento diante das forças da repressão. Milena, a única personagem dotada de contundência crítica e articulação diante do pensamento de Manguari e de Camargo Moço, desaparece sintomaticamente do solo histórico representado, entregue à própria sorte. O rompimento final entre pai e filho constrói, na imagem cênica da despedida do rapaz, a representação simbólica do coração nacional que se rasga.
Para quem a assiste ou lê nos dias atuais, “Rasga Coração” faz pensar no quanto a sucessão posterior de transformações conjunturais e políticas vividas pelo país acrescentou de trágica ironia a essa imagem: basta lembrar, por exemplo, das recorrentes interpretações sociológicas e historiográficas apontando para o chamado “colapso de um projeto nacional”, nas décadas seguintes, e, no final da primeira década do século XXI, para a denominada “brasilianização” do trabalho em escala mundial, conceito que designa a avassaladora disseminação do trabalho informal e a coexistência e determinação recíproca do centro e da periferia do capitalismo no mesmo espaço social [18].
Vianinha não viveu para presenciar essas ocorrências, nem tampouco para assistir os impasses da esquerda no decorrer dos anos 1980-1990, a configuração do novo capitalismo corporativo, a mercantilização da arte conduzida inclusive por egressos dos movimentos radicais dos anos 1960, o destino do potencial utópico e a banalização das injustiças sociais.
Para todos os que o fizeram, “Rasga Coração” registra, perturbadoramente, quantas sucessivas gerações andaram em círculo e marcaram passo no solo histórico nacional.


Referências Bibliográficas

ARANTES, Paulo. A fratura brasileira no mundo. In: Zero à Esquerda. São Paulo: Conrad, 2004.
BETTI, Maria Sílvia. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Edusp/Fapesp, Coleção Artistas Brasileiros, 1997.
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_______. Dossiê de Pesquisa sobre Rasga Coração. São Paulo: Temporal, 2019.
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_______. Rasga Coração. São Paulo: Temporal Editora, 2018.
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_______. et alii. Dura Lex sed lex, no cabelo só Gumex. Rio de Janeiro: Editora Fon Fon e Seleta. 1967.


Sítios da Internet

BRUSANTIN, Beatriz de Miranda. Anauê Paulista: Um estudo sobre a prática política da primeira 'Cidade Integralista' do Estado de São Paulo (1932 - 1943). 2004. Dissertação (Mestrado) - Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2004. p. 19. Orientador Prof. Dr. Michael Hall. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/279082/1/Brusantin_BeatrizdeMiranda_M.pdf>.
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PEREIRA, Fabrício. Utopia Dividida – crise e extinção do PCB (1979-1992), PPGHIS da UFRJ, março de 2005. Disponível em: <http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/utopiadividida.pdf>. Acesso em: 28 jul 2020.
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__________________________

NOTAS 

[1] Este artigo é a versão revista de “Forma Dramatúrgica e Representação sócio-histórica em ‘Rasga Coração’, de Oduvaldo Vianna Filho”, elaborado para a Revista Scripta, do Programa de Pós-Graduação da Uniandrade, de Curitiba, Paraná, em janeiro de 2008 e de sua posterior reelaboração para a Revista UniABC Humanidades - v. 1, n. 1, 2010.

[2] Professora de Letras Modernas da FFLCH-USP. É organizadora da coleção de peças de Oduvaldo Vianna Filho pela Editora Temporal, de São Paulo. Autora de Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1997, de Dramaturgia Comparada Estados Unidos/Brasil. Três estudos (Cia. Fagulha, 2017 – www.ciafagulha.com.br), entre outros trabalhos.

[3] Carlos Marighella [1911-1969] requereu seu desligamento do Partido Comunista Brasileiro em dezembro de 1966, explicitando sua intenção de participar da luta revolucionária junto às massas.
Joaquim Câmara Ferreira [1913-1970] foi um dos signatários do Manifesto do Agrupamento Comunista de São Paulo, embrião da Ação Libertadora Nacional, entidade de luta armada organizada em fevereiro de 1968. Cf. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 6, e Netto, José Paulo. Pequena História da ditadura brasileira 1964-1985. São Paulo: Cortez Editora, 2016.

[4] Michalski, Yan (org.). O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Global Editora, 1984. Peixoto, Fernando (org.) Vianinha. Teatro. Televisão. Política. São Paulo: Brasiliense, 1984.

[5] Plínio Salgado. Disponível em: Dicionário Político. <https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/s/salgado_plinio.htm>. Anauê! Plínio Salgado e a guinada à direita do nacionalismo brasileiro. Disponível em: <http://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/1635/IV%20JIPLA_364-377.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 28 jul 2020.

[6] “Em 1902, uma epidemia de peste bubônica fez com que Oswaldo Cruz criasse um agrupamento que passou a percorrer os bairros do Rio espalhando raticida e removendo lixo. Eles também foram autorizados a pagar cem réis por bicho morto entregue pela população. A iniciativa gerou um comércio de ratos, inclusive com criadouros dos roedores.” Disponível em: <https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/916-revolta-sonora-oswaldo-cruz-as-vacinas-e-a-ironia-dos-carnavais?showall=>. Acesso em: 28 jul 2020.
Das várias melodias compostas sobre o assunto, destaca-se “Rato, rato, rato”, de Casemiro da Rocha, que recebeu letra de Claudino Costa. Disponível em: <https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/rato-rato.html>. Gravação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RM53F7Xm-rU&list=PLN_ojX50FvlgOKzCeQej1ZZsKqcRXnXFX&index=4>. Acesso em: 28 jul 2020.

[7] “João Pessoa foi morto a tiros pelo jornalista João Dantas, que apoiava o inimigo político de Pessoa, o coronel Zé Pereira, da cidade de Princesa, na Paraíba. Considerado o grande mártir da Revolução de 30, o hino em sua homenagem, um grande sucesso na época, foi cantado na abertura da revista teatral “O Barbado” no Rio duas semanas depois da vitória da Revolução. Seus autores são o maestro Eduardo Souto e Oswaldo Santiago, poeta pernambucano e compositor de valsas e marchinhas de carnaval.” [...] “Governador da Paraíba, João Pessoa foi candidato a vice-presidente na chapa liderada por Getúlio Vargas, derrotada nas fraudulentas eleições de 1929/1930. Seu assassinato, em julho de 1930, no Recife, provocou comoção nacional. O disco da gravadora Odeon com a voz de Chico Alves cantando o hino fez um enorme sucesso.” Disponível em: <https://direitonamusicaufs.blogspot.com/2011/06/francisco-alves-hino-joao-pessoa-1930.html>. Acesso em: 28 jul 2020.

[8] “Conhecido desde 1895, quando foi lançado na opereta-burlesca "Zizinha Maxixe", o tango "Corta-Jaca", cujo título original é "Gaúcho", teve a popularidade redobrada nove anos depois, ao reaparecer na revista Cá e Lá. Comprovam o sucesso as oito gravações que recebeu entre 1904 e 1912 e sua apresentação, em 26.10.1914, numa recepção oficial no Palácio do Catete, então sede do Governo Federal. Na ocasião, foi interpretado pela primeira dama, Sra. Nair de Teffé, fato explorado como escândalo pela oposição. “Corta-Jaca” ou “Dança do ‘Corta-Jaca’”, como está classificado em uma de suas edições, é na verdade um maxixe bem sacudido, característica que muito contribuiu para o seu êxito. A fim de ser cantado em Cá e Lá, ganhou letra de Tito Martins e Bandeira de Gouveia, autores da peça (“Ai! Ai! Que bom cortar a jaca / Ai! Sim, meu bem ataca, sem descansar...”). Disponível em: <https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/corta-jaca.html>. Acesso em: 28 jul 2020.


[10] Disponível em: <https://www.letras.mus.br/lamartine-babo/grau-dez-marchacarnaval-1935/>. Acesso em: 28 jul 2020.

[11] Disponível em: <https://www.discografiabrasileira.com.br/fonograma/40056/linda-lourinha>. Acesso em: 28 jul 2020.

[12] A canção original chama-se “Fascination” e é uma valsa de Maurice de Féraudy (1859-1932) e Dante Pilade “Fermo” Marchetti (1876-1940). Mais de uma versão em português foi feita. A mais conhecida parece ser a de Armando Louzada. Cf.: <https://museudacancao.blogspot.com/2012/11/fascinacao-fascination.html>. Acesso em: 28 jul 2020.

[13] Ver Palhares, Lenir. Educação Integral para o homem integral”: as escolas integralistas em Minas Gerais (1932-1937). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AR5GG6/1/disserta__o_finalizada.pdf>.

[14] Ver Brusantin, Beatriz de Miranda. Anauê Paulista: um estudo sobre a prática política da primeira 'Cidade Integralista' do Estado de São Paulo (1932 - 1943). 2004. Dissertação (Mestrado) - Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004, p. 19. Orientador Prof. Dr. Michael Hall. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/279082/1/Brusantin_BeatrizdeMiranda_M.pdf>.

[15] “A Ação Integralista Brasileira leva adiante a bandeira nacionalista por mediação de Plínio Salgado, que procura unir a ideologia nacionalista à defesa da pequena propriedade e sua extensão em nível nacional. Seu ódio à industrialização e urbanização define, nesse contexto, uma ideologia de nacionalismo defensivo, que não procura como o fascismo a expansão externa, militar ou não. Tem apoio nas classes médias urbanas, pequenos proprietários rurais, grandes latifundiários e setores civis e militares da burocracia estatal.” In Tragtemberg, Maurício. A falência da política. São Paulo: Unesp, 2009, p. 180.

[16] Luís Carlos Prestes [1898-1990].

[17] Pereira, Fabrício. Utopia Dividida – crise e extinção do PCB (1979-1992), PPGHIS da UFRJ, março de 2005. Disponível em: <http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/utopiadividida.pdf>.Acesso em: 28 jul 2020.

[18] A propósito do conceito de “brasilianização”, veja-se ARANTES, Paulo. A fratura brasileira no mundo. In:_______ Zero à Esquerda. São Paulo, Conrad, 2004. Veja-se, ainda, Fim de jogo. Entrevista concedida por Paulo Arantes e Silva à Folha de São Paulo, em 18 jul. 2004, disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1807200427.htm>. Acesso em: 28 jul 2020.




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